No mundo real, do qual a política se divorciou, as populações vivem, sofrem, são destruídas e massacradas. Entrevista especial com José Cláudio Alves

"Não há como, a partir da prática política institucional e partidária, por ela própria, fazer transformações", afirma o sociólogo

Foto: Jornal da USP

Por: Patricia Fachin | 25 Mai 2022

 

No dia de ontem, 24 de maio, ocorreu, segundo aponta um estudo, (cf. portal UOL, 25-05-2022), a 39ª chacina no Rio de Janeiro, em 1 ano.

 

Assim, republicamos a presente entrevista publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia  28-03-2022.

 

"No universo de pós-verdade, onde a farsa, a mentira, o engodo e o embuste foram transformados em verdade a partir de redes sociais e de toda a parafernália de divulgação da mentira, o jogo político virou algo incontrolável e incapaz de nos dar qualquer horizonte ou norte de orientação para onde devemos ir". É a partir desta constatação que o sociólogo José Cláudio Alves reflete sobre alternativas para reaproximar a política do mundo real, não com discursos vazios sobre as mulheres ou os problemas sociais, mas tornando as populações protagonistas e construtoras das mudanças políticas em seus espaços.

 

No mundo real, do qual a política se divorciou há muito tempo, diz, "as populações vivem, sofrem, são destruídas e massacradas: passam fome, são agredidas diariamente por operações policiais, são massacradas pela presença miliciana e do tráfico, ou seja, por grupos armados. Elas sofrem com a destruição do meio ambiente no país como um todo, com o desemprego e estão impossibilitadas de garantir a sobrevivência de suas famílias. As populações também vivem nos hospitais, sofrendo as consequências de inúmeras doenças – a pandemia é apenas mais uma que chega".

 

Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, José Cláudio Alves retoma o caso do assassinato de Marielle Franco como mote para evidenciar o descolamento dos partidos da realidade social das pessoas, especialmente das mais vulneráveis e que denunciam as agressões a que são submetidas. Ele também relata a "nova estratégia" dos milicianos cariocas, que "estão matando as mulheres de outros milicianos". Para eles, informa, "o corpo feminino virou parte de uma tática de guerra". A nação, lamenta, está "mergulhada em sua sombra, vivendo na dimensão mais deprimente, depressiva e degradada que nos envolve desde sempre, desde o surgimento de um mundo colonizado, mas desenvolvido também por nós próprios".

 

Para ele, o rompimento com a instrumentalização da política e das populações vulneráveis depende de outra postura política. "O movimento que deveria ser feito é em direção a essas pessoas, a essa população, aos grupos atingidos, ou seja, estabelecer o diálogo com essa população, o qual deixou de existir".

 

José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)

 

José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo - USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - No artigo intitulado "Marielle: do corpo sem morte à morte sem corpo", o senhor afirma que "ela foi transformada, em decorrência de seu assassinato e não conclusão do processo sobre a autoria do crime, no mito moderno da dissociação entre o mundo da política e o mundo real". A que atribui a recorrente "dissociação entre o mundo da política e o mundo real" e como isso se manifesta no Brasil?

 

José Cláudio Alves – O mundo da política vem, não só ao longo da história do Brasil, mas ao longo da história da humanidade – assim como o mundo econômico –, seguindo lógicas, processos, concepções, organizações de tal maneira que se descola do mundo real em função dos interesses presentes. Os interesses políticos em si se constituem como um universo próprio e o mundo político se comporta de acordo com esses interesses em jogo, com as lógicas de uso e de comportamentos, com a cultura institucionalizada em partidos e instâncias decisórias do executivo, do legislativo e do próprio judiciário, que se coloca como apartidário. Mas, progressivamente, na história do nosso país, o judiciário se transformou em um dos órgãos mais politizados.

 

 

A política divorciada do real

 

O mundo da política se comporta de uma forma divorciada, própria, e submete aqueles que não estão dentro do seu universo à sua própria intenção e poder. A forma como ele se organiza faz com que se imponha de uma forma muito dura para instituir as esferas de poder do Estado como esferas também divorciadas desse universo.

O caso Marielle mostra isso. Os interesses são implantados a partir da lógica política, que segue uma agenda eleitoral que acaba sendo priorizada no mundo da política divorciada. Se contam as “cabecinhas” que vão votar em A, B ou C e o ganho imediato e eleitoral em termos de votos na urna. Esse é o mundo da política. O caso Marielle nos mostra que não conta o sofrimento, a dor, a tristeza, a destruição das esferas sociais, dos movimentos políticos ou de vidas, como aconteceu com ela própria. Isso é secundarizado. O que conta é quantos votos os partidos obtêm com a revelação da verdade por trás do assassinato dela ou quanto votos perdem. Aí se entra em um grande atoleiro, em uma grande nebulosa, em uma grande névoa de interesses amalgamados por trás do jogo imediato, político e eleitoral.

 

 

Presidente: o sequestrador mor

 

Esse jogo não está interessado em verdades, em processos sociais de transformação, em democratização. Democracia é uma palavra que sequer se sabe o que significa. Não está interessado em uma via participativa – as populações nas ruas desapareceram há muito tempo. Em 2013 houve um grande momento [de participação social], mas aquele momento foi sequestrado pela lógica política. Agora temos um sequestrador mor, que é o presidente da República, que sequestrou uma nação inteira. A agenda política está na mão dele e ele segue fazendo esse sequestro político com um discurso apolítico. Ele consegue mimetizar seus movimentos e disfarçá-los de apolíticos, de contrapolíticos, inclusive porque ele é o homem contra tudo. Ele é o apolítico por natureza, o grande cavaleiro salvador da nação, contra as mazelas e desgraças. No entanto, ele é o promotor das mazelas e desgraças.

 

Reconstruir em campo minado. Ideias para uma esquerda pós-PT – Prof. Dr. Rodrigo Nunes

 

No universo de pós-verdade, onde a farsa, a mentira, o engodo e o embuste foram transformados em verdade a partir de redes sociais e de toda a parafernália de divulgação da mentira, o jogo político virou algo incontrolável e incapaz de nos dar qualquer horizonte ou norte de orientação para onde devemos ir. Nessa barafunda semiótica e ideológica de comportamentos políticos, a revelação do caso Marielle é absolutamente controlada a partir desse jogo. Tudo isso nos mostra um divórcio absoluto entre o mundo real e o mundo da política.

 

 

IHU - Sobre a investigação e a conclusão do caso Marielle, o senhor disse que "a esquerda não quer a solução para não se comprometer e perder votos da direita". Pode explicitar essa ideia? Com o que, especificamente, a esquerda não quer se comprometer?

 

José Cláudio Alves – Seguindo a lógica do meu raciocínio, a esquerda se comporta na mesma lógica da direita, do centro, desse universo da política divorciada do mundo real. No mundo real, as populações vivem, sofrem, são destruídas e massacradas: passam fome, são agredidas diariamente por operações policiais, são diariamente massacradas pela presença miliciana e do tráfico, ou seja, por grupos armados. Elas sofrem com a destruição do meio ambiente no país como um todo, com o desemprego e estão impossibilitadas de garantir a sobrevivência de suas famílias. As populações também vivem nos hospitais, sofrendo as consequências de inúmeras doenças – a pandemia é apenas mais uma que chega.

 

Violências e a violação de direitos – Profa. Dra. Maria Palma Wolff

 

Mesmo que hoje se viva o chamado “fim da pandemia”, essa é mais uma farsa. As consequências da pandemia estão no sistema de saúde, com várias complicações decorrentes do vírus. Essas consequências vão reforçar complicações em vários outros campos da saúde e impactar diretamente a vida das pessoas. Há relatos de que pessoas estão morrendo de doenças que não levavam à morte. Isso ocorre ou porque as pessoas estão vivendo complicações ou porque o sistema de saúde não está dando conta da situação e não acompanha mais a evolução somatória de várias doenças nem a destruição de si próprio. Mas o discurso é de que agora tudo isso está superado porque não é mais preciso usar máscara e todo mundo “está de boa” e não há mais pandemia. Vivemos exatamente este momento.

 

 

A esquerda quer ser palatável

 

A esquerda, neste cenário todo, em que várias áreas estão sendo destruídas, pensa no jogo político que foi na direção da extrema-direita, com a vitória de Bolsonaro, e da própria direita, que se direciona em relação a Bolsonaro para obter alguma coisa, e do centro, com o PSDB e o MDB se movimentando na direção da direita. Todo o espectro político deu uma guinada para a direita e para o que Bolsonaro representa. Olhamos para um país que está completamente reconfigurado a partir desses partidos de extrema-direita e de direita.

 

A esquerda simplesmente faz o movimento de composição com isso, de buscar dividir e obter votos nesse cenário. A esquerda, que poderia reforçar a sua visão, a sua concepção, a sua prática, mostrar sua diferenciação, faz o contrário: quer ser palatável, agradável, quer “brilhar” para os olhos daqueles eleitores que hoje se direcionam para o caminho da direita como alguém que também merece atenção. A esquerda quer trazer purpurinas em termos de concepções para se maquiar e se apresentar agradável para esse movimento conservador tradicional que atinge todo o espectro eleitoral. A esquerda se comporta assim.

 

A esquerda maquiada

 

Vou dar explicitações mais diretas. Marcelo Freixo, que era do PSOL [hoje filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB)], conviveu e foi responsável por boa parte da trajetória política da Marielle, hoje praticamente poderia ser chamado de um “dirigente sindical” das corporações policiais. As postagens dele nas redes sociais são direcionadas para proteger o policial das injustiças que ele sofre, para trazer segurança para ele e sua família, para mostrar que os direitos humanos também se preocupam com os policiais. Toda a pauta de direitos humanos que vivemos sempre foi massacrada porque a corporação policial faz parte da estrutura de poder que extermina e mata populações periféricas, faveladas, negros e pobres. Os moradores das favelas foram e são transformados em inimigos por um modelo de segurança pública que transformou o tráfico de drogas em um crime a ser combatido com guerras, mortes, operações e assassinatos, que são a prática recorrente no Rio de Janeiro. Essa estrutura policial agora é vista como algo que precisa ser protegido e ganhar garantias, enquanto a situação do outro lado, massacrado e destruído por um número crescente de mortes, deixou de ser pauta levantada, trabalhada e discutida. Isso tudo está sendo esquecido em função de uma imagem.

 

Marcelo colocou Raul Jungmann como coordenador da área de Segurança Pública. Ele, que foi ministro de Segurança Pública e ministro da Defesa do governo Temer quando houve a intervenção no Rio de Janeiro e quando houve o assassinato de Marielle. Ele não trouxe nenhuma contribuição para o caso, assim como o ministro Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que foi o então chefe da intervenção no Rio de Janeiro e que também não trouxe explicação para o assassinato. O máximo que Jungmann fez foi dar uma declaração, dizendo que personalidades do campo políticos estavam interferindo na investigação do caso Marielle. Mas agora ele é atraído para o cenário da candidatura de Marcelo Freixo como alguém de ilibada competência para estar construindo o programa de governo do Marcelo Freixo. É uma barafunda: misturam-se todos os que estiveram envolvidos no processo do caso Marielle de uma forma tão enredada, mas tão sem explicação, sem trazer à luz verdades que possam nos ajudar no mundo real. Essas pessoas têm a função de obscurecer e abafar tudo o que deveria ser trazido à luz. Mas elas são alçadas à competência política de uma trajetória de alguém que se diz de esquerda e vem para mudar o Rio de Janeiro. Isso é uma piada.

 

 

Alianças

 

Por que essa maquiagem toda? Porque a esquerda quer ser agradável a todo esse movimento e o importante é manter a tônica do “bandido bom é bandido morto”. Se é para votar em alguém com esse discurso, que se vote no original, Bolsonaro. Original não é essa maquiagem de uma “trajetoriazinha” de esquerda de CPI da Milícia, de professor de história para os presos nos presídios, de dizer que o PSOL fazia aliança com os pobres e sofridos e não com grupos políticos comprometidos.

 

Hoje, Marcelo quer fazer alianças com aqueles que sempre estiveram comprometidos com a classe dominante e aparece ao lado de Armínio Fraga, que é uma figura notória no campo do mundo financeiro, ligado aos banqueiros. Importa também ter “grana de banqueiros” em sua campanha. Ou seja, toda a trajetória política é reconfigurada em função disso. Então, a meu ver, é uma esquerda que se perde, se desconfigura e se maquia para poder obter importações daqueles que estão no campo da direita porque é nesse campo que hoje o jogo está sendo jogado. Esse virou o cenário dominante e não se quer se contrapor com isso e se marcar.

 

Não há debate público nacional. Aqueles que estão no movimento político eleitoral e partidário não querem construir a esfera pública. Eles querem construir cenários misturados, confusos, absolutamente indefinidos que permitam manobras. O Lula está fazendo o mesmo movimento: conversar com alguém da direita, como o Alckmin, para dizer que está fazendo um movimento de abertura. Hoje, a esquerda quer fazer uma abertura para incorporar a direita dentro de si mesma, como se isso fosse capaz. Nem percebe que tudo isso vai descaracterizar, desconfigurar e afastar cada vez mais a população que segue o debate para ter uma compreensão real da situação. Isso faz com que as coisas fiquem cada vez mais confusas e, nessa confusão generalizada, se perdem valores, princípios, e a esquerda deixa de existir.

 

 

Crepúsculo

 

O que é falar de esquerda hoje no Brasil? É falar de nada. Não se sabe mais o que é isso. O caso Marielle é central nesse debate porque a esquerda não leva esse tema para órgãos internacionais que poderiam fazer um debate internacional sobre o caso. A esquerda sequer se movimenta, sequer propõe isso. Ela se oculta, se esconde, fica rebaixada por trás da mesa para ver se ninguém a enxerga para poder ganhar algum voto e se eleger. Nesse cenário, se a esquerda se elege, se Marcelo Freixo se elege, simplesmente não vai fazer nada por causa do rebaixamento, da reconfiguração, do ocultamento.

 

Estamos no momento do crepúsculo: o sol está se pondo e não temos nitidez do que estamos vendo. Estamos no crepúsculo eleitoral e político da nação. Quem quer ser alguma coisa nesse crepúsculo simplesmente vai tentar enganar. Quando o sol vier a nascer no dia seguinte, após a noite, vamos ver que a pessoa que elegemos não representa nada do que pensamos. É nesse cenário de crepúsculo e de revelações que surgem após ele que a esquerda está se constituindo hoje.

 

O sofrimento da população, a ausência de debate, de soluções, e a ausência de definições e dimensões claras vão nos conduzir cada vez mais para cenários de morte, sofrimento e indefinições para essa população.

 

Regulações pela violência: impacto das operações policiais e as ações das milícias:

 

 

IHU - Para quais setores políticos o caso Marille é uma presença incômoda e embaraçosa?

 

José Cláudio Alves – O caso Marielle é embaraçoso e incômodo para os grupos políticos de direita e de esquerda porque eles podem ter seus interesses políticos atingidos [com a resolução]. A esquerda não quer tratar desse assunto porque isso vai resvalar na busca que ela vem fazendo por uma frente ampla, que significa a incorporação da direita. Essa incorporação pode ser atrapalhada a partir de revelações que mostrem que o discurso e a prática de atores políticos da direita estão envolvidos no caso Marielle. Há um risco de as negociações e os tratos que estão sendo feito entre a esquerda e os setores de centro e de direita serem atingidos e afetados.

 

Se a esquerda se eleger com um grau de comprometimento com os segmentos comprometidos com o extermínio, a execução sumária e o apoio à ideia de que “bandido bom é bandido morto”, ela deixará de ser esquerda. Ela sustentará um rótulo e uma fachada que não têm expressão nem significado; é apenas algo discursivo para dizer que fez alguma coisa.

 

 

Caso Marielle e a direita

 

Para a direita, o caso Marielle também é um estorvo porque ela poderia ser atingida pela revelação dos autores desse tipo de prática e isso traria consequências, como a perda de eleitores e de votos. É isso que está em jogo hoje, mais do que o processo em si ou os acusados ou as prisões. No espectro político, todos querem “varrer o caso Marielle para debaixo do tapete” para, pelo menos, esperar passar o ano eleitoral. Um protege o outro, todos se escondem ao mesmo tempo e ninguém revela nada. Essa situação revela a sociabilidade brasileira, que odeia o conflito, não explicita o conflito e todos se abraçam e se beijam.

 

Vou dar um exemplo. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, André Ceciliano, que é do PT, fez aniversário recentemente. Todas as figuras do espectro político do Rio de Janeiro foram falar com ele e aparecerem no noticiário. Essa confraternização no âmbito privado e pessoal mostra uma prática comum. O que isso revela? Que todo mundo quer acomodar os múltiplos interesses, se proteger, ninguém quer trazer problema para si mesmo. Essa é a prática nacional.

 

O próprio Lula, quando faz aproximação com a extrema-direita ou a direita, age desse modo: quer acomodar os diferentes interesses, como se isso fosse possível. Tudo que traga crítica a essas figuras é um estorvo e o caso Marielle respinga nesse grande projeto. Hoje, a melhor política é a do desconhecimento, do “não sei”, do “esconde-esconde”, para que cada um possa se revezar no poder e ganhar o seu quinhão. Esse é o mais absoluto descolamento do mundo real da vida das pessoas que vão viver as consequências dessa prática.

 

 

IHU - No artigo, o senhor mencionou algo interessante sobre como as sociedades lidam com algumas situações ao mencionar, por exemplo, que "é preferível fazer um pedestal para a heroína ao mesmo tempo em que se constrói um mausoléu de silêncio sobre seu túmulo". O que isso demonstra sobre a dificuldade de a política - e também o ativismo político - se ater à resolução dos problemas concretos ao invés de esconder-se atrás de subterfúgios?

 

José Cláudio Alves – A direita e a extrema-direita há décadas difundem o mantra de que “bandido bom é bandido morto”. Há uma estratégia por trás disso e ela está vinculada à política de segurança pública, que é uma política de insegurança que estilhaça as possibilidades reais de a sociedade buscar formas de proteção. A lógica da segurança pública criou o conflito permanente, a guerra a partir do tráfico e do consumo de drogas, que engloba traficantes, usuários e uma política que opera a partir de confrontos armados em comunidades tidas como aquelas onde há a prática do tráfico e dos crimes. Os presídios são abarrotados com pessoas envolvidas com o tráfico, negros, pobres, com o conjunto da sociedade que foi transformado em alvo dessa dimensão política que serve basicamente para produzir sangue.

 

 

Prática do extermínio

 

O colonizador estabelece esse padrão sanguinário e isso está muito presente dentro da política de segurança pública que vem sendo trabalhada de forma mais intensa há cinco décadas e meia, depois da ditadura empresarial-militar, com a prática do extermínio. Os grupos de extermínio foram criados pela ditadura para estabelecer esse padrão de assassinato, para dizer que a polícia está ajudando a população e limpando a sociedade dos criminosos e do mal. Tudo isso foi se acumulando e aqueles que se elegeram ao longo das últimas cinco décadas o fizeram com base nesse discurso: a bancada da bala e os matadores da Baixada Fluminense que desde os anos 1990 se elegem vereadores, prefeitos e deputados. Essa foi a plataforma de Jair Bolsonaro na eleição presidencial. Ele trouxe novamente esse elemento à tona e o ampliou, favorecendo e estimulando o porte de armas. Tentou emplacar o excludente de ilicitude, embora, na prática, já não exista controle sobre as ações dos policiais – o Ministério Público não exerce sua prerrogativa de controlar as ações da polícia.

 

Tudo isso constitui o grande vetor da extrema-direita e da direita, mas não só. Em 2007, quando ocorreu a “chacina do Pan”, às vésperas da abertura dos jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, aproximadamente 1500 policiais fizeram parte de uma megaoperação no Complexo do Alemão e mataram 19 pessoas. Uma comissão especial criada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos no governo Lula fez um laudo dos corpos e constatou que 70% das perfurações tinham ocorrido nas costas e na cabeça das pessoas. Havia um indício de que o que ocorreu ali foi uma execução sumária e se deveria investigar o caso profundamente. No entanto, o presidente Lula, aliado do governo Sérgio Cabral à época, foi ao Rio de Janeiro duas semanas depois e declarou que não se combate o crime com pétalas de rosas. Ora, essas são as expressões que estão na boca dos apoiadores do Witzel, do Cláudio Castro, atual governador do Rio de Janeiro.

 

 

Desmoronamento moral

 

Mas a própria esquerda adotou esse discurso, a prática e o apoio a essa prática. Há um desmoronamento moral no campo da segurança pública que faz com que a direita seja o arauto que sustenta o estandarte do “bandido bom é bandido morto”. Esse também é o discurso dos milicianos que se estabelecem no poder. Então, a extrema-direita não quer a revelação de quem foi o mandante e quem são os envolvidos na morte de Marielle porque tem uma aproximação muito grande com essa prática de execução sumária. Isso é o que a direita sempre pregou e continua se elegendo pregando esse discurso. A esquerda aceitou e compactuou com isso. Basta ver sua incapacidade de fazer um debate e um discurso contraposto. A simples prática da execução sumária denota o desenvolvimento desse discurso político que comporta matar pessoas. Marielle representa uma favelada, uma negra, uma LGBT, ela tem expressões daquilo que esses grupos odeiam e buscam combater e matar. Marielle expressa um movimento que tenta proteger e resgatar a dignidade dessas populações para impedir que esses massacres continuem.

 

Hoje não há mais qualquer tipo de pudor em relação ao discurso dos grupos de extermínio; isso virou bandeira. A deterioração da segurança pública ao longo desse tempo gerou uma corrosão da noção real de proteção da vida. Isso desmoronou e a direita está no eixo central disso. Não é à toa que Bolsonaro expressa isso, inclusive para o futuro no sentido de ser a base defensora desse tipo de discurso e de prática.

 

 

IHU - Como romper com a instrumentalização dos problemas e mazelas sociais que é feita pela própria política, que reivindica a sua resolução?

 

José Cláudio Alves – Não há como, a partir da prática política institucional e partidária, por ela própria, fazer transformações. Ela está comprometida. Eu mesmo faço parte do PSOL, mas estou cada vez mais distante porque compreendo que o próprio partido faz um movimento completamente equivocado. O movimento que deveria ser feito é em direção a essas pessoas, a essa população, aos grupos atingidos, ou seja, estabelecer o diálogo com essa população, o qual deixou de existir.

 

Para estabelecer um diálogo político eleitoral, é preciso construir uma arena pública de debate na qual essa população fosse ouvida. Isso é exatamente o contrário dessa “palhaçada” de dizer que estamos ouvindo o povo quando se coloca um monte de tecnocratas para criar propostas para a população ou para instrumentalizá-la ou para aparecer na foto ao lado do político que está administrando, para dizer que se está fazendo alguma coisa. A política deve estar em diálogo incessante e permanente no lugar onde a população está, sem subterfúgio, ampliando o horizonte das pessoas. O movimento das ruas tem que ser estimulado, as pessoas têm que se expressar publicamente no sentido de que a população seja protagonista e autora criativa do seu mundo político.

 

Vivemos em um país totalitário. As coisas não podem ser ditas claramente. Se eu for falar tudo que eu sei, sou um homem morto. Essa realidade que se diz democrática, com alternância no poder, com eleições, é uma farsa. Não existe democracia neste país. Os partidos de esquerda, direita e centro fazem parte dessa farsa. Como resgatar ou construir algo que não seja uma farsa, uma mentira, uma dimensão totalitária revestida de democracia? Isso exige um esforço imenso, diário. Um conjunto da sociedade deveria estar envolvido nisso, mas é muito difícil. Mesmo no cenário de movimentos populares se enfrenta práticas similares às da direita, de golpes, traições, mau-caratismo. Os movimentos sociais e a prática política entre a população também não são uma coisa “perfumada” e “limpa”, não são algo que simplesmente se possa aplaudir. Estamos em uma nação mergulhada em sua sombra, vivendo na dimensão mais deprimente, depressiva e degradada que nos envolve desde sempre, desde o surgimento de um mundo colonizado, mas desenvolvido também por nós próprios. Como diz o ditado romano, se os bons se corrompem, você não pode esperar mais nada dos outros. Então, temos que fazer um esforço monstruoso na construção de uma prática política distinta de tudo que está aí. Existem práticas alternativas entre indígenas, quilombolas, favelados. Eu convivo com outras dimensões de solidariedade e compaixão, de bondade e compreensão do que é o universo coletivo e a coisa pública, a res pública. A questão é como trazer tudo isso à luz novamente.

 

 

IHU – O senhor tem chamado a atenção para o aumento de casos de violência contra as mulheres e casos de homicídio no Rio de Janeiro praticados pela milícia. Quais são as razões desse fenômeno?

 

José Cláudio Alves – Acompanho mais de perto o caso das comunidades da Baixada Fluminense que vivem a guerra entre dois grupos de milicianos que disputam a mesma milícia. Após a morte do Ecko, líder da maior milícia do Rio de Janeiro [Bonde do Ecko], o irmão dele, o Zinho, e o Tandera, que dividia o poder com Ecko, iniciaram uma guerra entre si no final do ano passado. A partir dessa guerra iniciou-se uma dimensão pouco conhecida entre nós: a prática do assassinato das mulheres de milicianos, ou seja, milicianos estão matando as mulheres de outros milicianos. Essa virou uma estratégia de guerra entre eles. O corpo feminino virou parte de uma tática de guerra. Isso está avançando. Não se trata somente da morte, mas da forma como se mata: o esquartejamento e o desmembramento do corpo das pessoas, ou o fato de jogarem as partes dos corpos das pessoas em locais diferentes, para dificultar que sejam encontradas. É um ponto insano no qual chegamos, mas que demonstra a dimensão misógina, machista, patriarcal, que está muito presente na estrutura dos grupos armados do Rio de Janeiro.

 

A violência contra as mulheres e a condição masculina na contemporaneidade

 

A milícia está atuando assim de uma forma muito mais intensa, mas essa prática dos grupos armados é algo muito maior e está associada a outras práticas de violência contra as mulheres, como estupros, o feminicídio, o controle sobre a vida delas, a destruição da liberdade, o terrorismo psicológico, as agressões físicas, a intimidação. Esses são fatores históricos na relação desses grupos armados com as mulheres. Elas acabam sendo duramente atingidas.

 

No caso dessa guerra que estou acompanhando, as mulheres que veem tudo isso acontecer vivem em estado de pânico. A situação lembra os grupos paramilitares do México e da Colômbia, que se valeram dos corpos femininos, com a diferença de que lá a prática consolidada era o estupro. Aqui, os grupos avançaram na violência: matam, esquartejam e desaparecem com os corpos. A luta que as mulheres fazem hoje para buscar justiça pela morte de seus companheiros, filhos e irmãos, está muito impactada por conta dessa circunstância. Elas morrem de medo porque estão sendo aterrorizadas por essa prática.

 

 

IHU - No artigo, o senhor chama a atenção para grupos que usam as mulheres como objeto de disputa e elas acabam sendo esquartejadas e assassinadas. Por que as mulheres se tornam objeto desses grupos?

 

José Cláudio Alves – As mulheres se tornaram objeto desse grupo por várias razões. Primeiro porque a mulher representa uma dimensão afetiva e emocional a qual os próprios membros dos grupos armados se submetem e vivem. Eles têm suas companheiras e a dimensão afetiva da vida deles existe, é real e valorizada. Essa dimensão íntima, pessoal, particular e privada sempre foi respeitada e protegida por certas regras. A mulher ocupa um lugar importante nessa esfera e é o amor romântico, erótico, o amor do cuidado, o amor da proteção, a manifestação das várias formas como o carinho se expressa. É por isso que ela acaba se transformando em um alvo por parte dos grupos opositores, porque se ela está nesses locais e ocupa um espaço nessa relação, ao escolhê-la e elegê-la como situação de violência, se vai ao âmago do outro. Portanto, a violência da mulher é uma forma de atingir o outro, o seu inimigo, aquele que tem relações afetivas de amor e carinho. Ou seja, se atinge duramente o outro a partir da morte dessas pessoas com quem se tem relações de amor.

 

A morte dessas mulheres não é uma morte qualquer, mas uma morte por esquartejamento, que faz desaparecer o corpo de modo que a pessoa atingida não possa fazer o luto nem ter a memória desse momento. A meu ver, há um grau de brutalidade e crueldade nisso. Uma intencionalidade muito nefasta, sombria e degradada. Há uma degradação da sociabilidade: ela se degrada para reforçar uma sociabilidade mais violenta, mais agressiva. As pessoas que pertencem a esses grupos são seres humanos, igual a qualquer um de nós, mas avançaram para uma dimensão muito mais sombria, nefasta, dura e pouco realizadora das melhores dimensões do humano; estão nas piores dimensões do humano, valorizando e reforçando isso. É para isso que chamo a atenção. Então, atingir as mulheres afeta muito mais os adversários que tiveram suas mulheres atingidas porque atinge o âmago das dimensões privadas que essas mulheres exercem na vida desses homens.

 

O outro fator que contribui para a morte das mulheres é o fato de elas serem mais frágeis no sentido de serem um alvo mais fácil. As operações para atingi-las ocorrem mais facilmente, não demandam grande esforço bélico estratégico.

 

O terceiro fator é que as mulheres carregam consigo dimensões da verdade que restou a elas defender e proteger. É o caso de Marielle, Patrícia Acioli, das mulheres que foram mortas porque trouxeram à luz verdades que elas carregam. Sobrou, no ambiente social, histórico e humano, a elas essa dimensão. Elas se constituíram a partir disso. Elas são a expressão de uma das maiores verdades: ser mãe, trazer à luz um ser humano. Por se vincularem à vida, em função dessa dimensão, elas também carregam consigo a expressão de tudo isso. Então, matar mulheres também tem esse significado de silenciar a verdade, as coisas incômodas, aquilo que não se quer ver.

 

 

Segurança pública

 

Se quiséssemos implementar um modelo de segurança pública real, calcado na realidade das pessoas que sofrem, as mulheres deveriam estar na frente do debate público porque elas sabem o que é isso. Matá-las como está sendo feito significa silenciar uma vertente, uma das maiores expressões de um projeto contrário a este que hoje existe e se estabelece no país.

 

Quando olho para as lideranças femininas, para as mães que lutam pela justiça para seus filhos, vejo esse vínculo com a vida, que muitas vezes foi tirada pela ação de um policial, de um miliciano, de um traficante, de agentes do Estado. Matar mulheres também é silenciar esse movimento político real. Não estou dizendo que o ambiente em que essas lideranças vivem são limpos de qualquer tipo de problema, puros, absolutamente envolvidos em dimensões de integridade e honestidade. Não. Ali também existem questões de disputas, como no meio popular existe tudo isso. Mas existe também – e com muita força – a expressão de coisas mais verdadeiras, mais intensas, mais fortes, mais competentes na capacidade de proteger pessoas, assegurar a vida, de impedir injustiças, de trazer honestidade e integridade.

 

Entre a política e o movimento. Concepções e práticas políticas de mulheres negras:

 

IHU - Este é um ano de eleição. Como a violência contra as mulheres, mas também as práticas pelo tráfico e as milícias deveriam ser abordadas no debate eleitoral?

 

José Cláudio Alves – A dimensão real feminina do que as mulheres vivem em favelas, periferias e comunidades segregadas e estigmatizadas, submetidas à tortura psicológica e violências físicas, tendo que alimentar e fazer sobreviver seus filhos e companheiros, tendo que fazer tripla jornada, deveria estar presente no cenário a fim de transformar essas mulheres em lideranças políticas.

 

Elas não deveriam ser silenciadas ou serem cabos eleitorais ou figuras de propaganda ou exemplos de matérias na mídia. Deveriam ser as figuras centrais, as próprias candidatas dos projetos políticos. No entanto, elas não são. Se quiséssemos resgatar essa dimensão, deveríamos trazê-las a público, dar voz a elas e sustentá-las ao invés de jogá-las na disputa interna e partidária, a qual elas vão perder porque não têm dinheiro nem poder.

 

 

Resgate político

 

Resgatar essas mulheres politicamente seria o comprometimento a ser adotado pela nação. Claro que entre essas mulheres há comprometimentos políticos de todos os espectros partidários, mas aí estaríamos em um cenário em que elas poderiam expressar de forma mais intensa as suas concepções. É preciso dar voz a elas mesmo com todas as suas contradições: há mulheres que são corruptas, as que são de extrema-direita, as que defendem o extermínio e a prática do “bandido bom é bandido morto”. Mas esse confronto também traz o outro lado, aquelas mulheres que têm uma dimensão mais digna e nobre e que expressam a necessidade da construção de uma segurança pública. É necessário apostar nessa visão de mulheres que tragam dimensões dignas e verdadeiras sobre o que elas vivem e enfrentam neste país. Isso tem que ser feito a partir da candidatura de mulheres e na distribuição de recursos para elas. Não adianta ter um fundo partidário que será monopolizado pelo dono do partido, que é um homem. Mas dentro do partido político, não conseguimos essas modificações. É preciso construir uma esfera fora dos partidos, fortalecer outros espaços de movimentos sociais e projetos que ultrapassem a dimensão eleitoral e que vivam o mundo real. Ou seja, fortalecer as mulheres nos seus espaços.

 

Simplesmente colocar mulheres na esfera política eleitoral é um equívoco e um erro, porque elas serão engolidas pela máquina, descoladas do mundo real e cooptadas, que é o que vem sendo feito. É preciso inverter tudo em outra direção política, na direção de uma política real.

 

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