Eben Kirksey, um dos conferencistas do Ciclo Decálogo sobre o Fim do Mundo, promovido pelo IHU, chama atenção para a vida que há na “virosfera” e como a humanidade ainda tem de aprender sobre simbiose colaborativa
Março de 2020. Muito provavelmente, nessa época, quando começou a receber as primeiras informações sobre a chegada do letal novo coronavírus ao Brasil, você se fechou em casa. O medo da contaminação nos fez crer que cerrados em casa estávamos salvos, mesmo que sozinhos e apartados do convívio social, de nossas rotinas e, até, de nossas próprias vidas como a conhecíamos. Mas, acredite, nunca estivemos sozinhos. Mesmo entre quatro paredes, num ambiente supostamente asséptico, zilhões de formas de vida coabitavam esse local conosco. Aliás, como bem lembra o antropólogo Eben Kirksey, do Alfred Deakin Institute, da Austrália, muitas dessas formas de vida seguiam habitando nosso próprio corpo. “Entramos em contato com cerca de 1 bilhão de partículas virais por dia. Alguns são nocivos, outros não”, pontua.
Kirksey, que proferiu a palestra “manifesto e favor da antropologia multiespécies e das ecologias emergentes”, dentro do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o Fim do Mundo, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, quer chamar atenção para a perspectiva negativa que damos para nossa relação com muitas das formas de vida invisíveis. Afinal, como bem sabemos, nós precisamos dessas formas de vida para sobrevivermos na Terra. Porém, basta uma ameaça de contaminação para, modernamente e lastreados por uma ideia de ciência absolutista, acreditarmos que podermos extirpar muitas espécies para vivermos mais livres e saudáveis. “Isso está presente desde a Filosofia. Heidegger vê o homem como formador do mundo. Sloterdijk vai sustentar que os humanos se movem entre mundos, enquanto animais e plantas se resignam a seus mundos. Na verdade, eles eram cegos para a formação do mundo dos animais, assim como os agentes invisíveis que são postos em mundos apartados”, analisa.
Kirksey: “entramos em contato com cerca de 1 bilhão de partículas virais por dia. Alguns são nocivos, outros não” | Imagem: reprodução Canal do IHU no YouTube
Tal pensamento, reforça o antropólogo, ainda se afixa na história da virologia, que vai associar sempre os vírus a ideias de doença, contaminação nociva e morte. “Isso nos leva a poucas interações sociais ou ecológicas com a chamada virosfera, mas vivemos dentro dela. É isso que fazemos com esse universo vasto e mal compreendido dos vírus”, destaca. Talvez, essa má compreensão esteja associada a um medo do desconhecido, daquilo que não enxergamos. O problema, como aponta o professor, é que somos levados a uma biofobia, que, em última medida, nos move a eliminar outras formas de vida que não a nossa. “Eu também tive medo em março de 2020, me isolei. Mas, ao pensar sobre isso, me reunir com pessoas para discutir o tema, fui aprendendo e trabalhando o medo do biológico. Penso ser esse um caminho para irmos da biofobia à biofilia”, relata.
Nesse exercício de não correr, mas de tentar conhecer os vírus, surgiram as conversas e debates com virologistas, antropólogos, artistas, entre outros estudiosos, e, com isso, Eben Kirksey foi se aproximando da ideia de uma antropologia multiespécie. Assim, foi apresentado aos fagos. Embora, como todos nós, ele já supunha que existem vírus nocivos e outros benéficos à vida humana, conhecer os fagos o revelou uma verdadeira ecologia do invisível. “Mais de 99% da diversidade viral permanece ainda desconhecida e precisa ser estudada. Os vírus, na verdade, são vencedores no jogo da vida”, destaca.
Esses fagos a que ele se refere, na verdade, são virófagos. Consistem em pequenos fagos virais de DNA de fita dupla que requerem a coinfecção de outro vírus. Os vírus coinfectantes são tipicamente vírus gigantes. Os virófagos dependem da replicação viral do vírus gigante coinfectante para sua própria replicação. Ou seja, o fago é como um parasita de um vírus maior e precisa dele para se replicar. Logo, podemos compreender que muitos dos vírus que podem nos infectar, também podem ser infectados pelos virófagos, numa espécie de simbiose colaborativa de vida. Além disso, virófagos ainda estão presentes em moléculas de fundos e outros organismos, mesmo como as bactérias.
Kirksey observa, por exemplo, que muitos organismos marinhos usam os fagos para trocar informações benéficas. Há casos em que essa relação, inclusive, é fundamental para que haja a realização de fotossíntese, trocas gasosas que envolvem CO2 por oxigênio etc. “A contaminação pelos fagos também são importantes para fazer uma espécie de controle. Se, por exemplo, houver uma proliferação grande de plâncton, os fagos realizam uma contaminação mais nociva e ‘matam’ esse excesso de plâncton que, por algum motivo, venceu outra espécie e se proliferou em quantidade. É o que chamamos de ‘matar o vencedor’, isso que o fago faz”, explica.
Sputnik virophage, ou Virófago Sputnik, uma espécie de fago que contamina agentes no interior de um tipo de ameba | Imagem: Flicker CC
O antropólogo não esconde seu fascínio pelos fagos, claramente visível quando faz a descrição desses seres e sua atuação. “Muitos são como espécie de aranhas com pernas e cauda longas e uma cabeça protuberante. Eles envolvem o agente e vão absorvendo o que é preciso. Nessa relação há trocas de informações que são importantes e que mantêm viva essa conexão”, diz. É nesse sentido que Kirksey destaca que é importante se conhecer esse desconhecido. Daí a importância da interdisciplinaridade desses trabalhos, pois são artistas e especialistas em computação gráfica que dão forma aos fagos, o que possibilita não só sua visualização mas também estudos aceca dessa ecologia e teia de relações. “Há uma relação entre o hospedeiro e o fago que personifica a simbiose duradoura. Muitas dessas relações sustentam a vida das pessoas. Nos nossos sistemas digestivo e respiratório, por exemplo, há grande revestimento de um muco que contém muitos desses fagos”, completa.
As reproduções gráficas dos virófagos, segundo Kirksey, ajudam a nos aproximar do desconhecido | Imagem: reprodução EdiUsp
Nessa altura, o leitor deve estar se questionando por que não há um virófago capaz de devorar o Sars-Cov 2, vírus causador da Covid-19. Mas pensar assim é reduzir a complexidade da teia de vida que há nessa ecologia invisível. E mais: Eben Kirksey observa que tanto quanto associar a história da virologia à doença e morte, cientistas das mais variadas áreas foram constituindo uma ideia de que a terra, ou Gaia, é uma mãe protetora que tudo nos oferece para viver. Para ele, é mais interessante seguir o pensamento de pessoas como Isabelle Stengers, que veem Gaia como uma capacidade imensa de autorregulação. Assim, significa que seus movimentos e ajustes da teia da vida visam corrigir desequilíbrios. O problema é que esses movimentos geram reações que podem ser nocivas à vida humana. “Novamente, é a lógica de matar o vencedor”, completa.
Por isso, para ele e seguindo com Stengers, é mais interessante pensar a experiência da pandemia que temos vivido como uma reação de Gaia a nossas ações sobre as formas de vida terra. Afinal, para ambos, Gaia não deve ser vista como uma mãe protetora, mas como um ser que reage a ataques sobre a teia da vida, mesmo que isso implique eliminar algumas formas de vida. Talvez, o que tenha nos levado ao pânico em março de 2020 é o fato de termos, inevitavelmente, sido confrontados com a possibilidade da humanidade ser expurgada pela forma como vem tratando Gaia.
Kirksey traz à cena as discussões sobre o aquecimento global. “Há estudos que já mostram que os cálculos estão errados e que nós não teríamos mais nem até 2035 para controlar a poluição do ar e, consequentemente, o aquecimento”, aponta. “Os vírus, como os que vivem no mar, por exemplo, são indiferentes a nós e vão conceber reações a tudo isso, respondendo de forma ainda pior enquanto nós estamos nos iludindo com algo que pode ser pior do que chegamos a supor”, completa. E, novamente, olhar para essa ecologia do invisível pode ser uma chave para repensar as formas de vida humana e suas relações com outros seres. Não por acaso, as próprias vacinas são vírus inoculados em nosso corpo para que tensionemos reações e, dessas reações, surja imunidade a agentes infecciosos que podem ameaçar nossa vida. “Os vírus estão em nosso DNA, temos registros de infecções passadas que nos protegem de infecções. Isso, e a própria relação com os fagos, têm que ser melhor estudados”, completa o antropólogo.
“Nossos corpos são casas para ecossistemas virais”, observa Eben Kirksey. Nesse sentido, somos hospedeiros deles e nos garantimos a vida. Só que um desequilíbrio pode custar nossa própria vida. Ou seja, se há desequilíbrio externo ao nosso corpo Gaia reage e vírus desconhecidos podem nos infectar ou, ainda, despertar malefícios dormente em que vírus que já temos. Se há desequilíbrio internos ao nosso corpo – o que, inclusive, pode se dar por desequilíbrios externos –, também podemos ‘despertar a fúria’ de agentes virais que nos matam. Então, como conceber formas de simbiose colaborativa entre nós e esses seres invisíveis?
Para o antropólogo, essa é uma resposta que ainda está em construção e que, no curso dessa construção, mudanças ainda podem tensionar a concepção de novos caminhos. “A questão é que precisamos aprender a conviver com os vírus, os conhecendo e admirando e não os temendo”, pontua. “Hoje mesmo, nós estamos numa onda mais branda de Covid-19. Não eliminamos o Sars-Cov 2, mas é com se aprendêssemos a conviver com ele”, completa. Talvez, sejam esses os movimentos de Gaia, a adaptabilidade e a colaboração simbiótica que tenhamos que aprender.
Kirksey ainda faz questão de destacar que não se trata de minimizar o vírus da Covid-19 ou qualquer outro. “É algo muito sério. Meu filho teve Covid e está internado, desenvolveu periocardite. Não acho que tenho que colaborar com o vírus, mas aprender sobre essas relações entre fagos e vírus e entender que isso é uma forma de vida”, diz. Para o professor, não fazer isso alimentar uma visão distópica como a de Covid zero, defendida por muitos países. Isso, ao contrário de entender a vida, alimenta uma biofobia, que consiste em eliminar a vida, ter medo de todas aquelas formas de vida e relações ecológicas que suponhamos que possam nos colocar em risco.
Entre os tantos cientistas de que Kirksey se aproximou, ele destaca o virologista Alexander Gorbalenya, conhecido como Sasha Gorbalenya. “Ele é um dos que tem se questionado: podemos viver em paz com os vírus? Para Sasha, a infecção antiviral pode ser uma forma de se conseguir essa paz”, observa. Por outra forma, infecção antiviral pode justamente ser compreendida como vacina. E uma vacina não está preocupada em varrer da face da terra, matar qualquer tipo de vírus ou organismo vivo. Pelo contrário, é buscar justamente nessas formas de vida chaves que abram caminhos para essa ideia de simbiose colaborativa. “Foi aí que quis pensar nessa ideia de ir da biofobia à biofilia. Quanto mais conhecimento tivermos, mais afastados estaremos da biofobia”, conclui.
Assim, Eben Kirkseye e sua antropologia multiespécies nos afastam de falsos problemas, medo e pavor das formas de vida invisíveis e desconhecidas a nós. Seu trabalho consiste em pensar sobre o conhecimento/desconhecimento do invisível como parte de Gaia tanto quanto somos nós. Não se trata, em absoluto, em recusar a ciência ou quaisquer adventos da Modernidade. Pelo contrário, é fazer esse uso da razão, enquanto seres modernos que somos, para impedir que sejamos cegados por uma ideia onipotente de dominação de toda a vida sobre a terra.
“No momento, estou na Tailândia e tenho visitado muitos templos por conta das pesquisas – pois se entende que esses locais abrigam muitos morcegos e, até pela circulação de pessoas, se imagina como potenciais focos de contaminação. Observo como há nesses locais monumentos como dragões e seres antropomorfos como cisnes com tromba de elefante. Essas figuras estão ali para proteger o lugar do mal de formas de vida invisíveis. Veja como há na Modernidade espaços para que isso se dê. Nesses locais, começo a ver o que tenho chamado de narrativas vivas em oposição à narrativa de doença e morte. É a biofilia eliminando a biofobia”, reflete.
Saiba mais sobre Eben Kirkseye
Antropólogo americano que escreve sobre ciência e justiça. Ele é mais conhecido por seu trabalho pioneiro em "etnografia multiespécies" – uma abordagem para estudar as interações humanas com animais, plantas, fungos e micróbios. Tem uma curiosidade insaciável sobre natureza e cultura. Investigar algumas das histórias mais importantes do nosso tempo – relacionadas à biotecnologia, meio ambiente e justiça social – o levou à Ásia, ao Pacífico e às Américas. Quando estourou a controvérsia sobre os primeiros bebês geneticamente modificados do mundo, falou sobre ética no palco principal da Cúpula Internacional sobre Edição do Genoma Humano em Hong Kong. Mais tarde, ele viajou para a China continental, onde aprendeu sobre as esperanças queer e os desejos impuros que animaram esse experimento com o CRISPR-Cas9.
Eben Kirksey | Foto: arquivo pessoal
Frequentou a Universidade de Oxford e obteve seu Ph.D. da Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Lecionou em algumas das mais renomadas e inovadoras instituições de ensino superior, como a Princeton University e o Deep Springs College, no deserto de High Sierra, na Califórnia. Ajudou na curadoria de várias exposições de arte, incluindo The Multispecies Salon, que viajou de São Francisco (2008) a Nova Orleans (2010), antes de se estabelecer em Nova York.
A Duke University Press publicou seus dois primeiros livros — Freedom in Entangled Worlds (2012) e Emergent Ecologies (2015) — bem como uma coleção editada com as descobertas do The Multispecies Salon (2014). O Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Nova Jersey, recebeu Kirksey no ano acadêmico de 2019-2020, onde ele terminou seu último livro: The Mutant Project.
Atualmente é professor Associado (Pesquisa) no Alfred Deakin Institute em Melbourne, Austrália, onde estuda The Promise of Multispecies Justice, a virada química nas humanidades e a circulação de vírus em mundos multiespécies.
O professor também disponibilizou a sua fala em formato de artigo. Leia-o na íntegra como a edição número 333 dos Cadernos IHU Ideias.
A proposta do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo é discutir, de modo transdisciplinar, os desafios que o novo regime climático do planeta impõe às nossas formas de pensar, conceber e habitar o mundo. Dividido em conferências, a programação do ciclo retoma questões políticas, filosóficas e teológicas sobre a vida no antropoceno, considerando o ocaso e, em certo sentido, o fim/esgotamento da Modernidade.
No centro da crise, o sentido e a autorreferencialidade do ser humano em um mundo em que cada vez mais somos governados pelo que nos habituamos chamar de natureza. Trata-se, portanto, de um debate que leva em conta o deslocamento da política para a dimensão cosmopolítica. Repensar a condição humana diante do novo regime climático e a ameaça da sexta extinção em massa, justamente da espécie humana, pode ser o ponto inicial da discussão aqui proposta.
O Ciclo segue até dia 22 de julho.
A próxima conferência é na terça-feira, dia 17-05, com Profa. Dra. Anna Tsing, da University of California, nos EUA. Seu tema será as novas ecologias do antropoceno. Abaixo, confira o link para conferência com Anna.
Consulte, ainda, a programação completa do Ciclo.