29 Junho 2022
O Ocidente percebe os destinos de homens e mulheres que fogem do continente africano quando chegam às fronteiras. Vivos, pedindo acolhimento, ou mortos na tentativa de atravessar a Fortaleza.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 28-06-2022. A tradução de Luisa Rabolini.
Europa. Isso também aconteceu há três dias, quando dezenas de pessoas morreram tentando entrar em Melilla, um enclave espanhol no norte da África. O Marrocos fala oficialmente de 23 mortos, organizações não governamentais afirmam que as vítimas são 37 e que trezentas estão feridas, incluindo 49 membros da Guarda Civil espanhola e 57 migrantes que conseguiram entrar em Melilla.
De acordo com um porta-voz do departamento do governo espanhol em Melilla, na sexta-feira passada dois mil migrantes aproximaram-se das cercas para atacá-las e quinhentos conseguiram entrar em uma área de controle de fronteira causando violentos confrontos.
Organizações de direitos humanos acusam as forças de segurança pelo uso indiscriminado da força e divulgaram dois vídeos (confirmados por geolocalização): o primeiro mostra dezenas de corpos e feridos empilhados um sobre o outro ao longo da cerca da fronteira, cercados por agentes de segurança marroquinos em uniforme antimotim. O segundo mostra um soldado marroquino espancando com um cassetete um grupo de migrantes visivelmente feridos, com as roupas rasgadas, deitados no chão enquanto se contorcem de dor.
Mapa da Espanha, com destaque aos enclaves Ceuta e Melilla, que se localizam no norte da África, no território do Marrocos.
Fonte: Wikicommons
Melilla e Ceuta, outro pequeno enclave espanhol no norte da África, são as únicas fronteiras terrestres da Europa com a África, condição que tornou as duas cidades destino de fluxos migratórios significativos nos últimos anos.
As pessoas fugindo de guerras, fome e pobreza tentam alcançar a fronteira de 12 quilômetros entre Melilla e o Marrocos e a fronteira de oito quilômetros de Ceuta - territórios protegidos por cercas fortificadas com arame farpado, câmeras e torres de vigia - na esperança de ultrapassar as cercas e chegar à Europa continental.
Para conter os fluxos migratórios e manter os migrantes longe da fronteira, a Espanha conta há anos com as autoridades marroquinas cujos abusos são denunciados por organizações de direitos humanos, como os abusos da Guarda Civil espanhola que realiza rejeições em massa, proibidas pelo direito internacional.
A Anistia Internacional pediu ontem uma investigação independente sobre os eventos de sexta-feira e as violações em ambos os lados da fronteira, mas tudo indica que as dezenas de corpos sem nomes e nacionalidades ficarão sem justiça nos cemitérios de Sidi Salem, na periferia da cidade marroquina de Nador, na fronteira com Melilla, que estão preparando o espaço para o seu enterro.
Depois que as imagens do massacre foram divulgadas no sábado, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sanchez descreveu a tentativa dos migrantes de entrar em Melilla como um ataque à "integridade territorial" da Espanha e acrescentou que "se há um responsável pelo que aconteceu na fronteira são as máfias que controlam o tráfico de seres humanos”.
Para a organização marroquina de direitos humanos Amdh, no entanto, as mortes são uma consequência direta do recente acordo marroquino-espanhol, apenas algumas semanas depois que os dois lados resolveram um conflito diplomático que durou um ano. Aquela última sexta-feira, de fato, foi a primeira incursão em massa desde que a Espanha declarou seu apoio ao plano de autonomia de Marrocos para a disputada região do Saara Ocidental, eliminando sua posição de neutralidade de década.
Mas para entender o que aconteceu em Melilla é necessário dar um passo atrás para a primavera de 2021. A briga começou quando em abril de 2021 a Espanha permitiu que Brahim Ghali, líder da Frente Polisario pela independência do Saara Ocidental, recebesse tratamento contra o Covid em um hospital espanhol. Gesto muito mal visto por Rabat, que pede que o Sahara Ocidental tenha um status autônomo mas sob soberania marroquina e rejeita o referendo de autodeterminação que a Frente Polisario pede.
Um mês após a notícia de que o líder Ghali estava em Espanha, dez mil migrantes entraram em Ceuta vindos da fronteira marroquina, em frente aos guardas fronteiriços de Rabat que se viraram para o outro lado, no que foi interpretado como um ato de retaliação ao governo de Madrid.
Como contra resposta, a Espanha aprovou um empréstimo de 30 milhões de euros de ajuda ao Marrocos para a polícia de fronteira. Um acordo nos moldes daquele assinado entre a União Europeia e a Turquia, pago para conter a onda de migrantes nas costas europeias após a crise migratória de 2015, ou aquele assinado pelo governo Gentiloni com a Líbia para financiar centros de detenção e a guarda costeira.
Após o financiamento para o Marrocos, as chegadas caíram 70%, segundo dados do governo.
Em março deste ano, a Espanha se aproximou de Rabat, revertendo sua posição sobre o Saara e apoiando o plano marroquino para resolver o conflito no Saara Ocidental.
Mapa das fronteiras de Marrocos e Espanha, ao norte da África. Os enclaves espanhois Ceuta e Melilla, fazem fronteira com Tânger e Nador, respectivamente.
Um acordo que poderá revelar-se efêmero - como atesta o massacre de sexta-feira - porque, apesar de o Marrocos já ter recebido, desde 2007, 13 bilhões de euros em fundos de desenvolvimento da União Europeia em troca do controle fronteiriço, é cada vez mais claro que está tentando conseguir mais dinheiro. Em março, após a assinatura dos acordos entre Madrid e Rabat, o ECFR, Conselho Europeu de Relações Exteriores, publicou uma análise intitulada: “Concessões infinitas: a inclinação da Espanha para o Marrocos”. Os autores escrevem que “enquanto a Europa trabalha para defender a ordem internacional contra a invasão total da Ucrânia pela Rússia, é particularmente perigoso para a Espanha apoiar as reivindicações marroquinas sobre o Saara Ocidental, que anexou ilegalmente em 1976. Desta forma, Madrid se expõe a acusações de duplo critério”.
Na semana passada, Jan Egeland, secretário-geral do Conselho Norueguês para Refugiados, divulgou o relatório anual da organização sobre as dez crises mais negligenciadas do mundo, comunidades cujo sofrimento raramente é manchete, populações que recebem ajudas inadequadas e não estão no centro dos esforços da diplomacia internacional.
Este ano, pela primeira vez desde a publicação do relatório, as dez crises estão todas no continente africano. Congo, Camarões, Nigéria, Sudão do Sul, países atravessados por crises crônicas ou décadas de guerras que estão pagando o cansaço dos doadores e o limitado interesse geopolítico dos governos ocidentais. Apesar de uma antiga desatenção sobre essa área do mundo "a seletividade da ajuda raramente foi mais surpreendente do que este ano - escreve Egeland - quando dez crises africanas se confrontaram com a reação à eclosão da guerra na Ucrânia".
A invasão russa da Ucrânia, de fato, mostrou ao mundo a lacuna entre o que pode ser alcançado quando a comunidade internacional se mobiliza e a vulnerabilidade de milhões de pessoas que vivem em países que sofrem com crises alimentares e climáticas combinadas com guerras.
O secretário do Conselho Norueguês para Refugiados escreve ainda que, diante da guerra na Ucrânia, nações doadoras e particulares contribuíram para a operação de socorro em massa, com tanta generosidade que os apelos da ONU foram financiados quase integralmente no mesmo dia em que foram lançados. Para fazer uma comparação, o apelo lançado pelo secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, sobre a emergência alimentar afegã no valor de 4 bilhões de dólares não atingiu - em sete meses - nem a metade da quantia.
O mesmo vale para a ação política. Pela primeira vez em sua história, uma diretiva da União Europeia desde fevereiro concede proteção temporária por um ano a todas as pessoas que fogem da invasão russa.
A milenar distração ocidental ao continente africano e o hábito de se concentrar em uma emergência de cada vez, sem juntar os pontos da história e os fluxos migratórios nos mapas do atlas, no entanto, geram uma deterioração das pessoas que há meses vivem em crises na sombra. É a teoria dos vasos comunicantes. Quanto mais os países doam fundos para a crise da Europa Oriental, menos vão para as crises na sombra. Retirar fundos das crises africana, da crise afegã, significa tornar as pessoas vulneráveis ainda mais frágeis, ainda mais expostas ao risco de viagens perigosas, ao abuso do tráfico de seres humanos, à morte diante das fronteiras europeias, diante de nações que, em vez de encontrar soluções compartilhadas, dependem de países terceiros para se defenderem.
Uma história que infelizmente se repete: a subcontratação do controle de fronteiras em troca de legitimação política e dinheiro, cedendo a países terceiros o poder de pressionar os governos europeus que, assim, se expõem a chantagens potencialmente infinitas.
E o instrumento, em todos os cantos do planeta, são sempre os seres humanos em fuga.
Muitas vezes, como no caso de Melilla, daquelas dez crises todas africanas que o Ocidente está esquecendo, financiando o controle de fronteiras em vez de financiar o desenvolvimento e a assistência humanitária.
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Horror e morte em Melilla se o Ocidente esquecer os dez conflitos africanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU