03 Mai 2022
"No desinteresse quase total do mundo, todo ano se combatem conflitos escondidos ou bem distantes dos refletores das mídias. A África e a Ásia continuam sendo os continentes que sobrevivem na escuridão informacional", escreve Lucia Capuzzi, jornalista italiana, em artigo publicado por Avvenire, 01-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas apenas 3 confrontos veem nações contrapostas.
A própria palavra diz isso. Guerra deriva do termo germânico werra, ou seja, corpo a corpo furioso, onde as partes se enfrentam em um corpo a corpo rude, desconexo, desorgânico. "Werra" é, portanto, sinônimo de caos. Não é de surpreender que, em tempos de elevada instabilidade geopolítica, as guerras se multipliquem. Afinal, lembrava a filósofa Hannah Arendt, elas não servem para restabelecer direitos, mas para redefinir poderes.
Mais do que a continuação da política por outros meios – como argumentava Von Clausewitz -, são a certificação de seu fracasso. Neste tempo de crise da política e de sua principal referência - o Estado-nação - novos surtos bélicos somam-se a velhos embates não resolvidos. O resultado é uma sucessão de crises de intensidade variável que ocorrem em grande parte no Sul do mundo e, por isso, diferentemente da Ucrânia, por exemplo, a uma distância imensurável dos holofotes da mídia.
O “programa de dados de conflitos” da prestigiosa Universidade Sueca de Uppsala pesquisou 169 em 2020, o último ano para o qual há dados disponíveis, para um total de mais de 81.447 vítimas. Um novo recorde, após 5 anos de relativo declínio. E o cenário piorou ainda mais desde então. A “Terceira guerra mundial aos pedaços” não se cansa de defini-la, desde 2014, o Papa Francisco. Apenas três dos 169 conflitos registrados envolvem um confronto militar "clássico" entre estados: Índia-Paquistão pelo controle do Kashimir, China-Índia pela questão do Aksai Chin ou Arunchal Pradesh e Israel-Irã, além agora da Rússia e Ucrânia.
O fato é que no século XX, o cenário bélico sofreu uma “mutação genética”, acelerada no último quartel do século passado. Se a Guerra Fria havia articulado o conflito em torno de um único divisor de águas ideológico, desde o seu fim assumiu conotações cada vez mais mutáveis. Dominando o panorama, agora mais do que nunca, os conflitos internos ou "intraestatais". "Às vezes, um grupo rebelde pega em armas contra o governo como o al-Shabaab na Somália ou os Talibãs no Afeganistão, antes que estes últimos tomassem o poder em agosto passado", explica Therese Pettersson, coordenadora do programa de dados de conflitos.
Identificamos 53. Em outros, o ator Estado não está envolvido. Em 72 conflitos, as partes em conflito são milícias de vários tipos disputando o controle de um território. Finalmente, há vinte e uma crises de organizações - estatais ou não estatais – que visam deliberadamente os civis. Um fio comum une esse multifacetado poliedro bélico: a tendência crescente por parte de atores externos de apoiar militarmente um dos contendores. "Proxy war", "guerra por procuração", vários analistas as chamam. “Foram os confrontos internos que produziram as consequências humanitárias mais graves nas décadas pós-Guerra Fria. Basta lembrar o drama da Síria, Afeganistão, Iraque e Iêmen. As duas exceções são as guerras de Estado entre a Etiópia e a Eritreia (1999-2000) e aquela em curso entre Moscou e Kiev”, acrescenta Pettersson.
Além disso, o número de mortos nos confrontos é apenas uma das tragédias causadas pelos conflitos. “A duração é um elemento crucial. Quanto mais o conflito continua no tempo, mais as consequências humanitárias correm o risco de serem catastróficas, independentemente de sua intensidade, como vemos no Sudão do Sul, Nigéria, Congo, Sudão, Somália”, calcula Robert Blecher, diretor do programa Future of conflict do Grupo crise internacional.
Uma gravidade, a das guerras prolongadas, inversamente proporcional à atenção internacional, acostumada na cronificação de crises "distantes". Os dois fatores - morte e tempo - se entrelaçaram de maneira perversa na guerra afegã, conferindo-lhe o título de mais longa e mais letal: vem acontecendo ininterruptamente, entre picos de brutalidade e tímidos momentos de refreada, desde 1978.
A emergência da fome, seguida pela reconquista de Cabul pelos Talibãs é apenas outra faceta. Por fim, segundo Blecher, a violência que dilacera grande parte da América Latina, oficialmente "protegida" da tempestade bélica pelo acordo de paz na Colômbia em 2016, deve ser incluída com todo os direitos na categoria de conflitos. A realidade, infelizmente, é de sinal oposto. A narcoguerra mexicana, a feroz anarquia haitiana ou os confrontos de gangues na América Central têm custos humanitários e dinâmicas que são efetivamente bélicas. É a revelação do que Hannah Arendt afirmava: o coração da guerra - de toda guerra, seja como for definida - é a redefinição do poder.
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O silêncio mata em 169 guerras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU