28 Setembro 2022
Plásticos, resíduos eletrônicos, lixo tóxico, objetos jogados no aterro. Nas últimas décadas, a crise ecológica levou artistas contemporâneos a construir suas obras com o rastro que a atividade humana deixa todos os dias para nos colocar diante das urgências da crise climática. A arte tem esse poder.
É o que defende Amanda Boetzkes, filósofa da arte e a estética que se dedica a pesquisar as relações entre a percepção humana e o meio ambiente. De fato, esta professora da Universidade de Guelph (Canadá) sustenta que a arte em si é constitutiva de uma consciência ecológica e não uma extensão dela.
Em seu livro mais recente, Plastic Capitalism (The MIT Press), Boetzkes percorre as obras de artistas como Thomas Hirschhorn, Francis Alÿs e Song Dong para mapear a arte dos resíduos e criticar um sistema econômico global que se concentra em reduzir emissões e frear o gasto de energia, enquanto segue promovendo o consumo acelerado e em massa.
A entrevista é de Jorge Ratia, publicada por Ethic, 23-09-2022. A tradução é do Cepat.
‘Plastic Capitalism’ é uma crítica categórica à cultura do desperdício. O que a motivou a escrever um ensaio tão complexo sobre estética e lixo?
Minha motivação vem do típico solilóquio que cada indivíduo mantém em relação ao meio ambiente. Alguns sentem a ansiedade de que a crise climática é grande demais para fazer algo a respeito e se resignam; outros concluem que devem fazer o máximo possível e carregam nos ombros algumas responsabilidades inatingíveis. São os dois extremos de um enorme espectro, e a arte está dando forma física a esse dilema.
O livro busca dar voz e analisar esses artistas que tinham algo a dizer sobre a condição ecológica, o que não é o mesmo que ativismo ambiental. Sem dúvida, a arte pode nos dizer muito sobre os resíduos e vice-versa.
Um dos axiomas é que “a arte é constitutiva da consciência ecológica e não uma simples extensão dela”. O que significa?
Que a arte inevitavelmente muda a forma como olhamos e, com isso, a forma de entender a realidade ecológica. É uma lente que nos permite ver de perto a toxicidade presente e, por sua vez, criar realidades alternativas. Dito de outro modo, um projeto artístico e um artigo científico representam o sistema de descartes de uma forma completamente diferente.
A arte oferece uma ilustração da informação que dispomos, uma experiência estética que motiva a conscientização ambiental. É uma função inerente, constitutiva, e é com isto que se muda o paradigma social e político.
Se a arte muda nossa forma de ver, como acontece com a crise climática, também teve função semelhante em crises anteriores?
A arte faz parte da história. Contribuiu e contribui para a política revolucionária porque tem um poder especial para organizar a sociedade. Habitualmente, é exercida com maior fervor em coletivos oprimidos, razão pela qual em séculos passados sempre teve o papel de estourar os sistemas imperantes. Então, sim, a arte sempre foi imprescindível durante as crises sociais. Em definitivo, é um recurso para entender a política.
Quem inspirou a revolução artística na luta ambiental?
Para mim, os pioneiros em ecoarte – entendida como o ponto de união entre ciência e estética – são Helen e Newton Harrison, conhecidos como The Harrisons. Foram figuras muito transgressoras do século XX (ela faleceu em 2018 e ele em 2022) porque trabalharam durante 40 anos com biólogos, arquitetos, ecologistas etc. para criar obras conjuntas que davam visibilidade a algum aspecto concreto da biodiversidade. Escolheram a arte para transmitir ciência e foram um sucesso total.
Quais são as vantagens e desvantagens da arte como ferramenta comunicativa em comparação a outros meios de comunicação?
A arte, felizmente, pode fazer coisas que não estão sendo feitas em outros setores. Um bom exemplo é o CICC (Court for Intergenerational Climate Crimes). É um projeto que foi realizado em Amsterdã e que consistia na recriação fictícia de um tribunal para julgar multinacionais holandesas por seus “crimes climáticos”. Graças a esse teatro, a essa justiça simulada, cria-se consciência e consequentemente são provocadas mudanças.
Ao contrário, em julgamentos reais não encontramos essas sentenças e em qualquer setor profissional com alto poder de decisão esses acontecimentos são ignorados. Agora, o fato de que a arte gere uma mudança de mentalidade não significa que seja a única coisa, nem a mais importante. A mudança precisa ser financiada, aprovada por lei... Claramente, a arte fica manca no âmbito econômico.
‘Plastic Capitalism’ é uma chamada de atenção à cultura ocidental?
Para ser honesto, é uma chamada de atenção à cultura ocidental e seu legado colonizador. Busca explicar a união entre nossa cultura e a economia global do petróleo, cujos sedimentos são os resíduos plásticos.
Por outro lado, é uma chamada de atenção para a insignificância da sustentabilidade individual, pois a reciclagem que se faz em casa não é nada sem o esforço das grandes empresas. Também é um imperativo que chama à ação coletiva: precisamos nos reorganizar como espécie urgentemente para gerar um impacto positivo.
Menciona as grandes empresas. Qual a sua opinião a respeito do compromisso delas com a saúde ambiental?
Não sou otimista sobre a vontade delas porque é a de ganhar dinheiro. Os lucros econômicos, hoje, provêm da exploração dos recursos naturais. É lei. No entanto, sou muito otimista sobre a vontade popular: as pessoas estão se cansando deste sistema e, pouco a pouco, pressionarão as empresas para que mudem seus processos produtivos. Também sou otimista quanto à espera, ou seja, quanto às gerações futuras.
Acredito que o ativismo atual é liderado por pessoas muito jovens que, sem dúvidas, perderam o respeito pelos antigos líderes. Cedo ou tarde, os jovens vão se desfazer das dinâmicas antiquadas. Em conclusão, logo veremos, se é que já não estamos vendo, a voz adolescente contra a voz das corporações. Como será o debate e como se passará de uma para a outra? Esse é o nosso desafio.
Como teórica da história da arte, seu trabalho costuma flutuar pelo mundo das ideias. Você tem em mente soluções práticas concretas para lutar contra as mudanças climáticas?
Sim. Até há pouco, eu era a representante do Instituto Guelph de Pesquisa Ambiental. É um comitê que tenta unir todas as faculdades da minha universidade para pesquisar os desafios ambientais. Parte do trabalho consistia em administrar um orçamento, e eu pedi para reservar uma parte para destiná-la à inclusão de grupos indígenas da região.
Penso que precisamos adquirir mais conhecimento indígena, aprender com suas experiências, porque o dano ao planeta os afetou de modo específico. Essa é a minha política concreta: a consciência indígena deveria estar muito mais presente na pesquisa científica. Para entender a crise climática, devemos incluir e entender a cultura indígena primeiro.
E ações concretas artísticas?
A arte também precisa de mais contribuição indígena. Precisamente, daqui a um mês, publicarei um livro não acadêmico intitulado Artworks for jellyfish (Obras de arte para medusas) no qual mostro, por meio de um contato indígena que tive, como sua contribuição na arte pode mudar nossa percepção da Terra, do tempo, da história...
Neste sentido, é possível separar a arte com resíduos da política?
Há uma tradição histórica que pretende separá-los. Inclusive, há algo de político implícito na conhecida afirmação de “a arte pela arte” porque, afinal, representa-se uma forma de entender e gerir o mundo. Além disso, na era da pós-verdade atual, os limites entre arte e ideologia estão mais difusos do que nunca.
A política convencional se afasta de qualquer comprovação científica e, ao mesmo tempo, a arte se tornou uma simulação de deliberação política. A estética está cada vez mais envolvida em temas de organização social e em como cada indivíduo se identifica. Na minha opinião, agora a arte é a mediadora entre a estética e a política.
Quem se beneficia mais da outra? A arte da política ou a política da arte?
Em primeiro lugar, a sociedade global se beneficia da arte porque todos nós precisamos imaginar um mundo diferente. Nós nos beneficiamos da criatividade da arte. Mas a arte também mostra realidades.
Dito isso, acredito que o mundo político se beneficia da arte, mas não digo isso de forma cínica, mas, sim, que, por meio da política, a arte preserva sua vontade de mostrar publicamente o que está acontecendo ecologicamente. Além disso, apresenta melhor do que ninguém as nuances políticas de um sistema porque atua com menos restrições morais e com muito mais níveis de complexidade do que a política.
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“A sustentabilidade individual não é nada sem o esforço das grandes empresas”. Entrevista com Amanda Boetzkes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU