21 Julho 2022
Nesta última parte da longa entrevista concedida pelo arcebispo Paul Gallagher, secretário do Vaticano para relações exteriores, ele fala sobre o relacionamento positivo entre o Vaticano e o governo Biden e o significado da Santa Sé aderir à Convenção da ONU sobre a Mudança Climática. Ele também fala sobre a visita do Papa Francisco ao Canadá e a possibilidade de viagens para outros países. Ele conclui expressando suas esperanças sobre como a situação no mundo pode se desenvolver nos próximos dois ou três anos.
Confira também a primeira (traduzida para o português) e a segunda parte da entrevista.
A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por America, 20-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Certamente existem outras áreas além da Terra Santa onde vocês estão trabalhando com proximidade aos Estados Unidos.
Eu diria que nossas conversas com o governo Biden são frequentes, particularmente por meio da embaixada dos EUA na Santa Sé. Eles vêm até nós, nos falam em que estão trabalhando, e nós obviamente tomamos notas e comentamos. Algumas vezes não respondemos aquilo que eles desejam ouvir. Mas é um relacionamento muito positivo, no sentido de que eu não penso que tenho qualquer hesitação de me aproximar deles – seja da embaixada, do Departamento de Estado ou da Casa Branca. E eles não tem qualquer hesitação em fazer o mesmo aqui, o que eu penso que é muito positivo porque nem sempre é assim em relações bilaterais.
Então, comparando com o governo anterior, agora é mais fácil.
Mesmo com o governo anterior, tínhamos muitos diálogos com a embaixada aqui; mas, falando francamente, eu penso que nós não nos encontrávamos tão olho-no-olho como é com este governo atual. Obviamente, nós temos dificuldades com o governo de hoje também, que são muito bem conhecidas. Mas ao mesmo tempo, há outras questões que podemos trabalhar muito bem juntos. A maior parte dos posicionamentos, eu diria, são temas em que ambos os lados reconhecem a importância e algumas vezes a sensibilidade dos temas, e nós temos frequentemente opiniões bem diferentes, mas há um desejo de dialogar.
Você poderia listar algum desses temas?
Bem, eu acho que se você pegar algo como migração. A migração é uma questão muito importante para os Estados Unidos da América; é também uma questão importante para a América Central, que, claro, conheço muito bem. E nós vemos isso de forma diferente. Gostaríamos de ver uma abordagem mais positiva. Os Estados Unidos defenderão sua posição dizendo: “Os Estados Unidos são extremamente generosos em sua política de migração”. Como muitas partes do mundo hoje, eles têm compreensivelmente uma grande dificuldade com a migração irregular, pessoas que atravessam fronteiras. Como você lida com isso?
Às vezes, expressamos preocupação com a forma como as pessoas são tratadas, como às vezes as pessoas que estão nos Estados Unidos há muitos e muitos anos são eventualmente deportadas. Tivemos muita dificuldade em entender isso. Também refletimos muitas das posições dos bispos estadunidenses e do povo católico em suas críticas a essas questões.
A Santa Sé aderiu recentemente à convenção climática da ONU e ao acordo de Paris. Você poderia explicar o significado disso?
Estamos falando da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que é um instrumento jurídico fundamental que inspira o que a comunidade internacional vem fazendo para enfrentar as mudanças climáticas, e seu Acordo de Paris, adotado em 2015. A Santa Sé, a fim de aderir a esta convenção e ao acordo, teve de fazer um esforço enorme. Foi alcançado apenas pela boa vontade dos vários departamentos da Santa Sé e da Cidade do Vaticano trabalhando juntos para tornar isso possível. Isso realmente precisa de reconhecimento. Portanto, para o Estado da Cidade do Vaticano, em particular, este é um momento muito importante.
O que significa no cenário mais amplo é que a Santa Sé foi o último Estado a concordar com a Convenção sobre o Clima e, portanto, essa convenção agora é uma convenção universal; realmente todo mundo está a bordo. Obviamente, os desafios são imensos, mas isso significa que existe a perspectiva – quando em setembro nossa adesão ao Acordo de Paris se tornar efetiva – de podermos participar da 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Sharm el-Sheikh, Egito, novembro de 2022, como Estado-Parte da convenção e do acordo. Isso nos permitirá dar uma contribuição maior e significa que a posição da Santa Sé, que se expressa sobretudo na “Laudato si'”, será muito mais coerente. Com a adesão à convenção, estamos colocando nosso dinheiro onde está nossa boca.
Não vai ser um caminho fácil. Às vezes as coisas são mais difíceis para os estados menores; eles têm algumas mudanças importantes devido à concentração do território. Mas há muita boa vontade. E julgo que poderemos prosseguir na descarbonização com a qual a Santa Sé está comprometida até 2050 e fazer outras melhorias no meio ambiente. Eu penso que isso será uma fonte de encorajamento para muitos outros que estão lutando com essas questões.
Que coisas você gostaria de ver acontecendo no mundo nos próximos dois ou três anos?
Queremos ver o fim da guerra na Ucrânia. Acho que isso é o que causou maior sofrimento, maior dor e maior ansiedade nas últimas décadas. Isso está produzindo várias crises: a crise da cadeia de suprimentos, a crise alimentar, [ameaçando] a segurança em geral, o futuro da Europa. Estou envolvido com todas essas questões.
Sem dúvida, uma das grandes questões será o grão que sairá da Ucrânia e da Rússia agora – ou não sairá da Ucrânia e da Rússia. Qual será o impacto disso em várias partes do mundo, particularmente no norte da África, no Egito? Essas coisas são realmente grandes preocupações.
Eu gostaria de nos ver chegando a um acordo sobre a migração e, particularmente, sobre o tráfico de pessoas na crise migratória.
Eu gostaria de ver o que acabamos de falar sobre Israel e Palestina, onde gostaríamos de ver negociações diretas.
Sei que o Santo Padre deseja muito ver uma maior estabilidade política na América Latina. Gostaria de ver maior estabilidade política na Nicarágua, de onde o núncio foi expulso; isso é para nós uma verdadeira fonte de grande pesar.
Em Myanmar, gostaríamos absolutamente de ver o restabelecimento do regime democrático e gostaríamos de ver o fim do conflito lá, que provavelmente está tirando mais vidas do que sabemos.
Essas são algumas das coisas que vêm à mente. Mas se tivéssemos um mapa aqui, eu provavelmente poderia dizer muito mais.
O que você gostaria de ver acontecer nas Nações Unidas? Desde a criação das Nações Unidas, o Vaticano sempre acreditou que pode ser um lugar real de diálogo e sempre o apoiou. Mas agora vemos a Rússia, um dos cinco membros do Conselho de Segurança da ONU, jogando a carta da ONU na lata de lixo.
Por muitos anos, as pessoas queriam ver uma reforma do Conselho de Segurança, mas isso é considerado impossível pelo controle que os cinco membros permanentes têm sobre esse processo. Mas eu penso que uma reforma gradual da Assembleia-Geral seria bom de ver.
Ao mesmo tempo, acho que temos que ter um pouco de cuidado sobre o quão críticos somos em relação às Nações Unidas. É verdade que talvez a organização tenha dificuldade em encontrar soluções para as situações, mas a ONU também é a organização que traz missões de paz para o mundo, que ajuda as pessoas a sobreviverem em conflitos e ajuda nos problemas de distribuição de alimentos por meio das diversas agências. Nem tudo é desgraça e melancolia. Há muitas coisas que funcionam. Mas há também, compreensivelmente, uma grande frustração com a maneira como a organização é percebida, particularmente fora de Nova York e Genebra.
Como você gostaria de ver o relacionamento entre a Santa Sé e a China se desenvolver?
Gostaríamos que a comunidade católica se encontrasse em condições de dar uma maior contribuição ao futuro e ao bem-estar do povo chinês. Acho que estamos um pouco inibidos pela situação no momento, e acho que o catolicismo, como é vivido por seu povo, tem muito a oferecer. O povo chinês, nas últimas décadas, deu enormes passos na prosperidade material e na criação de suas instituições e na solidez de sua sociedade. Ao mesmo tempo, gostaria de pensar que os católicos podem compartilhar com seus concidadãos chineses as riquezas espirituais que fazem parte de nossa tradição.
Você esteve no Japão. O que você diz ao refletir sobre o assassinato do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe no que é basicamente um país muito pacífico?
O assassinato é muito chocante. Conheci Abe quando fui ao Japão há cinco ou seis anos. Ele foi muito gentil em receber nossa delegação. Seu assassinato abalou a sociedade japonesa em suas raízes. Mas as instituições no Japão são muito fortes, assim como o compromisso do povo com seus valores compartilhados e com suas instituições. E, obviamente, a monarquia ocupa um lugar reverenciado e especial dentro dessa sociedade. Estou muito otimista de que eles vão enfrentar isso.
Estamos às vésperas da visita do papa ao Canadá. Qual é a sua esperança para esta visita? É uma visita delicada.
Bem, faz parte de um processo, não é? Como sabem, representantes indígenas vieram visitar o Papa Bento XVI e tiveram um encontro com ele em 2009. Em março e abril, delegações das First Nations, Inuit e Métis visitaram o Papa Francisco, e a série de audiências que ele concedeu foram boas trocas em ambos os lados. O papa está voltando para enfrentar essa realidade no território canadense.
Como você diz, é uma visita delicada; chamará a atenção para o sofrimento e para algumas das coisas terríveis que aconteceram no passado, particularmente em relação aos povos indígenas e no que diz respeito ao sistema de escolas residenciais. Você não pode prever exatamente o que vai sair disso. Mas certamente esperamos e rezamos que seja mais um passo no caminho da reconciliação que a Igreja Católica no Canadá vem realizando há muito tempo. O Santo Padre está indo para encorajar, expressar profundo pesar e tristeza e pedir perdão pelo que aconteceu no passado.
A visita ao Canadá está acontecendo, mas duas visitas anteriores foram canceladas: ao Líbano e à República Democrática do Congo e Sudão do Sul. Essas viagens africanas provavelmente continuarão em vista, presumindo que a visita ao Canadá corra bem?
Se a visita ao Canadá correr bem, particularmente do ponto de vista físico do Santo Padre, acho que ele irá à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul. Isso foi reafirmado pela visita do cardeal Parolin aos dois países em nome do papa.
Quanto ao Líbano, o papa já deu um entendimento de que visitará o país. Nós nos identificamos muito fortemente com o povo libanês neste momento.
Ele visitará a Índia em 2023 se sua saúde estiver boa?
Como você sabe, o primeiro-ministro Modi fez o convite abertamente quando visitou o Santo Padre em outubro de 2021. Acho que o papa gostaria de ir à Índia; que tem sido uma das suas prioridades nos últimos anos. Teremos que ver o que 2023 traz.
O Papa Francisco disse que pretende ir ao Cazaquistão em setembro e talvez possa encontrar o Patriarca Ortodoxo Russo Kirill. É provável que essa visita ocorra, e Francisco se encontre com Kirill, apesar do apoio do patriarca à guerra contra a Ucrânia?
O papa aceitou o convite do presidente do Cazaquistão para ir ao Congresso das Religiões Mundiais e, se o patriarca for, supõe-se que eles se encontrarão. Mas como eles se encontrarão e em que contexto eles se encontrarão continua a ser visto.
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“O Vaticano tem uma relação muito positiva com o governo Biden”, afirma o chanceler do Vaticano, dom Paul Gallagher [parte 3] - Instituto Humanitas Unisinos - IHU