A metáfora empregada pelo professor Anselm Jappe, no Ciclo de Estudos Decálogo do Fim do Mundo, evidencia a sanha destruidora de uma sociedade capitalista que pode sentenciar seu próprio fim
O professor Anselm Jappe parece realmente gostar de metáforas, mas o fato é que sua narrativa metafórica cria imagens que são didáticas para nos sacudir e colocar diante da realidade que temos vivo. Foi assim em seu livro “A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição” (Elefante Editora, 2021), em que se utilizou da mitologia grega para falar de um nobre sem qualquer ideia de limites que, castigado, vai acabar comendo a própria carne depois de uma fome insaciável. O nobre bem pode ser aproximado ao capitalismo e sua sanha destruído de mundo ou, como prefere o professor, a pulsão de morte que gera numa sociedade com desejos de consumo vazios e insaciáveis.
Anselm Jappe | Foto: Divulgação
Foi dessa analogia que o filósofo e ensaísta alemão, que hoje vive na França e leciona na Itália, partiu para sustentar sua fala na conferência “A guerra e sociedade da autodestruição”, proferida em mais um encontro do Ciclo de Estudos Decálogo do Fim do Mundo, na manhã de quarta-feira (18-05), promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Seu pensamento está apoiado na chamada Crítica do Valor, corrente teórica alemã surgida nos anos 1980 que parte de uma reinterpretação da crítica do capitalismo de Marx, com ênfase nas suas categorias básicas como “valor”, “mercadoria” e “trabalho”, que tem entre os principais teóricos o alemão Robert Kurz (1943 - 2012). “Opto por essa perspectiva de Kurz porque a crítica se centra no lado destrutivo do capitalismo nos mais variados níveis, como o social, o econômico e o ambiental”, esclarece. “Consiste em ir além de uma crítica moral a sociedade capitalista, olhando o lado destrutivo dos ‘soldados’ do capital”, completa.
Robert Kurz, referência na Crítica do Valor | Foto: Wikipédia
Para Jappe, diante dos desafios de nosso tempo, é preciso superar a crítica ao capitalismo que trilha a estrada da luta de classes, no célebre conceito de Marx. “Precisamos ir mais fundo, pensar na mercadoria, no trabalho e no dinheiro, por exemplo”, detalha. No entanto, optar por outros caminhos não significa desconsidera a luta de classes e um dos seus pontos centrais: a desigualdade. O professor reconhece o caráter da injustiça contido no capital e evidenciado pela luta de classes. “Mas não podemos nos limitar a isso”, adverte. “Se olharmos atentamente pela questão da desigualdade, veremos que a sociedade capitalista não inova tanto assim. Outras sociedades, como a feudal e a escravocrata já eram extremamente injustas e desiguais”, reflete.
Por isso, vê como fundamental uma atenção maior a que realmente é novo, disruptivo no capitalismo. “A dinâmica nova que há no capitalismo é a perda de estabilidade. Outras sociedades eram muitos mais estáveis. Poderia haver desastres ambientais, por exemplo na chegada dos colonizadores a América. Mas, essas sociedades sempre voltavam a suas origens, numa circularidade”, explica Jappe. Significa pensar que por mais danos ambientais, problemas sociais e instabilidades econômicas que surgissem em consequência de outros regimes, a sociedade não colapsava porque é como que se “autorreiniciasse” e começasse de novo. No exemplo da chegada do colonizar ao Brasil, por exemplo, há uma freada na destruição ambiental e a própria sociedade escravocrata e mercantil reorganiza sua produção sem quebrar o sistema.
Se olharmos com atenção, reconheceremos que no capitalismo não há essa circularidade, mas sim uma linearidade. “É uma linha que sempre avança e nunca recua”, observa o professor. Além disso, há implicações técnicas profundas do capitalismo. Assim, seguindo com o pensamento de Jappe, a tecnologia sempre traz mudanças para evitar uma quebra no sistema. “Por isso se precisa avançar da abordagem da sociedade de classes, que é muito estável sempre. Temos de olhar para o que desestabiliza e nos obriga a pensar no valor e valoração.”
Com essa abordagem, Jappe crê que ser mais possível responder ao estado de crises sociais, do trabalho, econômica e ambientais que estamos mergulhados. Para ele, não há dúvidas de que esse estado é gerado pelo capitalismo, sua unilateralidade que insufla uma sociedade que ruma para a autodestruição. “O capitalismo só não quebrou por causa dos mercados financeiros, que articulam valores e dinheiro irreal”, saliente. Mas, enquanto isso, o capitalismo vai se alimentando e aumenta seu poder de destruição. “É como se estivessem em alto mar, num banco a vapor e sem ter mais combustível. Então, começamos a arrancar a matéria do próprio casco do barco para alimentar as caldeiras”, compara. Assim, o professor Anselm Jappe apresenta aqueles que considera como alguns dos principais pontos em que a sociedade capitalista produz sua autodestruição.
Esse aspecto econômico é diretamente relacionado ao dinamismo do capitalismo, intrinsicamente ligado ao modo de produção. “De um lado temos uma questão mais concreta da produção e, de outro, uma questão abstrata”, antecipa o professor Jappe. Ele explica que, seja qual for o fruto da produção, há sempre uma quantidade de energia humana empregada para sua produção num determinado espaço de tempo. “Não é o tempo que se produz, mas a energia que se emprega que vai determinar o valor econômico das coisas”, completa. Ou seja, se são necessárias duas horas de determinada energia para costurar um camisa, essa mesma camisa valerá duas horas de trabalho.
Assim seguindo, o valor é quantidade que determina o preço de troca das mercadorias. Isso, pontua o professor, é diferente do que mensurar o valor pela utilidade de determinada mercadoria. Logo, se o tempo de produção diminui, dentro das lógicas do capitalismo, o preço diminui na mesma proporção. Observe que em nenhum momento mais se toca na energia gasta para produzir. E, voltando a reflexão acerca do valor, o professor pontua que se há valor, haverá também o sobrevalor. “Percebe-se que isso está ligado à avidez e não à estrutura econômica que leva em conta o tempo da produção”, salienta.
Para Jappe, a grande descoberta de Marx é a natureza do trabalho. “Muito mais do que a luta de classes”, insiste. O interessante nessa lógica é que a mercadoria se torna rentável por uma quantidade de valor. “Antes, em outras sociedades, também se produzia, mas não se tinha a necessidade de transformar tudo em dinheiro. Em mais e mais dinheiro”, observa o professor. Isso, para ele, faz “a sociedade capitalista cega e irracional ao conteúdo da produção, pensando sempre só na mercadoria”. Com isso, se constitui como uma máquina de produção que avança sozinha, não interessa sobre o que e nem sobre quem. “E veja que uma grande parte do que se produz no mundo é inútil. Se quer o produto por uma necessidade vazia. A sociedade perde o controle de uma forma destrutível com essa produção”, resume.
Outro aspecto destrutível do capitalismo e seus movimentos na sociedade capitalista diz respeito ao trabalho. Ou melhor, a substituição da força de trabalho pela tecnologia. “O trabalho é necessário para produzir mercadoria. Com mais trabalho, temos mais mercadoria. O capitalismo é concorrência e por isso se precisa produzir mais coisas em menos tempo e para isso se faz uso da tecnologia”, explica Jappe. Pensemos num artesão andino tecendo lã para um blusão. Ele fia o fio, faz o novelo e tricota a roupa, gastando um dia nesse processo. Se tiver pelo menos um tear, mesmo que mecânico, em meio dia fia o fio e no resto da jornada produz dois blusões. Imagine se comprar o fio pronto e usar teares automatizados, quanto ele pode produzir num só dia?
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Para o professor, isso abre um paradoxo abissal porque o capitalismo quer intervir na tecnologia para produzir mais e mais. Porém, quanto mais produzir, mais cai o valor de cada produto. “Sempre de aumenta a produção com mais e mais tecnologia e a produção que cada vez menos valor”, conclui. Embora consiga gerar o chamado ganho em escala – com todas as implicações na substituição de humanos por máquinas, embora esse não seja diretamente o foco aqui – tal lógica poderia colapsar o próprio capitalismo. Mas por que isso não acontece?
Anselm Jappe acredita que isso não ocorre porque há a compensação por parte dos mercados. O próprio ganho quantitativo em cima da produção vai compensando o pequeno valor unitário dessa mercadoria produzida. “Para não ir à derrocada, o capitalismo deve aumentar a produção.” E aí entra a troca das forças de trabalho por máquinas, perfazendo nesse caso um bom negócio e repactuando as lógicas de um capitalismo que avançou linearmente cada vez com maior produção. Logo, a tecnologia vai explodir a quantidade de valor e, de novo, vai precisar produzir mais e mais. “O capitalismo precisa expandir essas lógicas da produção para se manter e por isso vai se transformar e abarcar setores da vida social, transformando essas relações em formas lucrativas. Veja, por exemplo, a relação com a educação, sociabilidade, lazer”, analisa o professor.
O professor atenta que a Crítica do Valor chama atenção para o fato de que há 50 anos o capitalismo perdeu seu capital lucrativo e que só sobrevivem graças aos mercados financeiros. “O trabalho vivo, como conhecemos, desenvolve cada vez um valor menor e não contribui para o desenvolvimento do capitalismo, ao contrário do mercado financeiro”, defende. E mesmo apesar disso, Jappe aponta que a Crítica do Valor diz que o capitalismo está indo para sua crise terminal, mas não diz quando isso vai acontecer, tampouco o que o capitalismo fará para se manter. Sua sobrevivência, inclusive, pode custar a sobrevivência humana sobre a terra.
Dessa sanha de produzir mais, precisar de mais e mais para produzir mais e mais, o professor Anselm Jappe compreende que a consequência mais visível está ligada a aquecimento global. Recentemente, o Brasil foi surpreendido por uma tempestade extratropical que foi sucedida por uma grande onda de frio que fez até centro do país gelar num outono mais severo dos últimos 30 anos (No Gama, em Brasília, chegou a fazer 1,5°C). É como que se sugássemos tantos recursos naturais para produzir mais e mais que a Terra colapsou, revelando esse colapso numa desregulação climática.
Em certa medida, o professor vê com criticidade a ideia de antropoceno, que é a incidência da ação humana no planeta como origem na desregulação climática. “O problema não é o homem enquanto tal, mas sim as formas de produção que vai desenvolver desde a instalação das lógicas da sociedade capitalista”, detalha. Logo, ao invés de discutir o antropoceno, Jappe prefere debater o capitaloceno.
Para ele, boa parte do que se fala acerca de ecologia e desequilíbrio climático leva em conta essas questões relacionadas ao capitalismo. “Por isso, não conseguem propor algo que vá além do desenvolvimento sustentável”, observa. Jappe vê essas lógicas, assim como o próprio ecossocialismo, apenas como formas de regulação do capital. “Isso não vai longe porque se usa da mesma estrutura e não se rompe com ela. Isso é a raiz do problema”, analisa. “Por isso estamos afundando numa sociedade que quer apenas produzir cada vez mais e isso gera consequências e respostas do planeta sobre nós”, completa.
Embora veja essa apenas como a face mais visível da crise ambiental e defenda que saiamos dessas base para efetivamente pensar algo novo além do capitalismo, o professor compreende que qualquer tipo de ação para frear a degradação é bem-vinda. “Claro que ações como economia solidária são importantes e devem ser estimuladas. O que proponho aqui é que pensemos além. Uma vez que compreendemos que o capitalismo está nessa base social, precisamos compreender que ele vai se mover para valorar tudo, a filosofia, a arte, a educação, o lazer, o encontro das pessoas. E é isso que precisamos romper. Não tem um modelo pronto”, justifica.
O último aspecto destrutivo do capitalismo abordado pelo professor Jappe tem relação direta com psicanálise, área que já vem flertando desde outros trabalhos, como seu livro “A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição”. Ele associa o sujeito do capitalismo à categoria psicanalítica do narcisismo, aquele que é incapaz de dar conta do mundo em volta de si e trabalha pela sua projeção vendo os outros como relés instrumentos de si. “Psicanalistas apontam aumento de distúrbios narcísicos em vista da neurose clássica”, observa Jappe.
Esses relatos de profissionais da área da saúde mental indicam, segundo o professor, que as reações do capitalismo têm gerado consequências sérias na psiqué em níveis individuais e coletivos. Ele explica que o capitalismo tem um vazio interior. A própria perspectiva mais abstrata do trabalho humano, com as mudanças do capitalismo, tem se esgotado em um vazio. “Esse apagamento no processo de produção tem se configurado como uma luta do indivíduo porque não se vê mais na relação com os outro e isso gera esses vazios”, analisa.
Da ânsia de descarregar os sentimentos que vêm desse vazio, manifesta-se a violência. “É essa violência que se emprega sobre os outros. Veja esses casos de assassinatos em massa em que pessoas invadem escolas, cinemas e shoppings matando muitas pessoas e, muitas vezes, no final até se suicidando. Há um ódio em si mesmo, um vazio”. Por isso, Jappe alerta para movimentos do capitalismo de nosso tempo que fazem com que as pessoas façam de tudo para se satisfazerem ou ocuparem esse vazio. Não por acaso, em seu livro, recupera o mito do nobre que devora a tudo, até a si mesmo.
Filósofo e ensaísta nascido na Alemanha, fez seus estudos na Itália e na França. Além de inúmeros artigos na revista alemã Krisis, é autor do livro Guy Debord, sobre a vida e a obra do pensador e ativista francês (publicado no Brasil pela editora Vozes).
Também publicou o livro As Aventuras da Mercadoria (pela Editora Antígona, de Lisboa) que reconstrói a trajetória filosófica e política da crítica do valor. Outras publicações recentes de Jappe são os títulos Violência, mas para quê? e Crédito à morte, ambos construídos com ensaios publicados por ele em revistas francesas. Esses títulos foram publicados em português, no Brasil, pela editora Hedra.