"Ambas ocorrem simultaneamente. A democracia cede a “novas” ditaduras. Mas em vez da ideia positivista de “progresso” surge a de justiça social e ambiental. Só uma destas transformações perdurará. Quem quer a segunda precisa frear a primeira", afirma Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 28-07-2022.
Ao longo dos últimos cem anos falou-se muito de transições entre tipos de sociedade e entre civilizações, e construíram-se muitas teorias da transição. Segundo o antropólogo francês Maurice Godelier, a transição é a fase particular de uma sociedade que encontra cada vez mais dificuldades em reproduzir o sistema econômico e social sobre o qual se funda e começa a reorganizar-se sobre a base de outro sistema que se transforma na forma geral das novas condições de existência. As transições mais estudadas nas ciências sociais foram as seguintes: da idade medieval para a idade moderna, do feudalismo para o capitalismo, do capitalismo para o socialismo, da ditadura para a democracia. Nas últimas décadas, com o colapso da União Soviética, têm sido muito estudadas as transições do socialismo de tipo soviético para o capitalismo.
Os sinais dos tempos obrigam-nos a pensar em dois tipos de transição ainda pouco estudados: a transição da democracia para ditaduras de tipo novo; e a transição epocal do paradigma moderno da exploração sem limites dos recursos naturais (a natureza nos pertence) para um paradigma que promova a justiça social e ecológica, tanto entre os humanos como entre os humanos e a natureza (pertencemos à natureza). A primeira transição aponta para uma profunda crise da democracia, enquanto a segunda aponta para a crise profunda dos modelos de desenvolvimento econômico-social que têm dominado nos últimos cinco séculos. São transições de sinal contrário porque, se a primeira transição se consumar, é difícil imaginar que a segunda possa ocorrer. É bom ter isto presente, uma vez que, quem quiser que a segunda transição ocorra, tem de lutar para que a primeira não ocorra. Explicarei por quê.
O modelo de capitalismo que hoje domina é cada vez mais incompatível com a democracia, mesmo com a democracia de baixa intensidade em que vivemos, uma democracia centrada em democratizar as relações políticas e deixando que continuem a imperar os despotismos nas relações econômicas, sociais, raciais, etnoculturais e de gênero. Refiro-me à prioridade dos mercados sobre os Estados na regulação econômica e social; à transformação em mercadoria de tudo o que puder gerar lucro, incluindo o nosso corpo e a nossa mente, as nossas emoções e sentimentos, as nossas amizades e os nossos gostos; relações internacionais dominadas pelo capital financeiro e pelos super-ricos.
O crescimento global das forças de extrema direita é o mais visível sintoma da crise profunda da democracia. Mas há outros: a facilidade com que a guerra de informação impede o pensamento e excita as emoções que incitam ao conformismo ou à revolta contra os falsos agressores; a recorrente eleição de governantes medíocres incapazes de governar e de pensar estrategicamente; o contra-reformismo conservador dos tribunais e a impunidade dos poderosos; a criação artificial de um ambiente de crise permanente cujos custos são sempre suportados pelas classes sociais mais vulneráveis; é o comportamento dos partidos de extrema direita que quanto mais antidemocrático e violento mais lhes permite subir nas sondagens. Não se pode excluir a possibilidade de o agravamento da crise socioeconômica levar ao colapso das instituições democráticas. O que aconteceu no Sri Lanka no passado dia 9 de julho é um aviso perturbador: inconformados com a carestia de vida e o colapso da economia, a multidão invadiu o palácio presidencial e o presidente, incapaz de resolver os problemas do país, fugiu para o estrangeiro.
A desfiguração da democracia é cada vez mais patente. Tendo como original objetivo garantir o governo das maiorias para benefício das maiorias, a democracia está a ser convertida num governo de minorias para benefício das minorias. Se no início da invasão da Ucrânia se fizesse um inquérito à opinião pública europeia sobre a continuidade da guerra ou a imediata negociação da paz, estou certo que a resposta a favor da paz seria avassaladoramente majoritária. No entanto, aí está a continuidade da guerra com a sua incontestável e, até agora, única certeza: os grandes derrotados são o povo ucraniano e os restantes povos europeus. Nada disto vai ocorrer em vão. Será bom tomar nota desde já que foram os governos mais autoritários (Hungria, Turquia) e os partidos de extrema-direita os que menos entusiasmo mostraram pela vertigem bélica e antirrussa que os neoconservadores norte-americanos conseguiram impor na Europa através de uma guerra de informação sem precedentes. É assim que, em nome da democracia, se promove a autocracia.
As novas ditaduras que se vão anunciando no horizonte não proíbem a diversidade política partidária; eliminam antes a diversidade ideológica entre as diferenças partidárias. Não eliminam a liberdade; reduzem esta a um menu de liberdades autorizadas. Não hostilizam o exercício da cidadania; induzem os cidadãos a hostilizá-lo ou a ser-lhe indiferente. Não reduzem a informação; aumentam-na até à exaustão pela repetição sempre igual e sempre diferente do mesmo. Não eliminam a deliberação política; fazem com que ela seja tanto mais dramática quanto mais irrelevante for a deliberação, deixando para entidades não democráticas as “verdadeiras” decisões, sejam tais entidades Bilderberg, Google, Facebook, Twitter, BlackRock, Citigroup, deep state, etc.
As regiões do mundo que mais intensamente sofrem com a crise ecológica são a África, algumas ilhas do Pacífico e alguns países do sul da Ásia (Bangladesh), mas onde ela tem sido mais vivamente discutida é na Europa e na América Latina. Perante a atual onda de calor e suas consequências, o Secretário-Geral da ONU declarou recentemente que a humanidade está perante uma escolha existencial: “ou ação coletiva ou suicídio coletivo”. Já em fins de maio de 2020, a temperatura ao norte do Círculo Polar Ártico chegou a 26ºC. Um pouco mais ao sul, na Sibéria – aquela região do mundo que se usa como referência de algo muito frio – as temperaturas atingiram 30°C. O gelo do Oceano Glacial Ártico conheceu em 2020 o maior declínio já registrado em apenas um mês.
Entretanto, está em construção um novo continente, o continente dos plásticos em pleno Oceano Pacífico, estendendo-se da Califórnia ao arquipélago do Havaí. Ao longo de muitos milhares de anos, os seres humanos têm-se concentrado nas regiões tropicais e temperadas da Terra. A manter-se o atual ritmo de aquecimento global, entre 1 e 3 bilhões de pessoas estarão nos próximos 50 anos fora do nicho climático onde se concentra atualmente a maioria da população mundial – a zona sul-oriental do continente asiático. Um dos países mais gravemente atingidos pelas cheias associadas às monções é Bangladesh, com cerca de um quarto do seu território inundado, uma situação que afeta mais de 4 milhões de pessoas.
A injustiça ambiental é hoje uma das mais sérias e talvez a menos discutida. O dióxido de carbono (CO2) responsável pelo aquecimento global permanece na atmosfera por muitos milhares de anos. Calcula-se que 40% do CO2 emitido pelos humanos desde 1850 continua na atmosfera. Assim, embora a China seja hoje o maior emissor de CO2, a verdade é que, se tomarmos como referência o período 1750-2019, a Europa é responsável por 32,6% das emissões, os EUA, 25,5%, a China, 13,7%, a África 2,8% e a América Latina, 2,6%. Torna-se cada vez mais evidente que a ação coletiva pedida por Antonio Guterres não pode deixar de ter em conta esta dimensão da injustiça histórica (quase sempre sobreposta à injustiça colonial).
Os modelos de desenvolvimento industrial em vigor desde o final do século XVIII assentam na exploração sem limites dos recursos naturais. As suas duas versões históricas – o capitalismo e o socialismo soviético (entre 1917 e 1991) – foram muito semelhantes na sua relação com a natureza. O produtivismo foi o outro lado do consumismo, e ambos assentaram no crescimento econômico infinito. A Europa recorreu ao colonialismo e ao neocolonialismo para se apropriar dos recursos naturais de que carecia e que abundavam em outras regiões do mundo. Nestas, as elites econômicas e os Estados encontraram na intermediação da exploração nos recursos naturais uma das principais fontes do seu poder econômico. Até hoje.
Na América Latina, este modelo econômico é atualmente designado por neoextrativismo para o distinguir do extrativismo que dominou durante o período do colonialismo histórico. Neste continente, está aberto o debate sobre a transição deste modelo de desenvolvimento para outro, ecologicamente sustentável, designado por bem viver, uma expressão trazida ao debate pelo movimento indígena. É ele que mais se tem distinguido na luta por uma outra concepção de natureza assente na ideia de que a natureza é a fonte de toda a vida, incluindo a vida humana, devendo, por isso, ser respeitada, sob pena de cometermos o “suicídio coletivo” de que fala Guterres. Uma das principais linhas de fratura no interior das forças políticas de esquerda é entre aqueles que querem manter o modelo neoextrativista para gerar recursos que melhorem as condições de vida da maioria da população empobrecida, e aqueles para quem este modelo não só destrói a já precária sobrevivência das populações das regiões onde são explorados os recursos, como também perpetua o poder das elites rentistas, agrava ainda mais a desigualdade social e produz o desastre ecológico.
Na Europa, o debate parece limitar-se às modalidades da transição energética. Não está no horizonte a alteração dos modelos consumo. É uma ecologia dos ricos que se satisfaz com carros elétricos, desde que cada família de classe média continue a ter dois carros, esquecendo, aliás, que as baterias dos carros elétricos usam recursos minerais não renováveis (lítio). Para a perspectiva dominante, é anátema diminuir o consumo não essencial ou propor uma economia de não-crescimento.
Referi acima que a crise da democracia e a crise ecológica estão ligadas. A guerra da Ucrânia, ao implicar o aprofundamento da crise da democracia, implica também o aprofundamento da crise ecológica. Basta ter presente como a crise da energia fóssil provocada pela guerra fez evaporar todos os bons propósitos da transição energética e das energias renováveis. O carvão regressou do exílio e o petróleo e a energia nuclear estão a ser reabilitados. Por que é que perpetuar a guerra é mais importante do que avançar na transição energética? Que maioria democrática decidiu nesse sentido?