12 Mai 2022
"Se um regime, como o russo, esconde sistematicamente a verdade por mais de vinte anos, reprime o dissenso, abole toda forma de democracia, mata e envenena os opositores, cultiva o sonho da Rússia como baluarte contra a democracia, desencadeia uma guerra no coração da Europa, bombardeia cidades, mata civis indefesos, é realmente necessário levantar dúvidas, perplexidades, questionamentos sobre o massacre de Bucha e os outros que infelizmente se seguirão? Em nome de que concepção abstrata da verdade? Os testemunhos, imagens e histórias do front não são suficientes?", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 11-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em uma entrevista recente, a escritora Edith Bruck, sobrevivente de Auschwitz, denuncia seu desconforto ao ver como as evidências dos massacres de civis indefesos perpetrados pelo exército russo na Ucrânia, em vez de suscitar um coro unânime de indignação, anime crescentes dúvidas e perplexidades. As mesmas que os historiadores definidos como "negacionistas" adotaram para tentar derrubar a existência traumática do Holocausto.
Um manifesto recente que reúne jornalistas de renome e autoridade convida a verificar as provas, proceder com cautela na leitura dos fatos, ater-se a determinadas pistas antes de formular julgamentos e atribuir responsabilidades. Quantas crianças foram realmente mortas? Mulheres estupradas? Homens torturados? Civis mortos? Realmente morreram às centenas no teatro de Mariupol? Quem diz isso? Onde estão as provas? E de quais crimes as tropas ucranianas também são culpadas? Qual é a responsabilidade do governo de Kiev em representar a verdade de forma puramente propagandística?
Nos talk shows televisivos, seguindo o bem-sucedido padrão testado na pandemia, são convidadas vozes dissonantes, divergentes, fora do coro para preservar o espírito democrático do debate. A audiência, como bem sabem os apresentadores, nestes casos ganha significativamente. Primeiro foi a vez dos no vax com suas camisas multicoloridas a defender com vigor os direitos constitucionais pisoteados pelo novo regime totalitário-sanitário que, aproveitando-se da pseudo-pandemia, teria restringido abusivamente nossas liberdades individuais, obrigando milhões de pessoas a submeter-se a uma vacinação com um soro não bem identificado, mas certamente, a longo prazo, mais letal do que a doença que pretendia combater.
Agora é a vez da guerra na Ucrânia. No entanto, a postura permanece sempre a mesma: no centro está o mesmo pensamento antissistema e negacionista. O populismo no vax se transfigura assim naquele da equidistância, senão na defesa aberta de Putin, vítima da maligna ganância do Ocidente. Em suma, deveríamos prestar atenção para a falsificação da verdade que, através da manipulação despudorada da mídia, a reduz a mera propaganda belicista que defende os interesses estadunidenses, uma Europa corrupta e incapaz, a elite financeira, a oligarquia do governo Draghi, a traição do povo, etc.
De fato, duas guerras distintas estão em curso: uma que os exércitos combatem no campo e aquela do conflito das interpretações. Seguindo o afortunado lema segundo o qual a verdade seria a primeira vítima de qualquer guerra - os fatos são tornados irreconhecíveis pela propaganda -, seria apenas graças à nobre figura da dúvida e à necessária e paciente coleta de provas que se poderia reconstruir uma verdade fugidia. Mas o efeito dessa atitude é que a evidência é anulada em um turbilhão de discursos que acaba por anular as responsabilidades ao misturá-las em uma única polpa indistinta.
Não é por acaso que a noção de "complexidade" desempenha um papel retórico crucial nessa batalha de interpretações. O adiamento do julgamento, a reconstrução histórica, a equidistância necessária, a atribuição de responsabilidades iguais aos dois contendores (OTAN e Putin; Rússia e Ucrânia) na realidade joga areia nos olhos. Mas os olhos de Edith Bruck, que já viram o horror, não precisam da nobre arte da dúvida, a elas não servem mais provas para reconhecer um crime de guerra.
Se um regime, como o russo, esconde sistematicamente a verdade por mais de vinte anos, reprime o dissenso, abole toda forma de democracia, mata e envenena os opositores, cultiva o sonho da Rússia como baluarte contra a democracia, desencadeia uma guerra no coração da Europa, bombardeia cidades, mata civis indefesos, é realmente necessário levantar dúvidas, perplexidades, questionamentos sobre o massacre de Bucha e os outros que infelizmente se seguirão? Em nome de que concepção abstrata da verdade? Os testemunhos, imagens e histórias do front não são suficientes?
Mas, diriam os preocupados com a defesa incessante da verdade, alguns detalhes não batem, alguns elementos permanecem contraditórios, nem tudo se encaixa, devemos ter cuidado. "Belas almas de m*", Pasolini lhes responderia, não percebem que aqui está um povo que luta desesperadamente pela defesa heroica de sua terra, ofendida por uma invasão que não pode ter justificativas?
Na desproporção das forças, na injustiça de uma agressão sofrida, na violação cega da intimidade das famílias, nas cidades arrasadas, no atroz sofrimento coletivo, um povo resiste. E vocês realmente acreditam que em nome da busca paciente da verdade seja necessário mostrar a nuance, indicar onde as águas se misturam, as culpas comuns, os enganos e as injustiças recíprocas, problematizar, argumentar para trocar os planos, colocando no fundo o que deve ficar no centro e vice-versa? Isso é o que às vezes acontece mesmo no caso de separações conflitantes entre casais. Existe uma verdade comumente reconhecida: a responsabilidade deve ser sempre distribuída em partes iguais. Mas também há situações clínicas em que a responsabilidade é evidente de apenas uma das duas partes; e, nesses casos, a responsabilidade costuma ser de quem não tem condições de aceitar o desejo de liberdade da outra parte. É o machismo evidente da guerra de Putin: não tolera a liberdade de uma terra que considera de sua propriedade.
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TV, liberdade e propaganda. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU