O precipício. Artigo de Franco ‘Bifo’ Berardi

Fonte: Flickr

06 Mai 2022

 

“Se eu vivesse em Kiev e alguém me explicasse que tenho que defender o Mundo Livre, a Democracia, os Valores do Ocidente, palavras com letras maiúsculas, eu desertaria. Mas talvez decidiria me unir à resistência para defender minha casa, meus irmãos, palavras com letras minúsculas”, escreve FrancoBifoBerardi, filósofo e ativista italiano.

 

“Portanto, não consigo responder quando me pergunto se participaria da resistência ucraniana, se atiraria em soldados russos ou não. O que, sim, sei com certeza é que as principais razões pelas quais o Mundo Livre chama os ucranianos à resistência são falsas. E falsa é a retórica dos europeus que nos anima a seguir com o espetáculo”, critica o filósofo.

 

O artigo é publicado por Ctxt, 03-05-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

O inimigo interior

 

A lógica da guerra é o horror. Na semiótica da guerra, todas as histórias de horror, mesmo as falsas, são eficazes porque produzem ódio e medo. Por que se surpreender se os Estados Unidos lançam bombas de fósforo sobre Faluja ou se os russos matam prisioneiros indefesos em Bucha? Estamos falando de crimes de guerra? Mas a guerra é um crime em si, uma cadeia automática de crimes.

 

A pergunta a responder: quem é o responsável por esta guerra? Quem a quis, provocou, arquitetou e desencadeou? O nazi-stalinismo russo liderado por Putin, não há dúvida. Mas todos veem que alguém mais a quis com vigor e a está alimentando ativamente.

 

Se em fevereiro a União Europeia tivesse convocado uma conferência internacional para discutir as demandas do ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, a máquina de guerra poderia ter sido detida. Em vez disso, preferiu-se soprar sobre o fogo.

 

Um delegado ucraniano que participava de conversas com os russos declarou com franqueza: “Estou surpreso. Por que a OTAN disse com tanta pressa que não interviria em caso de guerra? Desse modo, convidou a Rússia a escalar” (citado em Limes, 03/2022).

 

Aqueles que participam de uma guerra são incapazes de pensar. Por razões neurocognitivas bastante fáceis de entender, aqueles que fazem a guerra não têm tempo para pensar, precisam salvar suas vidas, matar os que podem atentar contra suas vidas. E primeiro devem silenciar o inimigo interior.

 

O inimigo interior é a sensibilidade do ser humano, a consciência, caso fique melhor. Freud fala disso em um texto sobre as neuroses de guerra, durante a Primeira Guerra Mundial: o inimigo interior se manifesta como dúvida, hesitação, medo, deserção. O inimigo interior é a vontade de pensar. Aqui, hoje, está todo o sistema midiático e político empenhado em derrotar o inimigo interior.

 

Já estamos muito longe no processo de militarização do discurso público e a classe política e jornalística italiana traz disciplinadamente o cérebro à massa nacionalista. Nessa massa, é difícil distinguir as vozes dos jornalistas de extrema direita e as dos intelectuais de formação trotskista.

 

O sistema de meios de comunicação sofreu uma mutação dramática nos últimos dois anos. Durante a pandemia, mobilizou-se constantemente com fins sanitários. Vinte e quatro horas por dia, mostravam-nos ambulâncias, aventais verdes, aparelhos de ventilação e a partir de certo momento, injeções, seringas, e mais injeções e mais seringas, em uma torrente ininterrupta de ansiedade e intimidação.

 

Alguém previu que aquele cerco midiático médico era o preâmbulo de uma mutação definitiva nos meios de comunicação. Agora, durante vinte e quatro horas, vemos espetáculos aterrorizantes, corpos mutilados, a fuga desesperada e dolorosa de mães e filhos. Durante vinte e quatro horas por dia, somos testemunhas da multidão clamorosa de comentaristas e generais chamando à guerra e silenciando o inimigo interior.

 

O que eu faria se vivesse em Kiev?

 

Eu também me perguntei: o que eu faria se vivesse em Kiev? Durante dias, esta pergunta me perseguiu. Meu pai participou da Resistência italiana contra o fascismo. Disse a mim mesmo: não seria meu dever, então, apoiar a resistência do povo ucraniano? Não deveria lutar pelos valores que a agressão russa põe em perigo?

 

Então, lembrei-me que meu pai não era antifascista quando teve que escapar do quartel de Pádua, onde era um simples soldado. O problema nunca havia sido levantado, o fascismo era uma condição natural óbvia para ele, como era para a grande maioria dos italianos. Quando o Exército italiano se desfez, após 8 de setembro, fugiu como tantos outros, foi visitar sua família em Bolonha, mas seus pais tinham fugido da cidade por medo dos bombardeios.

 

Sendo assim, junto com seu irmão, decidiu fugir para as montanhas próximas, sabe-se lá por qual razão. Encontraram um grupo de outros evacuados, depararam-se com alguns partisans e uniram forças. Para defender sua vida, tornou-se um partisan. Conversando com os partisans, avaliou que os mais preparados e generosos eram os comunistas, e entendeu que os comunistas tinham uma explicação para o passado e um plano para o futuro, então, tornou-se comunista.

 

Se eu vivesse em Kiev e alguém me explicasse que tenho que defender o Mundo Livre, a Democracia, os Valores do Ocidente, palavras com letras maiúsculas, eu desertaria. Mas talvez decidiria me unir à resistência para defender minha casa, meus irmãos, palavras com letras minúsculas.

 

Portanto, não consigo responder quando me pergunto se participaria da resistência ucraniana, se atiraria em soldados russos ou não. O que, sim, sei com certeza é que as principais razões pelas quais o Mundo Livre chama os ucranianos à resistência são falsas. E falsa é a retórica dos europeus que nos anima a seguir com o espetáculo.

 

O nazismo é uma evolução da humilhação

 

Desencadeia-se uma orgia de horror na Europa, como se deu na Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen, por algumas décadas. Mas eram lugares distantes, habitados por pessoas diferentes de nós, na verdade, para sermos mais precisos, habitados por pessoas que odiamos e consideramos inferiores.

 

Vladimir Putin, que nunca ocultou sua vocação imperial e seus métodos stalinistas quando foi cortejado por nossos presidentes, empresários e jornalistas, iniciou esta guerra porque a maioria do povo russo reagiu à humilhação dos últimos 30 anos, da mesma forma como os alemães reagiram à humilhação de Versalhes, nos anos 1930.

 

O nazismo é uma evolução da humilhação, é uma promessa de redenção agressiva contra a humilhação. E seja quem for que deseje conhecer a profundidade da humilhação sofrida pelos russos, a partir dos anos 1990, deve ler O fim do homem soviético [Companhia das Letras], de Svetlana Aleksiévitch.

 

Mas, como disse Xi, “uma mão sozinha não faz barulho”. A mão de Putin não é suficiente. A outra mão é a de Joe Biden, que empurrou russos e ucranianos à guerra para alcançar quatro resultados: destruir politicamente a União Europeia, impedir a criação do Nord Stream 2, voltar às urnas em seu país e derrotar os russos. Os dois primeiros objetivos foram perfeitamente alcançados.

 

O projeto Nord Stream 2 foi cancelado pelo governo alemão, razão pela qual agora a Europa terá que recorrer ao mercado americano, onde o combustível custa um pouco mais e, de qualquer forma, não será sequer remotamente suficiente para substituir ao russo. Politicamente, a União Europeia tem permanecido sob o comando da OTAN e forçada a se identificar como nação, o que é exatamente o oposto do que pensavam os fundadores da União.

 

A União Europeia nasceu para sair da obsessão nacionalista do século XX, mas nos primeiros meses de 2022, a OTAN a transformou em uma nação. E agora a Nação Europa caminha para o batismo de fogo da guerra como qualquer outra nação na história passada.

 

Em relação aos outros dois resultados, as coisas são mais complicadas, porque a maioria dos estadunidenses desaprova a política externa de Biden (nunca tinha acontecido, nem nos tempos do Vietnã, nem nos tempos do Iraque, que uma porcentagem majoritária desaprovasse o presidente na guerra). As preferências eleitorais, segundo as pesquisas, não são favoráveis a Biden. É provável que os democratas percam as eleições de novembro e, mais tarde, um republicano (logo veremos qual, mas não descarto Donald Trump) vencerá a eleição presidencial.

 

Quanto ao último resultado que Biden almeja alcançar, a derrota da Rússia, as coisas são ainda mais complicadas. Apesar da feroz resistência do povo ucraniano, a Rússia está conseguindo o que pretendia, ou seja, a destruição do Exército ucraniano e o controle dos territórios do sudeste e da Crimeia.

 

Putin se importa menos que zero que os soldados russos morram aos milhares e inclusive que os generais russos tombem nos combates. O sacrifício é a alma do místico nacionalista russo, como já sabe qualquer pessoa que tenha lido Tolstói ou Isaac Babel e Aleksandr Blok.

 

Mais adiante, é previsível que o conflito se torne endêmico em território ucraniano e que a Rússia entre em uma fase de catástrofe econômica e social. Mas será que os estrategistas da intransigência anti-Putin refletiram sobre o que significa uma guerra de sucessão na hierarquia militar daquele país que possui 6.000 ogivas nucleares?

 

A vida é um paraíso

 

De acordo com algumas pesquisas, 83% dos russos apoiam a guerra. Não acredito, considero que as pesquisas que vêm de Moscou não são confiáveis. Mas é provável que a agressão goze de um consenso majoritário.

 

Uma minoria crescente de jovens russos também está se voltando para as ideias dos ultranacionalistas que consideram que a guerra na Ucrânia é uma autopurificação da alma russa, que é o prelúdio de aventuras mais amplas. “Obrigado, Ucrânia, por nos ensinar a ser russos novamente”, declara liricamente um idiota chamado Ivan Okhlobystin.

 

Existe uma longa tradição martirológica que provém do espiritualismo ortodoxo, que passa por Dostoiévski e se estende pelo século XX, reaparecendo em Vassily Grossman e no próprio Aleksandr Solzhenitsyn. Este vitimismo místico se resume nas palavras do irmão moribundo do monge Zósima, em Os Irmãos Karamázov: “Mãe, não chore, a vida é um paraíso, e estamos todos no paraíso, mas não queremos reconhecê-lo, porque se tivéssemos o desejo de reconhecê-lo amanhã, o paraíso se estabeleceria em todo o mundo”.

 

O paraíso de qual fala Dostoiévski é a dor, o frio, a miséria, a tortura, enfim, a cruz. O nacionalismo ortodoxo russo ama a dor como prova de proximidade com Cristo na cruz, e ama o povo tanto quanto odeia as mulheres e os homens concretos: “Como os homens são repugnantes”, diz Raskólnikov antes de cometer o crime sem sentido que deve acontecer justamente por sua insensatez.

 

A ignorância americana enfrenta o delírio russo e não é um encontro fácil. Os estadunidenses (falo, é claro, da classe que possui o poder político e midiático naquele país) nunca foram capazes de entender a diferença cultural, exceto como atraso e inferioridade para ser explorada, submetida ou corrigida a bofetadas.

 

Mas a diferença cultural russa permanece irredutível em sua mistura de universalismo salvífico e culto ao sofrimento suportado e infligido. A loucura russa e a ignorância americana arrastaram a Europa a um precipício que agora parece difícil se conter.

 

O país líder do Mundo Livre

 

No país que lidera o Mundo Livre (com letras maiúsculas, por favor), a polícia mata regularmente três pessoas por dia, geralmente negros. Em 2020, após a revolta do Black Lives Matter, quando se buscava conquistar o voto dos negros e da esquerda, o Partido Democrata estadunidense se comprometeu a reduzir os orçamentos da polícia e investir fortemente para melhorar as condições de vida social.

 

É claro, essas promessas não foram cumpridas: não cancelar a dívida estudantil etc. Mas, sobretudo, não houve nenhuma redução no orçamento da polícia. Ao contrário, o orçamento aumenta. Na fronteira mexicana, o retrocesso em relação aos migrantes atingiu níveis que nos fazem lamentar os dias de Donald Trump.

 

Por uma razão ou outra, o consenso a favor de Biden caiu para os níveis mais baixos. Após a derrota de Cabul, Biden precisava demonstrar que, apesar de ter perdido a guerra contra o país mais dilapidado do mundo, os Estados Unidos podem vencê-la contra a Rússia. Portanto, sequer aceitou levar em consideração as reiteradas solicitações de Sergey Lavrov, que repetiu muitas vezes que a Rússia queria discutir sua segurança, suas fronteiras e, portanto, a expansão que a OTAN veio buscando nos últimos 25 anos.

 

Como os velhos costumam fazer quando se rebelam contra sua dolorosa impotência, Biden decidiu enfrentar os russos duros e preparar o confronto com Putin. Mas, ao final, os ucranianos ficaram sozinhos diante do criminoso stalinista-czarista do Kremlin.

 

Os patrocinadores euro-estadunidenses da resistência ucraniana proporcionam as armas e o apoio dos meios de comunicação. Contudo, são os ucranianos que estão morrendo, aqueles que por uma longa história de opressão, compreensivelmente, foram empurrados para posições ultranacionalistas.

 

Uma guerra inter-branca precipita uma nova geopolítica do caos

 

Para além da psicopatologia da demência senil, que desempenha um papel essencial no colapso psicótico da raça branca (russo-europeu-estadunidense), qual é a motivação estratégica dessa guerra? Biden é categórico: é preciso defender o mundo livre, ou seja, o Ocidente do qual decidiu voltar a ser líder. Defender o Ocidente após cinco séculos de colonização, violência, roubos sistemáticos e racismo não é uma tarefa fácil, e a guerra entre brancos precipitou o declínio, transformando-o em colapso.

 

O que começou em 24 de fevereiro é uma guerra inter-branca, na qual a raça branca luta contra a raça branca, mas dessa guerra surgirá uma nova geopolítica pós-global. Quando em 1989 o mundo livre derrotou o campo socialista, aplanando o caminho para a privatização do mundo e a imposição financeira do neoliberalismo, os ideólogos se perguntaram se essa nova ordem era irrevogável e eterna e, portanto, se a história havia terminado, com todos os seus conflitos, suas revoltas e suas guerras.

 

Francis Fukuyama falou um pouco precipitadamente neste sentido, e os liberal-democratas balbuciaram: democracia e mercado são um par imbatível. Unida à lei de ferro do mercado, a palavra democracia logo perdeu o sentido: a cada quatro ou cinco anos, os cidadãos do mundo livre podiam eleger seus representantes, mas seus representantes não podiam fazer nada além de aplicar as leis do mercado, cuja lógica automática não pode ser solapada pela vontade política.

 

Essa trapaça não poderia durar e, a partir de 2016, a democracia se reduz a uma chacota. Alguém um pouco menos estúpido do que Fukuyama escreveu um livro para explicar que havia iniciado uma era de conflito entre civilizações. Em O choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Samuel Huntington delineou a geopolítica deste choque, que em sua opinião um certo número (talvez sete, mais ou menos) de blocos de civilização enfrentaria entre si.

 

De alguma forma, a teoria de Huntington viu na identidade (étnica, religiosa, cultural) a linha divisória entre as forças em conflito, e antecipou as guerras estadunidenses contra os países islâmicos e o choque que se aproximava entre o Ocidente e o mundo chinês. Huntington não estava tão descaradamente equivocado como Fukuyama, mas sua teoria trivializa um processo muito mais complexo.

 

O triunfo da democracia liberal coincidiu com a privatização geral da esfera social e a precarização geral do trabalho. Seu efeito foi o desmantelamento da “civilização social”, uma forma de civilização na qual os interesses da maioria são protegidos por normas políticas e, sobretudo, pela educação que permite suspender a lei natural da selva.

 

Junto com muitas outras coisas, o totalitarismo capitalista destruiu a escola pública. Os processos educacionais que na segunda metade do século XX motivaram a vida humana em um sentido ético e solidário, promovendo o humanismo e o igualitarismo, foram substituídos por processos formativos desumanizadores: publicidade onipresente, palpitante, incontornável, digitalização dominada por grandes empresas globais que enervam a atividade cognitiva dos humanos associados.

 

Desse modo, produz-se o mais fantástico efeito de conformismo já conhecido: a ignorância e a superstição publicitária eliminaram qualquer regra política e qualquer forma cultural que não coincida com a imposição do lucro. A financeirização integral da economia, possibilitada pelas tecnologias digitais, alcançou o domínio definitivo do abstrato sobre o concreto.

 

O capitalismo financeiro aparecia como um sistema automático sem alternativas, o trabalho precário se mostrava incapaz de solidariedade e o futuro aparecia definitivamente encapsulado no presente automatizado. Neste sentido, Fukuyama tinha razão: a história havia terminado, a miséria psíquica se estendia como um furioso incêndio florestal e a subjetividade estava sujeita a uma ditadura psicofarmacológica em massa e a uma datificação digital generalizada.

 

Então, veio a Catástrofe. Após as convulsões globais do outono de 2019 (Hong Kong, Santiago, Quito, Teerã...), o vírus chegou. E o vírus criou as condições para o colapso psíquico que agora transtorna o cenário mundial.

 

O caos viral bloqueou a circulação de mercadorias e a continuidade do trabalho em grande parte do mundo, mas agora a ameaça de guerra transtorna a cadeia concreta de produção-distribuição-consumo e a ameaça atômica transtorna a imaginação deprimida, como um pesadelo do qual despertamos apenas para descobrir que o sonho ruim é realidade.

 

Vingança

 

A guerra entre brancos, paradoxalmente, faz com que o mundo se divida em linhas sem precedentes, que não têm muito a ver com a ideologia ou a geopolítica, e têm muito a ver com a história da colonização e a exploração racial.

 

Quando a proposta de condenação da invasão russa foi apresentada à ONU, os países mais populosos – Índia, Paquistão, Indonésia, África do Sul –, juntamente com a China, abstiveram-se. Pela primeira vez, delineia-se um cenário geopolítico que percorre a linha de fratura colonial. Os impérios brancos do passado colidem ou se unem, enquanto o mundo não-branco emerge no horizonte.

 

A Rússia é o curinga, o louco, o elemento interno que funciona como uma gazua para desbaratar o mundo branco. Outros elementos loucos são vistos por aí, nem sequer é necessário nomeá-los. Outros se tornarão loucos.

 

A guerra inter-branca da Ucrânia é o catalisador de um processo de fratura entre o sul e o norte do mundo, do qual estamos vendo apenas os primeiros movimentos. Às vezes, lembro-me do presidente Mao, de quem nunca fui seguidor, mas que disse coisas interessantes. Lembro-me que nos anos 1960 Mao teorizou que os subúrbios logo estrangulariam as metrópoles.

 

A teoria foi particularmente apoiada por seu leal escudeiro Lin Biao (que depois foi eliminado enquanto voava, alguns anos mais tarde, em 1971). Mas a visão do Grande Timoneiro deve ser entendida como uma aliança estratégica entre os trabalhadores do mundo industrializado e a população proletária ou camponesa dos países periféricos. O lema da Internacional Comunista, “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”, foi reformado pelos maoístas: “Proletários e povos oprimidos, uni-vos!”.

 

Naqueles anos, o colonialismo parecia retroceder e, em 1975, a derrota dos estadunidenses no Vietnã parecia o momento culminante de um processo de emancipação. Mas as coisas não saíram exatamente como esperávamos: o colonialismo derrotado ressuscitou em novas formas como dominação econômica, como extrativismo, como colonização cultural.

 

A fórmula “o campo estrangulará as cidades” pode ser considerada retrospectivamente como uma alternativa estratégica à aliança entre os trabalhadores industriais e os povos empobrecidos pelo colonialismo. Se tudo correr bem, disse Mao, haverá uma aliança entre os trabalhadores do norte e os camponeses do sul. Se algo der errado e os trabalhadores do norte forem derrotados, então, serão os povos oprimidos que estrangularão o capitalismo imperialista.

 

Espero que me perdoem pela simplificação caricatural, mas Mao não estava brincando. A Grande Marcha tinha sido precisamente isso: o campo havia cercado as cidades até que tomaram o poder em um país predominantemente camponês.

 

Os chineses conservam a memória da humilhação que as potências ocidentais em ascensão infligiram ao Império Celestial, em meados do século XIX. Neste momento, os chineses voltam a se propor como ponto de referência para os povos empobrecidos pelo colonialismo, submetidos durante dois séculos à exploração e humilhação, que hoje estão estrangulando a metrópole branca de muitas formas: migrações, tribalismos nacionalistas, tendência a romper o papel do dólar como função monetária em nível global.

 

A perspectiva estratégica “boa” fracassou porque o comunismo operário foi derrotado pelo capitalismo global neoliberal. Resta apenas a segunda, a pior: os nacionalismos ressurgidos, a vingança. No momento, a vingança está ocorrendo dentro do mundo branco, com o conflito entre a Rússia e o Mundo Livre. Mas o próximo capítulo é o ressurgimento agressivo dos poderes que foram subjugados em séculos passados.

 

O Ocidente será capaz de sobreviver a esse duplo ataque que se soma à persistência da hostilidade islâmica, pronta para ressurgir no Oriente Médio, mas também nos subúrbios da Europa?

 

Só o internacionalismo da classe operária poderia ter evitado que o confronto com o colonialismo passado e presente terminasse em um banho de sangue mundial. Nos anos 1960 e 1970, uma parte decisiva dos trabalhadores do Ocidente industrial e os proletários dos povos oprimidos pelo colonialismo se reconheceram no mesmo programa comunista. Mas o comunismo foi derrotado e agora nos toca enfrentar a guerra de todos contra todos em nome do nada.

 

Precipício europeu

 

Neste precipício geral, é preciso tentar imaginar a evolução do precipício europeu. Como irá se aglutinar o processo de desintegração social, quando a economia for transtornada e a sociedade empobrecida de uma forma impensável até ontem? Quem vai liderar os prováveis levantes europeus?

 

No momento, parece certo que as forças predominantes serão nacionalistas e psicóticas, e vem à mente a profecia de Sándor Ferenczi, que em um artigo de 1918 descartou que uma psicose de massa fosse curável. Este é o desafio de hoje: como tratar uma psicose que ultrapassou seus limites individuais e invadiu a esfera da mente coletiva?

 

Hoje, não podemos responder essas perguntas de forma coerente, mas devemos nos colocar essas perguntas com urgência, pois a subjetividade social oscila entre uma epidemia depressiva e uma psicose de massa agressiva, e só uma cura eficaz desse quadro patológico pode evitar o holocausto terminal. Encontrar essa cura eficaz é a tarefa de um pensamento à altura do presente. 

 

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