Trevas antropocêntricas: a humanidade que incendeia o Planeta para acender suas luzes

Em mais um encontro do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – Construindo uma Geofilosofia de Gaia, promovido pelo IHU, Dominic Boyer desafia a pensarmos a geração de energia diante da crise climática

Imagem: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 24 Outubro 2022

Não pode ser certo. Aliás, é evidente que está errado e algo muito perverso está em curso. Paremos por um minuto e 48 segundos para assistir ao vídeo abaixo, compartilhado pelo antropólogo Dominic Boyer, da Rice University, nos Estados Unidos.

 

 

Boyer, que nessa segunda-feira, 24/10, às 10 horas, profere a palestra “Repensando a Energia em Tempos de Crise Climática”, dentro do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – Construindo uma Geofilosofia de Gaia, exibe cenas de cidade de Manchester, no noroeste da Inglaterra, em que todos os cenários aparecem manchados por uma fumaça espessa e escura.

Manchester, no contexto da ilha britânica (Mapa: Wikipédia)

Não por acaso, foi essa a cidade que no século XVIII se tornou um potente polo da indústria têxtil erguido sobre máquinas a vapor em plena Revolução Industrial. Na época, enquanto a alta produtividade e a qualidade dos tecidos impressionavam o mundo, canais e córregos eram empesteados de rejeitos da indústria e o ar era tão denso que parecia que se vivia em trevas. Mas, pelo visto, de lá para cá pouca coisa parece efetivamente ter mudado. E isso tudo sem falar das condições insalubres de trabalho que esse modelo gerou.

 

Mesmo com todos os dados acerca da degradação do Planeta pelas ações humanas que a ciência tem nos fornecido, a humanidade parece ignorar que estejamos praticamente incendiando Gaia para acender nossas lâmpadas. Ou seja, em plena crise climática ainda é um desafio falar da necessidade de fontes alternativas de geração de energia. A jovem ambientalista Greta Thunberg, reconhecida mundialmente por suas caminhadas e protestos nas chamadas “Fridays for Future”, em um dos textos do livro que está preparando, reproduzido recentemente pelo IHU, também chama atenção para esse descalabro. “O fato de três bilhões de pessoas usarem anualmente menos energia per capita do que um refrigerador americano padrão nos dá uma ideia de quão longe estamos atualmente da equidade global e da justiça climática”, aponta.

 

Mesmo em nosso país, estado ou cidade podemos rapidamente puxar pela memória e listar uma série de eventos extremos que cientistas já tomam como certo que seja uma consequência do desequilíbrio climático. É evidente – e não faltam estudos que indicam isso – que toda ação humana tem contribuído para esse desequilíbrio, mas a geração de energia está entre as mais nocivas dessas atividades. Para ficarmos só num exemplo, a revista Nature Communications publicou um estudo, reproduzido pelo IHU, que conclui que a adaptação às mudanças climáticas exigirá mais energia do que o estimado anteriormente, levando a maiores investimentos e custos de energia. Por isso, qualquer esforço de investimento em energias mais limpas e de racionamento energético é bem-vindo e representa menos pressão sobre o clima.

O vídeo publicado pelo Prof. Dominic Boyer soa como um alerta, uma imagem que revela que, enquanto agirmos assim, haverá sempre uma nuvem negra em nosso horizonte. E mais: parece revelar que estamos numa transição, num fim de uma era. Como diz na apresentação de seu livro Hyposubjects on Becoming Human (2021), escrito com Timothy Morton, está no fim o tempo dos hipersujeitos, que podemos compreender como sujeitos modernos, nós e a nossa humanidade como conhecemos. “Seus cultos de fogo e morte no apocalipse do deserto não vão salvá-los desta vez. Enquanto isso, o tempo dos hipossujeitos está apenas começando”, anuncia [aqui em tradução livre].

Nessa obra (disponível em PDF acima), a definição de Boyer oferece chaves importantes para pensarmos o humano, sua relação com o planeta e dessa a constituição de objetos. Podemos compreender as fontes energéticas e a própria energia gerada. “Os hipossujeitos são as espécies nativas do Antropoceno e só agora estão começando a descobrir o que podem ser e se tornar”, definindo, assim, esses sujeitos em descobrimento. “Também são multifásicos e plurais: ainda não, nem aqui nem ali, menos que a soma de suas partes. (...) Eles não perseguem ou fingem conhecimento ou linguagem absolutos, muito menos poder. Em vez disso, eles jogam; eles se importam; eles se adaptam. (...) Os hipossujeitos são necessariamente feministas, coloridos, queer, ecológicos, transumanos e intra-humanos”, completa.

Saiba mais sobre Dominic Boyer

Antropólogo especializado no estudo de energia, clima, política e sociedade. Com a Profa. Dra. Cymene Howe, Boyer concluiu recentemente um grande projeto de pesquisa de campo sobre a cultura política do desenvolvimento de energia eólica no sul do México. Atualmente pesquisa modelos concorrentes de fornecimento de eletricidade e suas implicações sociais na Europa, Estados Unidos e América Latina. Com o Prof. Dr. Mark Vardy, realiza pesquisa de campo, em Houston, com vítimas do furacão Harvey.

Seu trabalho anterior dizia respeito à prática do jornalismo de notícias na Alemanha e nos Estados Unidos e demonstrou como a ascensão da nova tecnologia da informação digital esteve combinada com a disseminação de regimes de política neoliberal para perturbar profundamente os padrões de produção de notícias e circulação de notícias da era da transmissão, forçando os jornalistas de notícias a reinventarem suas experiências e autoridade. A pesquisa comparativa futura, também com a Howe, concentrar-se-á nas dimensões culturais e sociais da perda de gelo e do aumento do nível do mar em todo o mundo.

Dominic Boyer

Foto: America Academy

Antes de ingressar no corpo docente da Rice em 2009, Boyer lecionou na Universidade de Cornell e na Universidade de Chicago. Foi bolsista visitante na EHESS-Paris, na Universidade de Frankfurt e na Universidade de Durham. Boyer recebeu doações e bolsas da National Science Foundation, da Alexander von Humboldt Foundation, da Fulbright, do Social Science Research Council e da Wenner-Gren Foundation.

Além de editar a série de livros Expertise: Cultures and Technologies of Knowledge (Cornell University Press) e Energy Humanities (Johns Hopkins University Press) e liderar o coletivo editorial da revista Cultural Anthropology (2015-2018), Boyer é autor de Espírito e sistema: mídia, intelectuais e a dialética na cultura intelectual moderna alemã (Chicago UP 2005), Entendendo a mídia: uma filosofia popular (Prickly Paradigm, 2007) e The Life Informatic: Newsmaking in the Digital Era (Cornell UP, 2013). Em 2019, lançou Energopolitics: Wind and Power in the Anthropocene, pela pela Duke University Press.

Livro mais recente de Boyer (Foto: divulgação)

Ele coorganiza e produz o podcast Cultures of Energy do CENHS desde 2016. Em 2018 estreou seu primeiro filme, “Not Ok”, que fala sobre a perda da primeira grande geleira da Islândia devido às mudanças climáticas.

 

Assista a conferência

 

 A guerra

Na conjuntura atual, quando falamos em energia e transição energética, não podemos desconsiderar os efeitos da invasão russa à Ucrânia e todas as sanções e disputadas envolvendo energia, para além do terror da guerra. Sob ameaça de interromper o fornecimento de gás para a Europa, a Rússia eleva o tom num jogo complexo. Se antes o mundo parecia caminhar para a geração de energias limpas, descontinuando o uso de combustíveis fósseis, agora o cenário é outro e até o velho e nocivo de carvão passou a ter seus usos reeditados.

Ainda em março de 2022, quando ate os mais céticos não supunham que essa guerra iria tão longe, o sociólogo, membro do Observatório de Ecologia Política da Venezuela, Emiliano Téran Mantovani, em artigo reproduzido pelo IHU, advertia: “O conflito na Ucrânia ocorre em meio a uma crise energética global, já de longa data, e contribui para intensificá-la. Pode tal crise energética ser também um fator que contribuiu para desencadear esta invasão? No mínimo, o fator energia também serve como pano de fundo do conflito. Por um lado, a Europa se aproxima de um limite perigoso de insegurança energética, por outro, no campo do gás também vem sendo travada uma batalha na qual, além da Rússia, participam os Estados Unidos”.

Novamente, a jovem Greta Thunberg parece ser a voz dissidente, ou uma hipossujeita, seguindo com Dominic Boyer, ao afirmar: "tornamo-nos dependentes e criamos uma sociedade na qual não conseguimos olhar para o futuro além de um ano. Não é sustentável. Nas palavras do jurista italiano Luigi Ferrajoli, em recente conferência no IHU, precisamos elementarmente da paz, mas também da concepção de uma Constituição da Terra. “Uma Constituição da Terra pode parecer uma utopia, mas é a única alternativa realista à catástrofe que ameaça o futuro da humanidade. Temos desafios globais que não fazem parte da agenda dos governos, mas que dizem respeito às condições básicas da sobrevivência humana. Por exemplo, o perigo dos conflitos nucleares”. 

 

Questão energética não é dilema novo

Crise energética, ameaças no uso de energia a base de combustíveis fósseis são temas recorrentes no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Triste é perceber que, passados anos, muito pouco do debate tem avançado e, menos ainda, se materializado em ações concretas. Para se ter ideia, em setembro de 2007 a revista IHU On-Line questionava: Energia para quê e para quem? A matriz energética do Brasil em debate.

Considerando somente a IHU On-Line entre as tantas publicações do IHU, este foi um tema que voltou à capa no ano seguinte, sob a manchete: Alternativas energéticas em tempos de crise financeira e ambiental.

E isso sem levar em conta as abordagens acerca da energia nuclear, como a edição de marços de 2011, que trazia como tema de capa: A energia nuclear em debate.

A abordagem a partir das fontes alternativas de energia é ainda mais recorrente, basta ver o tema de capa da IHU On-Line na edição de julho de 2003: Sol, vento, hidrogênio... a busca de alternativas energéticas.

No entanto, a entrada na segunda década dos anos 2000 e o arrefecimento da crise climática fez surgir outras abordagens e sinalizações que podem indicar caminhos ao debate da geração energética sem que isso acelere ainda mais a destruição da Terra. Uma dessas abordagens é a do jesuíta e economista Gaël Giraud, que pensa não só a questão energética, mas também a necessidade de realmar a economia, pensando uma economia para a vida e não que mata, como diz o Papa Francisco. Há cinco anos, quando esteve no IHU, Giraud apresentou suas perspectivas sobre os movimentos futuros de um capitalismo e a necessidade de o atravessar com as lógicas da sustentabilidade.

 

Em 2021, Giraud volta como conferencista no IHU para falar de justiça socioambiental, com a palestra “Renda Universal e Justiça Socioambiental – fundamentos econômicos, éticos e teológicos”.

 

Mais recentemente, Gaël Giraud tem se dedicado a refletir sobre as formas de enfrentamento daquilo que considera uma crise ecológica, pela qual também passa uma crise energética. Em A revolução doce da transição ecológica: como construir um futuro possível [tradução livre], seu novo livro-manifesto publicado pela Livraria Editora Vaticana, Giraud defende fortemente a perspectiva de olhar para o mundo dos bens comuns, não considerando o planeta como um conjunto de bens privados – ar, água, solo, recursos naturais, mas também a saúde global, até mesmo o corpo humano, pois isso pode favorecer o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, mais sustentável e capaz de futuro.

 

 Veja mais alguns textos publicados no site do IHU que discutem a questão energética

A próxima conferência do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – Construindo uma Geofilosofia de Gaia, será dia 14 de novembro, com o professor Vito Mancuso

 

Reveja as conferências anteriores do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – Construindo uma Geofilosofia de Gaia

 

 

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