04 Julho 2022
"A generosidade demonstrada no caso ucraniano [...] não se estende a outros refugiados. Muitos de nós, sobretudo, mas não apenas entre governantes e legisladores, estão formando uma consciência humanitária de corrente alternada e um coração compartimentado, conseguindo fazer conviver emoções de sinal oposto", escreve Maurizio Ambrosini, sociólogo, professor da Universidade de Milão e diretor da revista Mondi Migranti, em artigo publicado por Avvenire, 02-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
São dias sombrios para as viagens de esperança. Pelo menos quatro massacres povoaram o noticiário última semana, encontrando cada vez menos espaço na mídia (não só) italiana: 37 mortos na confusão na fronteira entre Marrocos e o enclave espanhol de Melilla; 53 mortos asfixiados dentro de um caminhão abandonado perto de San Antonio, no Texas; pelo menos 30 desaparecidos, talvez até mais, em um bote afundado na costa da Líbia, entre os quais cinco mulheres e oito menores, enquanto uma mulher grávida morreu após ser resgatada; 20 morreram de sede no deserto, no sul da Líbia, depois que o caminhão em que viajavam parou devido a uma avaria e não conseguiu mais sair, encontrados após duas semanas.
O fio vermelho que liga essas tragédias é o embate cada vez mais severo entre as políticas de endurecimento das fronteiras do Norte do mundo contra a mobilidade humana indesejada e a vontade cada vez mais inflexível de cruzar aquelas fronteiras por parte de algumas parcelas daquela humanidade sofrida que gostaríamos de segregar longe de nós.
Três retóricas se confrontam a esse respeito. A primeira construiu e progressivamente agigantou o nexo entre migração (do mundo pobre) e segurança ameaçada. Os atentados terroristas, quase todos perpetrados por imigrantes de longa permanência ou de segunda geração, muitas vezes radicalizados na prisão ou na internet, forneceram um verniz de legitimação para a repulsão de pacíficos camponeses mexicanos, de sírios desenraizados pela guerra, de afegãos instruídos e perseguidos pelos talibãs, de jovens eritreus ou sudaneses em fuga de governos despóticos.
O último pernicioso estratagema desses discursos com o capacete diz respeito à definição dos migrantes como uma "ameaça híbrida", já usada em excesso no caso dos refugiados presos na fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia e adotada, justamente nos últimos dias, também pelo secretário da OTAN Stoltenberg: famílias com crianças e pessoas em fuga de países como o Afeganistão são comparadas, num imaginário de confronto apocalíptico, com os tanques russos marchando em direção ao coração da Europa.
A segunda retórica coloca o ônus dos massacres apenas se somente obre os cínicos, e certamente culpados, traficantes de seres humanos, e isso também no caso de Melilla, onde os migrantes tentaram romper a barreira da fronteira. Os traficantes simplesmente desapareceriam se houvesse formas autorizadas de acesso ao território europeu ou estadunidense, para pedir asilo ou encontrar trabalho.
Cidadãos do Leste Europeu não precisam mais, desde que seus países entraram na UE ou obtiveram a possibilidade de entrada como turista por três meses, sem necessidade de visto. A cor da pele é, de fato, admitamos ou não, uma barreira adicional e critério de discriminação. A terceira retórica, por outro lado, entre o medo de uns, o fatalismo de outros, uma espécie de complacência de outros ainda, prega que as migrações são como a água: infiltram-se por toda parte e não podem ser detidas.
Infelizmente, os massacres confirmam que as migrações indesejadas são combatidas com crescente determinação, cortando as vias legais de entrada, envolvendo os governos dos países de trânsito, erguendo muros e barreiras nos pontos de passagem mais críticos. Basicamente, os migrantes são em grande parte parados, rejeitados até várias vezes, obrigados a permanências longas e inseguras nos países-tampão, entre o Norte e o Sul do mundo, reduzidos a procurar itinerários cada vez mais tortuosos e infelizmente carregados de riscos.
O ponto também diz respeito aos temidos fluxos de carestias e escassez de alimentos. Se realmente se movem, apesar da relação negativa entre pobreza e possibilidade de partir, encontrarão mais canhoneiras pelo caminho, possivelmente manobradas por países terceiros contratados para a ocasião. Eles encontrarão mais campos de detenção. Encontrarão mais agentes da Frontex armados com todos os recursos tecnológicos e militares disponíveis.
Nesse cenário, demasiadas consciências do mundo ocidental, e talvez ainda mais daquele italiano, parecem entorpecidas, dispostas a aceitar com resignação esses eventos ou temerosas de que uma maior humanidade suscite algumas chegadas a mais.
A generosidade demonstrada no caso ucraniano (140.709 entradas na Itália contra 27.424 chegadas do mar em 30 de junho) não se estende a outros refugiados. Muitos de nós, sobretudo, mas não apenas entre governantes e legisladores, estão formando uma consciência humanitária de corrente alternada e um coração compartimentado, conseguindo fazer conviver emoções de sinal oposto.
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Retóricas e fatos letais. O norte do mundo e as migrações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU