16 Março 2022
A lanterna verde permaneceu teimosamente acesa. Ilumina a noite da floresta de Pogorzelce, onde a zona vermelha começa na fronteira esquecida entre a Polônia e a Bielorrússia, onde o arame farpado separa a Europa da fiel aliada da Rússia de Putin. Outra fronteira de horrores e violência mais ao norte do que aquela com a Ucrânia, por onde tentam passar refugiados sírios e curdos, afegãos, iemenitas e africanos em fuga de guerras e perseguições. Mas para eles a Europa continua a ser uma fortaleza.
A reportagem é de Paolo Lambruschi, publicada por Avvenire, 15-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Bielorrússia do ditador Lukashenko os convidou, concedendo vistos de turista com passagens de ônibus até a fronteira polonesa para colocar a UE em dificuldades no outono passado. A eles se juntaram nas últimas semanas os estrangeiros que fogem de Moscou. Prisioneiros em terra de ninguém em frente ao arame farpado que Avvenire em 15 de novembro havia denunciado no encarte Se esta é a Europa.
Divisa entre a Bielorrússia e a Polônia (Foto: Reprodução | Google Maps)
Do outro lado, os guardas bielorrussos empurram esse exército de pessoas desesperadas, por enquanto algumas centenas, em direção às barreiras, impedindo-os de recuar. A terra de ninguém tem centenas de quilômetros de extensão, até a Lituânia e entre as árvores e pântanos de uma maravilhosa reserva natural, pelo menos 19 pessoas morreram neste inverno de frio e dificuldades. Teme-se que sejam muitos mais. Todos os dias se luta em silêncio para não morrer, contam os ativistas poloneses em contato telefônico com os refugiados.
O que acontece é revelado por um vídeo dramático postado nos últimos dias em um canal do youtube por uma garota cubana que decidiu com outros colegas fugir de Moscou. “Fiquei presa na fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia. Se formos para a esquerda ou para a direita, eles soltam os cães e nos agridem. Não comemos há quase cinco dias e também estamos sem água. Somos seis, duas mulheres e quatro homens. Estamos tentando chegar à Polônia, mas eles não nos deixam entrar. Estamos ameaçados de morte na Bielorrússia. Não há como voltar".
Um relatório de novembro da Human Rights Watch descrevia um quadro crítico, agora tudo piorou com o conflito ucraniano. Desde fevereiro, as passagens foram retomadas nos bosques com cinco ligações de emergência por dia. Os guardas de Minsk estão cada vez mais impiedosos. Mas também há mais.
Vídeos de cadáveres de mulheres nuas na fronteira com a Lituânia circulam nas páginas de jornalistas curdos.
Muitos refugiados contam sobre o desaparecimento de mulheres e crianças, e o espectro do tráfico de órgãos paira sobre tudo. Duas pessoas morreram na noite entre o último sábado e domingo. Uma delas era um jovem camaronês despedaçado pelos cães soltos pelos funcionários da fronteira da Bielorrússia. O outro, um sírio, se afogou em um rio em que foi obrigado a entrar.
Zosia Krasnowolska da Hope and humanity atende remotamente as chamadas de emergência da Bielorrússia de quem está em dificuldade. Tenta alertar socorristas ou ativistas. Os refugiados estão aterrorizados. Quem é visto fotografando ou filmando feridas, violências ou mortes acaba deportado para o bosque dos horrores sem celular. “No final de dezembro, pouco depois do Natal - conta emocionado -, uma mulher iraquiana deu à luz no meio do arame farpado. Uma testemunha me contou. Ela e a criança foram deixadas para morrer no frio, ninguém pôde intervir".
Por outro lado, os guardas poloneses, como os franceses na fronteira ocidental italiana, mandam de volta famílias com crianças pequenas. Mas do outro lado não há a Itália. Na manhã de domingo, 13 de março, três famílias curdas iraquianas foram mandadas de volta para a Bielorrússia. Com elas uma criança de três anos. Zosia não consegue esquecer quatro curdos, pai e mãe com dois filhos, um deles com autismo que permaneceram 14 dias na fronteira e quase morreram de fome e frio. "Eles só queriam chegar à UE para tratar seu filho".
Zosia também observou o aumento das passagens: “Por três razões: o bloqueio das transferências de dinheiro que trancou a ajuda do exterior. O aumento do fluxo de migrantes de Moscou. Finalmente, a propaganda do regime de Lukashenko que deu ordem para empurrá-los para a Polônia e filmar as rejeições para mostrar à opinião pública interna que a UE é má”. Os refugiados que podem arcar com os custos, pagam a um traficante, de codinome Mustafà, que tem muitos passaportes, que organiza viagens em etapas em várias casas na capital bielorrussa Minsk e na fronteira. Mas aqueles que ficam sem dinheiro são espancados e torturados ao vivo pelo telefone como nas prisões líbias para extorquir dinheiro dos parentes. Alguns de seus prisioneiros desapareceram.
Várias centenas de refugiados que permaneceram na Bielorrússia para sobreviver ao inverno foram levados para a base logística próxima à alfândega de Bruzgi, sem água e aquecimento. 95% são curdos iraquianos amontoados em tendas. Os “kapós” bielorrussos não hesitam em estuprar mulheres mesmo na frente de seus maridos.
“Eles foram esquecidos - denuncia Don Andrei Aniskevich, diretor da Caritas Bielorussa - depois do interesse inicial, ninguém mais fala deles. No entanto, eles estão em condições desesperadoras”. A Cáritas e a Cruz Vermelha estão autorizadas a entrar duas vezes por semana para levar roupas, remédios e alimentos para as crianças. "No momento vivem ali cerca de 800 pessoas - explica o sacerdote - e cada vez a distribuição de ajuda é uma experiência dramática".
O conflito torna urgente a evacuação da base e muitas dessas pessoas têm crianças com deficiência que não sobreviveriam lá fora. No campo, por exemplo, há uma família de curdos yazidi cujos filhos sofrem de deformações nas costas impossíveis de serem tratadas por eles e que comportam fortes problemas articulares. Ou um jovem paraplégico iraquiano que sua família nunca abandonará, outro epiléptico com paralisia cerebral que anda com dificuldade, um garoto de 13 anos que sofre de uma forma grave da doença de Crohn que piora com as rações que os militares distribuem uma vez por dia. Em Minsk, os ativistas também conseguiram esconder outros que chegaram da floresta vulneráveis ou em perigo de vida.
"Como 9 jovens sírios, 6 deles cristãos, objetores de consciência - relata a ativista da Gandhi Charity, Silvia Cavazzini, que acompanha as tragédias da fronteira esquecida desde novembro -, correm o risco de serem deportados para sua terra natal ou deixados nas mãos da '4th military band', sírios que apoiam a Rússia na guerra contra a Ucrânia. Um iraquiano com esposa, duas filhas e um filho de dois anos com paralisia cerebral. E um garoto curdo com uma doença ocular autodegenerativa nos olhos, cujos óculos foram quebrados pelos guardas bielorrussos. E depois os cristãos convertidos”. O amor também é perseguido, como o de um casal sírio - ela cristão e ele muçulmano - que deve se esconder para escapar ao repatriamento.
De cada 100 pessoas, apenas 10 conseguem passar, confirma o Grupa Granica, coordenação de 14 ONGs humanitárias polonesas que monitoram a crise humanitária. Estão em uma rede com ativistas locais que usam codinomes para não incorrer no crime de favorecimento da imigração ilegal. Eles podem se mover na zona vermelha e jogam suprimentos de emergência e cobertores térmicos do outro lado da fronteira ou intervêm para salvar aqueles que escaparam dos guardas poloneses, até mesmo escondendo-os por curtos períodos nos sótãos. Contam histórias de celulares roubados ou quebrados pelos guardas, de meninos encontrados com chinelos de plástico e os pés congelados, sem comida ou água por dias. A UE, que algumas centenas de quilômetros mais a sul está se mostrando à altura, deve intervir porque não existem vidas humanas de 'segunda categoria' na Europa. A lanterna verde no início da floresta lembra isso.
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Aqueles refugiados torturados na floresta bielorrussa, dentro da terra de ninguém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU