15 Junho 2022
"A participação cidadã durante o período eleitoral é fundamental e precisa ocorrer de forma qualificada e consciente. Afinal, iremos escolher, nas próximas eleições, quem irá dirigir o país e todos os estados nos próximos 4 anos", escreve Maria Lucia Fattorelli, coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP, em artigo publicado por Extra Classe, 13-06-2022.
Dando sequência à série iniciada com Eleições e Modelo Econômico, neste artigo vamos falar sobre o modelo tributário injusto e regressivo que atua no Brasil, o qual constitui um dos importantes eixos que atuam para produzir escassez para a maioria do povo.
É fundamental que a sociedade compreenda os eixos que sustentam esse modelo, a fim de dialogar com seus respectivos partidos e candidatos nesse período de eleições.
O financiamento do Estado se dá de forma desequilibrada no Brasil, devido às inúmeras distorções do modelo tributário, que concentra carga mais pesadamente sobre a classe trabalhadora e sobre os mais pobres, e concentra arrecadação na esfera federal [1].
A carga tributária de 33,26% do PIB é considerada alta, equivalente à carga cobrada em países de IDH elevado[2], e não é a mesma para todos os setores econômicos. No Brasil, a carga tributária está concentrada principalmente sobre o consumo e a renda do trabalho, livrando da tributação grande parte da renda e do patrimônio dos mais ricos (algo para se pensar em tempo de eleições), como mostra o gráfico.
Adicionalmente, o produto da arrecadação tributária fica concentrada na esfera federal, que faz repasses insuficientes aos demais entes federados por meio dos Fundos de Participação Estaduais e Municipais (FPE e FPM).
A tributação sobre o consumo caracteriza o que se denomina tributação indireta, ou seja, a tributação recai sobre o fato econômico, independentemente da pessoa que participa do referido ato.
Essa incidência tributária sobre o consumo é considerada ruim, porque não obedece ao princípio da capacidade contributiva, ou seja, ao tributar um pacote de macarrão por exemplo, o milionário e o mendigo que comprarem aquele macarrão irão pagar o mesmo tributo embutido no preço do produto, independentemente da imensa disparidade da capacidade contributiva de cada um.
Ademais, considerando que a renda das pessoas mais pobres é totalmente voltada para o consumo de bens de subsistência, a concentração da tributação sobre o consumo torna o modelo tributário extremamente regressivo, fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais tributos que os mais ricos.
Além das diversas distorções existentes no regressivo modelo tributário brasileiro, a injustiça tributária se agrava ainda mais quando analisadas as grandes renúncias fiscais, presentes em todas as esferas, as quais privilegiam setores ligados ao poder econômico, financeiro e político, conforme alguns exemplos citados:
Na União, sobressaem a escandalosa isenção de Imposto de Renda sobre a distribuição de lucros e dividendos aos sócios de bancos e empresas que já perdura por 25 anos; a falta de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, e outras benesses tributárias concedidas a setores mais ricos da população, como a dedução de juros sobre o capital próprio, a isenção de remessas de lucros ao exterior e sobre ganhos de estrangeiros que aplicam em títulos da dívida interna brasileira. Recentemente foi concedida ainda isenção a investidores estrangeiros que adquirem ativos no país, privilegiando o arremate, por fundos estrangeiros, de estatais estratégicas que estão sendo privatizadas.
Cabe ressaltar também os incentivos à exportação, que beneficiam principalmente as grandes Trading Company das áreas de commodities (grande agronegócio e mineração) que têm provocado crescente dano ambiental, e outras exportadoras. Na esfera federal os incentivos à exportação contemplam o Imposto de Exportação, IOF, PIS, Cofins e IPI, além de outros benefícios creditícios (empréstimos do BNDES por exemplo). Além disso, as taxas de exploração do meio ambiente são irrisórias (TCFA[3]) e os royalties de minério cobrados no Brasil são os menores do planeta[4].
No âmbito dos Estados e DF sobressai a injustificada isenção de ICMS sobre exportação, com base na Lei Kandir[5], que beneficia principalmente as grandes Trading Company das áreas de commodities: grande agronegócio e mineração. O ressarcimento da Lei Kandir vinha sendo feito de forma pífia e foi completamente revogado a partir da aprovação da Emenda Constitucional 109, deixando os estados apenas com a obrigação de manter a isenção do ICMS sobre exportação, porém, sem o devido ressarcimento, o que reduz significativamente suas receitas. Outras distorções estão presentes na baixa tributação sobre heranças e no escandaloso planejamento tributário envolvendo holdings familiares que inibem a incidência desse imposto; a falta de incidência de IPVA sobre helicópteros, jatinhos, iates, lanchas e outras embarcações e aeronaves de luxo, entre outras.
Municípios têm perdas com as renúncias praticadas em âmbito federal (Imposto de Renda e do IPI[6] por exemplo) e estadual (ICMS[7] e outros tributos), pois parte da arrecadação desses tributos é devida aos municípios. Essa injustiça afeta principalmente os 3.670[8] municípios com população de até 20 mil pessoas, localizados fora da área de influência econômica, o que os torna reféns de apoio estadual e federal. Adicionalmente, os municípios praticam renúncias fiscais de ISS para atrair empresas[9], concedem isenções de ISS para incentivar exportações, e deixam de aplicar a progressividade do IPTU, que possibilitaria arrecadar mais com imóveis de luxo e reduzir alíquotas de regiões empobrecidas.
O resultado desse modelo tributário injusto e regressivo pode ser comprovado em tabela divulgada pela Receita Federal[10], a qual revela que um seleto grupo de cerca de 26 mil contribuintes recebem acima de 320 salários-mínimos ao mês e quase a totalidade dessa renda privilegiada é isenta de tributação. Assim, apesar de ganharem, em média, 717 mil reais por mês, esse seleto grupo ficou isento de imposto de renda, devido à isenção sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios (vigente desde 1996, com a Lei 9.249/1995, intocada por todos os governos desde então), além de outras isenções sobre determinados tipos de fundos de investimento. Essa benesse tributária privilegia os muito ricos banqueiros, latifundiários, grandes empresários e sócios de multinacionais.
Por outro lado, as pessoas que recebem salário equivalente ao mínimo necessário calculado pelo Dieese, de R$ 6.754,33 [11], enfrentam, além do custo de vida (com os tributos sobre o consumo e os efeitos da inflação[12]), o imposto de renda na fonte de 27,5% e dedução de contribuição previdenciária de 14% em média, perfazendo um total de descontos de mais de 40% da sua renda familiar, subtraídas diretamente na fonte.
Portanto, a estrutura do modelo tributário também concorre para o acirramento da desigualdade social e, juntamente com os demais eixos que sustentam o modelo econômico que atua no Brasil (política monetária suicida praticada pelo Banco Central, Sistema da Dívida, e o modelo primário-exportador de commodities da mineração e do grande agronegócio, irresponsável para com as pessoas e o ambiente) produz escassez.
Em razão disso, é fundamental que as pessoas cobrem, nas eleições, de seus respectivos candidatos o enfrentamento das diversas distorções existentes no modelo tributário brasileiro.
Em relação à dívida pública, a Auditoria Cidadã da Dívida elaborou carta aberta aos partidos, acompanhada de questionário a ser respondido por candidatos(as) que participarão das próximas eleições[13].
A participação cidadã durante o período eleitoral é fundamental e precisa ocorrer de forma qualificada e consciente. Afinal, iremos escolher, nas próximas eleições, quem irá dirigir o país e todos os estados nos próximos 4 anos!
[2] O tema da Reforma Tributária foi tratado em maior profundidade no texto de Análise de Conjuntura, disponível aqui.
[3] Em 2016, ao atingir 32,3% do PIB a carga tributária brasileira se situava próxima à média dos países da OCDE (34,3%).
[4] Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), disponível aqui.
[5] Cardoso, Alessandra. Amazônia: paraíso extrativista e tributário das transnacionais da mineração. Publicado por Observatório da Mineração em 27/11/2015. Disponível aqui. Ver também aqui.
[6] A Lei Complementar 87/1996, denominada “Lei Kandir” isentou de ICMS os produtos primários e semi-elaborados, destinados à exportação, com o compromisso de que a União ressarciria tais perdas. Apenas uma pequena parte foi ressarcida e segundo dados do COMSEFAZ (Comitê Nacional de Secretários da Fazenda, Finanças, Receitas ou Tributação dos Estados e Distrito Federal), os estados perderam R$ 548,779 bilhões de 1996 a 2016 (em valores atualizados para 1/7/2017, pelo IGP-DI). Este valor já está subtraído das compensações pagas pela União aos estados. Essa lei beneficia principalmente as grandes Trading Company das áreas de commodities (grande agronegócio e mineração) que têm provocado crescente dano ambiental.
[7] Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2008 a 2012, estados e municípios arcaram com 58% da desoneração do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) promovida pelo governo federal. Com isso, deixaram de receber nos fundos de participação R$ 190,11 bilhões, disponível aqui. O caso, que teria repercussão para todos os municípios do país, foi decidido pelo STF em 17/11/2016, conforme noticiado pelo STF, disponível aqui.
[8] BREMAEKER, François E. J. de. O prejuízo dos Municípios com a renúncia fiscal do FPM e do ICMS. Publicação da Associação Transparência Municipal. Disponível aqui.
[9] Correspondente a 68,2% do total de municípios brasileiros.
[10] Projeto de lei já tentou enquadrar até como ato de improbidade administrativa a renúncia fiscal excessiva. Disponível aqui.
[11] Monitor mercantil: ganham acima de 320 salários mínimos ao mês e quase não pagam imposto, por Maria Lucia Fattorelli. Disponível aqui.
[12] Pesquisa nacional da Cesta Básica de Alimentos. Disponível aqui.
[13] A inflação tem sido produzida principalmente pelo aumento dos preços de combustíveis (devido à aplicação de Preços Paridade de Importação – PPI – pela Petrobras, de forma fictícia, como se importássemos todo o petróleo consumido aqui, o que não acontece, conforme importantes explicações da Associação dos Engenheiros da Petrobras – AEPET – em diversos artigos, por exemplo “Cinco falácias sobre o preço paritário de importação PPI praticado pela Petrobras” e “Petróleo nacional entra com 94% no refino, mas PPI não leva em conta”, disponíveis aqui e aqui) . A inflação corrói a renda da população também devido ao aumento dos preços de alimentos da cesta básica (devido à opção suicida de investir em agronegócio de exportação, em vez de privilegiar a garantia de alimento para as pessoas, isto é, a soberania alimentar), além do aumento de tarifas de energia elétrica (para impulsionar a privatização das empresas estatais de energia) e outros preços administrados pelo próprio governo.
[14] Eleições. Disponível aqui.
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Eleições e modelo tributário injusto e regressivo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU