30 Junho 2021
O filósofo italiano Franco (Bifo) Berardi, juntamente com o músico, produtor e compositor Marco Bertoni dão vida ao projeto Wrong Ninna Nanna - disco lançado por 35mm, de 42 Records -, uma obra audiovisual que também conta com as vozes destacadas de Bobby Gillespie e Lydia Lunch, e a colaboração para o videoclipe da dupla artística Cuoghi Corsello.
A reportagem-entrevista é de María José Quesada Arancibia, publicada por El Mostrador, 27-06-2021. A tradução é do Cepat.
Ninna nanna (nana em português), é a canção que a mãe cantarola para seu filho quando chora ou não quer dormir. É um cantar doce e talvez melancólico, mas sempre amoroso”. No entanto, “é uma canção equivocada, distorcida, impossível. Como é possível cantar quando o terror não é suportável, quando compreendemos muito bem que o terror se estenderá no futuro, pois não vemos em lugar algum uma alternativa ao inferno neoliberal?”, destaca Franco Berardi sobre o significado do nome do filme.
“A ideia de escrever estes poemas horríveis que escrevi, me veio à mente após ver o filme Cafarnaum, de Nadine Labaki, uma magnífica corajosa diretora libanesa. Neste filme, uma criança de dez anos, que se chama Zein, denuncia seus pais por o terem colocado no mundo, neste mundo, em um campo de refugiados sírios em Beirute. Por que fizeram isso? Por que continuamos procriando, quando sabemos que não há a mínima possibilidade de uma vida feliz? Por que continuamos levando inocentes ao inferno do fascismo neoliberal? Por que fazemos isso, quando sabemos que o mundo está se estreitando devido à catástrofe ecológica global, e não pode acomodar uma posterior expansão demográfica? Por que os governos polonês, francês e italiano pagam às mulheres para procriarem infelizes, quando há milhões de crianças africanas que poderiam ser acolhidas na Europa e as rejeitamos em seu inferno, porque em nosso inferno só queremos crianças brancas?”, são algumas das perguntas que motivaram o filósofo italiano a escrever os textos de Wrong Ninna Nanna”.
“Hoje, penso nas mães de Gaza que o fascismo israelense está estrangulando, penso nas mães do Afeganistão que vivem no terror do fascismo islamista, que a guerra ocidental reforçou. Penso em uma mãe em um barco que atravessa o mar mediterrâneo, fugindo com o seu filho da violência dos campos de concentração líbios, rejeitada pelos racistas italianos, aterrorizada pelas ondas noturnas do mar. Imagino que tipo de canção pode cantar uma mãe que foi obrigada a fugir da Nigéria pela violência islamista das regiões do norte, a fugir da escravidão e das violações dos líbios, que a Itália paga para que torturem os que buscam refúgio”, acrescenta.
Sobre o processo de criação, Bifo conta que, “com meu amigo músico Marco Bertoni (um velho companheiro da época no wave da Bolonha, no início dos anos 1980), concebemos esta obra como se constrói um objeto apotropaico: um objeto simbólico que mostra o horror para o exorcizar. Convocamos os artistas Cuoghi e Corsello para criar um vídeo e pedimos à cantora e poeta Lydia Lunch e ao músico e vocalista do Primal Scream, Bobby Gillespie, para misturarem suas vozes com as palavras, os sons e as imagens de um pesadelo que é o pesadelo da realidade do mundo, após cinco séculos de colonialismo e cinco décadas de fascismo neoliberal”.
Considera que a situação que os migrantes vivem atualmente é uma radiografia do apocalipse, e levando em conta este cenário, o que podemos esperar do mundo?
Acredito que a condição dos migrantes é a prova mais clara do fato que a humanidade não pode ser humana, se não enfrentarmos a herança de cinco séculos de colonialismo, se a raça depredadora não restituir o que depredou. A Europa não pode fechar suas fronteiras às vítimas da devastação ecológica produzida pelo extrativismo belga, francês e italiano. Não se pode rejeitar os afegãos e os sírios que fogem de uma guerra que os ocidentais levaram a seus países.
A dominação branca produziu esta condição de miséria e de terror. Malditos sejam os que não reconhecem esta responsabilidade. O que podemos esperar? Antes de mais nada, podemos esperar que as mulheres sejam livres da obrigação de reproduzir uma humanidade patriarcal e oprimida e, ao mesmo tempo, podemos esperar que a sociedade saia da loucura consumista extrativista produzida pelo capitalismo.
O esbanjamento consumista da minoria branca produziu a devastação do meio ambiente. Sair da loucura significa transformar a sociedade em um sentido igualitário e frugal. A frugalidade é um caráter essencial de uma transformação igualitária e humanista. Frugalidade não significa pobreza, ao contrário: significa buscar o prazer na relação com os corpos e as almas, não na propriedade de inumeráveis objetos de plástico inúteis e daninhos para os oceanos.
Frugalidade significa liberar tempo para o prazer, liberar espaço mental para o conhecimento e a poesia. Frugalidade significa a primazia do útil concreto sobre a acumulação abstrata, e frugalidade significa redistribuição dos recursos em nível nacional e global.
Você me pergunta o que podemos esperar: podemos esperar que o processo constitucional chileno estabeleça princípios redistributivos, igualitários e frugais. Seria o sinal de que é possível libertar o futuro da violência fascista e do capital-extrativista.
O que acontece no Chile não é algo marginal: pode se revelar um emergente global, a primeira experimentação de uma existência social pós-apocalíptica.
A poesia é um modo de aprender a respirar no inferno? O que mais propõe para acabar com a asfixia?
Poesia para mim significa qualquer ação que possa revelar horizontes de sentido para além do horizonte estabelecido. Uma ação semiótica que sugere a possibilidade de outros mundos. A poesia é a busca de um ritmo harmônico com a natureza e com o desejo, para além da aceleração digital.
A sociedade global está atravessando um espasmo, uma convulsão dolorosa para o corpo e a mente coletiva. Sabemos que o espasmo foi provocado pela aceleração do ritmo: muito trabalho, muita dependência das máquinas. Como no filme de Ken Loach, Você não estava aqui, como no filme de Philip Todd, Coringa, a certo ponto, o organismo coletivo entra em colapso.
A pandemia marcou o momento do colapso. Quando os rebeldes chilenos escrevem: “Não era depressão, era capitalismo”, dizem que a causa da tristeza é a obsessão acumulativa, a concorrência contínua na precariedade, a pobreza. Na saída do trauma pandêmico, é muito provável uma epidemia de depressão crônica, e do outro lado, de agressividade psicótica. A insurreição poética é a terapia preventiva contra a depressão e a agressividade.
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Franco ‘Bifo’ Berardi: “A pandemia marcou o momento do colapso” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU