A diplomacia do Vaticano, a Ucrânia e a ameaça da Terceira Guerra Mundial. Entrevista com dom Paul Gallagher [parte 1]

Foto: Pixabay

20 Julho 2022

 

O arcebispo Paul Gallagher é o secretário do Vaticano para as relações exteriores há sete anos e meio. Em 11 de julho, ele concedeu uma ampla entrevista a Gerard O'Connell, correspondente vaticanista da America Magazine, dos jesuítas estadunidenses, na qual falou sobre a situação geopolítica do mundo, a guerra na Ucrânia e as relações entre a Rússia e o Vaticano.

 

Ele também discutiu o acordo provisório da Santa Sé com a China sobre a nomeação de bispos, a prisão do cardeal Joseph Zen, a preocupação do Vaticano com a situação na Terra Santa, as relações entre a Santa Sé e os Estados Unidos, a adesão da Santa Sé à ONU convenção sobre mudança climática, a visita do papa ao Canadá e possíveis visitas papais a outros países. Ele concluiu descrevendo os desenvolvimentos que gostaria de ver no mundo nos próximos dois ou três anos.

 

A entrevista será apresentada em três partes: confira a segunda e a terceira parte.

 

Parte I: Um mundo em conflito

 

Falando de seu ponto de vista no Vaticano e de suas reuniões ao longo dos anos com chefes de Estado, ministros de governo e líderes religiosos de todos os continentes, o dom Gallagher expressou sua profunda preocupação com os conflitos e a polarização em países de todo o mundo. “Estamos chegando a uma situação muito perigosa em todo o mundo”, disse ele, “e não seria preciso muito para piorar ainda mais as coisas” e chegar a “um mundo em conflito”. Ele enfatizou a necessidade urgente de “fazer nossas instituições multilaterais funcionarem melhor” e defendeu um engajamento vigoroso nos níveis político, diplomático e eclesiástico “para curar” os conflitos.

 

Ele falou sobre a guerra na Ucrânia e sua recente visita àquele país, bem como as relações entre o Vaticano e o Kremlin. “É difícil ver uma solução no horizonte”, disse ele, enfatizando a necessidade de “manter viva a esperança de diálogo e negociação”. Ele confirmou que o papa pretende visitar Kiev, talvez já em agosto.

 

A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por America, 18-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Como secretário para as relações com os Estados desde novembro de 2014, você obteve uma visão extraordinária da situação em todo o mundo. Como você lê a situação geopolítica no mundo hoje?

 

Acho que é uma situação de conflito e polarização sem precedentes. Voltando à expressão inicial do papa de que estamos vivendo a “Terceira Guerra Mundial em capítulos”, todos pensaram que ele estava falando bobagem ou pelo menos com muita imprudência, mas está tudo certo. Outro dia dei uma palestra para um grupo de religiosas e pegamos quatro mapas de diferentes partes do mundo. Eu passei pelos países com elas, e foi incrível como em quase todos os lugares do mundo existe algum tipo de conflito; pode não ser uma guerra, mas pode ser uma polarização social ou um conflito entre diferentes sistemas políticos dentro de um país.

 

Mas, certamente, a coisa mais preocupante, o perigo real é que você tem centros de conflito ao redor do mundo, e há o perigo de você ter uma espécie de infecção cruzada e que todos os pontos de repente se unem, e nos encontramos em um mundo em conflito, não apenas regiões ou países e continentes, mas um mundo em conflito. Acho que essa é a realidade hoje. Acho que é nisso que devemos trabalhar, seja em nível político, diplomático ou eclesiástico, temos que reconhecer a realidade desse conflito e tentar curá-lo.

 

O papa disse que efetivamente estamos na Terceira Guerra Mundial. É assim?

 

Eu não acho que temos formalmente a Terceira Guerra Mundial porque para ter uma guerra você tem que declarar guerra. Mas certamente estamos chegando a uma situação muito perigosa em todo o mundo e, como sabemos, não seria preciso muito para piorar ainda mais as coisas. Portanto, acho que temos que trabalhar agora, não apenas dizendo: “Se as coisas piorarem em alguns anos, talvez tenhamos que fazer alguma coisa.”

 

Temos que tentar fazer com que nossas instituições multinacionais e multilaterais funcionem melhor. Temos que tentar fazer com que as Nações Unidas – ONU sejam incisivas no enfrentamento e na resolução de alguns problemas do mundo. E se necessário, talvez essas instituições tenham que ser reformadas. Por exemplo, aqui na Europa, a Organização para Segurança e Cooperação – OSCE está mais ou menos paralisada. Temos que trabalhar para isso, acho, de alguma forma, tornanda-os mais eficientes e proativos.

 

Você concorda que o multilateralismo desmoronou em grande medida nestes sete anos e meio desde que você se tornou secretário para as relações com os Estados?

 

Desintegrado não é a palavra certa, mas acho que foi severamente debilitado. No mínimo, ainda temos instituições, ainda temos alguma boa vontade; mas, sim, o mundo possivelmente não foi bem servido por essas instituições. O papa, no entanto, está muito comprometido com o multilateralismo. Ele acredita no sistema multilateral, mesmo que, creio, acredite em um sistema multilateral reformado e renovado, mais responsivo aos desafios do século XXI.

 

As pessoas sempre falam sobre organizações baseadas em regras, mas, obviamente, as pessoas se tornaram exigentes com as regras: eu sigo as regras se isso me convir; senão, não sigo. E isso é muito perigoso. Infelizmente, nestes sete anos e meio em que trabalho, embora muitas coisas tenham progredido em alguns aspectos, ao mesmo tempo, em geral, nas relações internacionais há uma profunda crise. Ao reconhecer a crise e voltar ao antigo significado de crise, temos que aproveitar as oportunidades que a crise atual nos apresenta e fazer o melhor para implementar melhorias e fazer as coisas funcionarem.

 

Você visitou a Ucrânia em maio. Você aprendeu algo de sua visita que você não sabia antes?

 

Foi minha primeira vez na Ucrânia e aprendi muito. Aprendi muito sobre o estado ucraniano. Aprendi muito sobre a Igreja e a religião na Ucrânia. Mas, obviamente, visitei a Ucrânia no contexto da guerra e da invasão, e lá, o que acho que aprendi foi a resiliência do povo, sua determinação, sua coragem. Mas também aprendi sobre o grau de sofrimento que existe. Já estive em outros lugares onde há violência, conflito e morte.

 

Mas lá, embora eu não tenha visto pessoalmente algumas das coisas que foram descritas como acontecendo na Ucrânia nestes meses, fui a alguns dos lugares onde essas coisas aconteceram e vi o grau de destruição em Irpin e o trauma da cidade de Bucha, onde visitamos o local onde os corpos foram enterrados e visitamos uma exposição fotográfica na Igreja Ortodoxa de lá. Isso é o que eu acho que mais me impressionou e entrar nos prédios do governo que estavam todos escurecidos, e as pessoas estavam morando lá embaixo nas partes mais baixas dos prédios com luzes e passagens muito rudimentares, e tudo estava protegido por sacos de areia. Havia muito o que vivenciar. Então, por essa vivência, suponho ter o que aprender.

 

Como você lê a situação hoje na Ucrânia?

 

Obviamente, a guerra continua. É até certo ponto o que as pessoas descrevem como uma guerra de desgaste. Mas há uma grande perda de vidas. É difícil ver uma solução no horizonte. Obviamente, espero e rezo para que uma solução seja encontrada e que isso aconteça por meio da negociação e da diplomacia, com as quais certamente os ucranianos estão comprometidos. Mas é muito difícil para os ucranianos vislumbrar negociações reais neste momento por causa da profundidade do sofrimento e do trauma do povo. Tenho medo de que continue, com perdas de ambos os lados.

 

Acho que cabe à comunidade internacional manter viva a esperança do diálogo, a esperança da negociação. E acho que isso certamente faz parte do papel da Santa Sé neste momento, sem ignorar a violência e o conflito, ao mesmo tempo dizendo: “Por fim, temos que conversar; por fim, tem de haver negociação; por fim, tem que haver a restauração da paz.”

 

Houve alguma aproximação de Moscou ao Vaticano em relação à mediação?

 

Não, não formalmente. Mantemos contatos com a embaixada aqui na Santa Sé. Mantemos contatos, até certo ponto, com as instituições governamentais por meio do núncio apostólico em Moscou. Mas não houve nenhum convite explícito à Santa Sé por Moscou para mediar.

 

O cardeal Pietro Parolin disse que em diferentes momentos, inclusive quando o papa visitou a Embaixada da Federação Russa na Santa Sé, o Vaticano fez vários pedidos ao Kremlin. Houve alguma resposta positiva do Kremlin a algum desses pedidos?

 

Acho que a resposta foi que a posição da Santa Sé é apreciada. A disposição da Santa Sé é apreciada, mas eles não deram esse passo além de dizer: “Sim, vamos falar sobre uma possível assistência, uma possível mediação junto com o lado ucraniano.”

 

E não houve convite de Moscou para o Papa Francisco?

 

Não, não explicitamente. Mais uma vez, acho que houve alguns comentários agradáveis, alguns comentários positivos, mas nada tão explícito quanto um convite.

 

Quando esteve em Kiev, descreveu a Rússia como “a agressora” na Ucrânia e disse que a Santa Sé apoia “a integridade territorial da Ucrânia”. Suponho que você estava falando em nome do papa.

 

Eu estava falando em nome da Santa Sé, e o Santo Padre não me corrigiu até agora sobre o que eu disse em seu nome. Devo salientar que quando falamos sobre o apoio da Santa Sé à soberania e integridade territorial da Ucrânia, essa é a nossa posição, e acreditamos que corresponde à posição do governo. Agora esse é um ponto de partida. Cabe aos ucranianos negociar com os outros, com os russos, obviamente, em particular. Agora, se eles querem modificar essa integridade territorial, é com eles. Mas no que nos diz respeito, entendo que essa é a posição deles até hoje, e a respeitamos.

 

É um princípio que se aplica a todos. Por muitas décadas, por exemplo, respeitamos a soberania e a integridade territorial dos países bálticos durante a ocupação soviética. Nunca mudamos nossa posição sobre isso, e isso foi muito apreciado por esses países, principalmente quando recuperaram sua independência após a queda da União Soviética.

 

Então você não reconheceria uma declaração unilateral de independência das regiões de Donetsk e Luhansk?

 

Não, não reconheceríamos tal declaração unilateral de independência.

 

Você disse na televisão estatal italiana há alguns dias que o Papa Francisco poderia ir a Kiev em agosto? Quão realista é isso?

 

Eu não sei. Eu não sou o papa. Não sou o médico do papa. E ainda temos que fazer a visita ao Canadá. Mas acho que o papa está de bom humor. Ele, sem dúvida, fez grandes progressos em sua mobilidade. Talvez quando voltarmos do Canadá, e com a chegada de agosto, pode ser que ele queira começar a olhar para isso com seriedade e fazer alguns planos.

 

Mas pelo que você sabe, ele está determinado a ir?

 

Sim, ele quer. Ademais, ele acha que deveria ir para a Ucrânia.

 

Apesar da falta de um convite de Moscou?

 

Eu diria assim! As duas coisas não estão ligadas. Poderia ser uma coisa boa se eles estivessem ligados. Mas acho que a principal prioridade do papa neste momento é fazer a visita à Ucrânia, encontrar-se com as autoridades ucranianas, encontrar-se com o povo ucraniano e com a Igreja Católica ucraniana.

 

 

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