11 Abril 2022
"Lisboa afirma, com acerto, que “apelos ideológicos e éticos não são suficientes para alavancar essa outra economia”, algo que faz lembrar um autor fundamental, não citado por ele: o sociólogo alemão Max Weber, que afirmou ser o capitalismo industrial um destino inexorável, constituindo sua racionalidade impessoal uma “jaula de ferro”[7]. Evidentemente, ideais e princípios éticos, por si só, não levam à transformação socioeconômica, porém são imprescindíveis para a busca de tal intento, sendo este exatamente o fator do chamado pontifício para a construção da Economia de Francisco, algo que mobilizou e segue movendo muitos jovens e ativistas sociais", escreve André Ricardo de Souza[1].
Como sabido, a partir do chamado do Papa Francisco feito - em 1º de maio de 2019 para um amplo encontro na cidade italiana de Assis, voltado a jovens, ativistas e intelectuais de modo a repensar o desenvolvimento econômico mundial - houve uma significativa mobilização no Brasil. Devido à pandemia do Covid-19, o evento Economy of Francesco (EoF), que devia ocorrer em março de 2020, veio a acontecer remotamente em outubro do ano seguinte, estando programado para ocorrer, de modo presencial, entre 22 e 24 de setembro de 2022. Ainda em novembro de 2019, surgiu oficialmente, a partir de um encontro nacional realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mediante apresentação de uma carta orientadora[2], a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC). O nome, além de homenagear a santa colaboradora de Francisco de Assis, apontou a necessidade da permanente busca de equilíbrio entre homens e mulheres. Não é demais relembrar tais fatos, pensando sobremaneira em quem se depara inicialmente com o tema.
Quase no fim de 2021, foi publicado na revista Ciencias Sociales y Religión um artigo redigido por mim e pelo colega professor de sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Flávio Sofiati[3]. No texto, buscamos analisar o processo desencadeado pelo chamado papal, o desenvolvimento da ABEFC e seu significado sociológico no cenário político-religioso nacional, com foco no catolicismo, enquanto uma decorrência do cristianismo da libertação[4]. Destacamos que, além do fator gênero contemplado nessa mobilização com pretensão ecumênica, há outra característica que denota determinada diferença em relação à condução feita a partir da Itália, qual seja: sua militância anticapitalista. Esta decorreu sobremaneira de uma nota de repúdio da ABEFC em relação ao Conselho para o Capitalismo Inclusivo, algo lançado em 8 de dezembro de 2020 por 27 dos maiores investidores e empresários de corporações multinacionais, em parceria com o Vaticano, através da intermediação do cardeal ganês Peter Tukson, responsável pelo Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, o mesmo departamento de governo católico responsável pela organização do EoF[5].
Faltou no referido escrito meu e de Sofiati a menção ao relevante artigo publicado em 2020 na revista P2P&Inovação pelo professor de economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Armando Lisboa. Em seu texto, ele discute os importantes documentos publicados por Francisco previamente a seu chamado à mobilização internacional de jovens, com destaque para encíclica Lautato Si’, de 2015.
Em outro artigo, publicado, já em 2022, aqui no IHU[6], Lisboa faz críticas, algumas pertinentes e outras não, à Economia de Francisco, à ABEFC e ao texto que Flávio Sofiati e eu elaboramos, daí minha resposta através do presente escrito. Lisboa afirma, com acerto, que “apelos ideológicos e éticos não são suficientes para alavancar essa outra economia”, algo que faz lembrar um autor fundamental, não citado por ele: o sociólogo alemão Max Weber, que afirmou ser o capitalismo industrial um destino inexorável, constituindo sua racionalidade impessoal uma “jaula de ferro”[7]. Evidentemente, ideais e princípios éticos, por si só, não levam à transformação socioeconômica, porém são imprescindíveis para a busca de tal intento, sendo este exatamente o fator do chamado pontifício para a construção da Economia de Francisco, algo que mobilizou e segue movendo muitos jovens e ativistas sociais.
Diferentemente do que afirma o docente da UFSC, a mobilização em curso no Brasil vem contando, desde novembro de 2019, com a participação de representantes de entidades nacionais, que, concretamente, tem práticas econômicas relevantes, do ponto de vista da busca de um desenvolvimento inclusivo, sendo isto, aliás, dito por mim e por Sofiati em nosso artigo. Refiro-me ao coletivo composto por: Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), União Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (Unicatadores), Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol Brasil), União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar (Unicafes), Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil, vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Concrab-MST), Rede Brasileira de Bancos Comunitários e Pastoral dos Pescadores. Representantes de tais entidades participaram com destaque, em 2019, do primeiro Encontro Nacional da Economia de Francisco e Clara e do segundo, em 2021, assim como de lives, além de estarem se reunindo, quadrimetralmente, há dois anos, com lideranças da ABEFC. Há iniciativas, principalmente de economia solidária, em determinadas localidades - com destaque para a Feira Internacional do Cooperativismo (FEICOOP), da cidade gaúcha de Santa Maria - que se identificam com a Economia de Francisco e Clara. São, enfim, práticas econômicas relevantes, na lógica da busca de transformação gradativa e democrática, de baixo para cima, da sociedade.
Quanto às Casas de Francisco e Clara, algo idealizado pelo padre diocesano de Florianópolis, Vilson Groh[8] e cuja ideia jovens lideranças da ABEFC vêm disseminando nacionalmente, mediante campanha e lives, cabe dizer que se trata mais, ainda, de um propósito, qual seja, o de criar espaços no âmbito de dioceses e paróquias católicas onde haja formação de pessoas com vistas ao engajamento delas em práticas econômicas alternativas. No âmbito do movimento da economia solidária, há algo que lembra essa proposta e que está em funcionamento desde o final da década de 1990, em determinadas universidades, principalmente públicas: as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs).
Em relação à Economia de Comunhão (EdC), surgida no Brasil em decorrência do movimento católico de classe média Focolari, cabem algumas considerações. A EdC tem destaque internacional quanto à Economia de Francisco pelo fato de o pontífice ter nomeado como diretor científico do evento o economista italiano Luigino Bruni, que faz parte dela e escreve destacadamente a respeito[9], porém ela não tem efetivamente a mesma importância em relação à Articulação do Brasil. Embora se deva reconhecer o valor dessa prática, é fato que a participação de integrantes da EdC em atividades da ABFC se circunscreveu, até o momento, a reuniões esporádicas. Cabe lembrar que a Economia de Francisco e Clara busca integrar iniciativas diferentes, com a característica comum da busca do fazer econômico igualitário e democrático, abarcando experiências de agroecologia e economia solidária, além de reivindicações por democratização do orçamento público e por renda básica cidadã, defendida pelo vereador paulistano Eduardo Suplicy, que é participante destacado em atividades da ABEFC desde 2019. Armando Lisboa menciona o fato de a EdC não fazer parte do movimento de economia solidária, sendo que isto, na verdade, não se deve a “um marxismo vulgar”, mas sim ao fato de as empresas da EdC não pertencerem a seus próprios trabalhadores e tampouco haver propósito de que isso venha a ocorrer, conforme o caro princípio da autogestão.
Embora o Papa Francisco tenha dado anuência à articulação corporativa do cardeal Tukson e Luigino Bruni possua escritos a favor do “capitalismo católico” ou “capitalismo comunitário”[10] - em contraposição ao de feições originárias protestantes, analisado por Weber - a ABEFC tem posição distinta e destacada no artigo que Sofiati e eu publicamos. Em consonância com o cristianismo da libertação, a Articulação Brasileira, em sua maioria, rejeita efetivamente o capitalismo, mesmo em suas feições eufemizadas. Ela afirma que a sociedade pretendida - a partir do desenvolvimento das iniciativas identificadas com a Economia de Francisco e Clara, algo necessariamente aliado a condizentes políticas públicas nacionais contrárias à desigualdade social - é a do pós-capitalismo, caracterizada por bem viver[11], podendo ser chamado também de socialismo democrático[12]. Penso que a aposta de Francisco nos jovens é bastante pertinente, sendo assim também a utopia da ABEFC, algo que, ao ser buscado, vai, aos poucos, gerando gradativas mudanças cotidianas.
[1] Doutor em sociologia pela USP, professor associado do Departamento de Sociologia da UFSCar, pesquisador do CNPq e coordenador do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP).
[4] LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis, Vozes, 2000.
[7] WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
[9] BRUNI, Luigino. Economia de comunhão: uma cultura econômica de varias dimensões. São Paulo Cidade Nova, 2002.
[11] HUANACUNI, Fernando. Vivir bien/buen vivir: filosofía, políticas, estrategias y experiencias de los pueblos ancestrales. CAOI. La Paz, 2015.
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A efetividade do franciscanismo econômico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU