29 Março 2022
Corso Sempione, em Milão. Edifício de época com vista para o Arco della Pace. Das janelas, graças ao dia frio, mas ensolarado, destacam-se os arranha-céus da Praça Gae Aulenti, a torre Pelli da Unicredit, a Floresta Vertical projetada por Stefano Boeri. Mas as quatro pessoas ao redor da mesa, que usam cândidos óculos de realidade virtual brancos, veem árvores tropicais a partir das grandes janelas, o clima parece ser quente e os prédios altos, um bairro mais californiano.
A reportagem é de Daniele Manca, publicada no caderno Login, do jornal Corriere della Sera, 28-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É como estar em uma história em quadrinhos. As pessoas sentadas são a bela versão fantoche das duas mulheres e dos dois homens realmente sentados à mesa. Falam e gesticulam. Sorriem. Bem-vindos ao metaverso. Naquela que é, ou melhor, ainda não é a web 3.0.
A transição das duas para as três dimensões. A promessa de um mundo virtual. Sim, a promessa. Quase um engano. Algo está ocorrendo no mundo do digital, do virtual. Cuidado para não levar a questão de modo superficial, como fizemos com a internet no fim dos anos 1990, nós todos que já estávamos lá. E que talvez considerássemos apenas um belo gadget aquele celular apresentado por Steve Jobs em 2007.
Ele pretendia nos fazer abandonar o miniteclado do Blackberry em favor de uma tela sensível ao toque. Isto é, sem a fisicidade reconfortante daquelas teclas reais que conseguíamos usar não apenas graças à visão, mas também ao tato.
Quinze anos depois, percebemos que podíamos quase abrir mão do tato e, deslizando o dedo sobre um vidro duro, conseguimos até compor textos complicados. Sim, mas o metaverso promete até nos devolver todas as sensações que experimentamos com o nosso corpo. Inteiramente.
Que fique claro: quem afirma que isso já é assim está dizendo uma mentira. Mas é possível que, em um futuro não tão distante (três, quatro, cinco anos, diz Mark Zuckerberg), tenhamos que mudar de ideia, e aquela que hoje está bem longe de ser uma meia verdade será realidade. Virtual.
Então, é bom começarmos a nos ocupar disso e a nos preocupar com isso. Porque o salto que estamos nos preparando para dar é muito mais alto do que qualquer outra revolução hi-tech que a precedeu.
Mas o que é realmente o metaverso? Duas palavras podem nos ajudar a compreender o seu significado. Experiência imersiva.
A experiência é o nó filosófico que está por trás dessa descontinuidade tecnológica. Se a pandemia nos habituou a um uso mais constante do e-commerce, é inegável, porém, que a falta de fisicidade nas compras é a última fronteira a ser derrubada para que a compra a distância se torne a modalidade principal.
Comprar um detergente ou uma caixa de tomates de que conhecemos da marca não gera nenhuma ansiedade. Mas um par de sapatos ou um vestido já é mais complexo. A experiência de entrar em uma loja, tocar em um tecido, vestir uma jaqueta é, neste momento, impossível de ser restituída pela tela de um computador. Que continua “plano” em duas dimensões.
O primeiro passo que o metaverso promete é a passagem para as três dimensões. Ou seja, oferecer a possibilidade, a ideia de poder se mover no espaço. Imergir em uma realidade recriada, tendencialmente aumentada, que ofereça possibilidades superiores às da realidade física. Mas por que tudo isso?
Giuseppe Riva, um dos maiores estudiosos nesse campo, professor de Psicologia Geral na Universidade Católica de Milão, diretor do Humane Technology Lab e presidente da Associação Internacional de Ciberpsicologia, explicou isso recentemente no La Lettura, o caderno cultural semanal do jornal Corriere della Sera, no dia 27 de fevereiro.
Com base nos estudos mais recentes das ciências cognitivas, “a experiência do nosso corpo não é direta – escrevia Riva –, mas é o resultado de uma simulação da nossa mente por meio da integração multissensorial dos diversos sinais corporais”. O metaverso quer recriar uma situação semelhante.
Assim, será mais eficaz quanto mais conseguir simular uma situação que a nossa mente percebe como real, face aos estímulos a que foi submetida. Além do fato de que, assim que entramos em corpos diferentes do nosso, por meio daqueles visores especiais que no início víamos serem usados pelos entusiastas dos videogames, começamos a nos mover de acordo com lógicas que são do avatar (assim se chamam os personagens que atuam nesses metaversos).
Tudo isso não é ficção científica. Estamos no alvorecer de uma nova tecnologia. Que, além disso, é transformadora e não simplesmente linear. Ou seja, ela pode produzir mudanças na nossa forma de ver a realidade, de abordarmos a realidade física. E, ao nos permitir imergir em mundos diferentes, embora recriados artificialmente, mas nos quais podemos interagir com outros indivíduos por meio dos seus avatares, ela produz transformações. Sobre nós mesmos e sobre as nossas percepções.
Falar de “metaverso” hoje é enganoso. Em primeiro lugar, porque existem mais do que um. A forma mais semelhante àqueles que poderão ser os mundos virtuais no futuro são os vários videogames. Já hoje, para poder jogar, você precisa criar uma identidade própria e entrar em um ambiente. Eis os vários Fortnite, Minecraft, Roblox.
Levemos em conta que, no ano que vem, o banco de investimento Credit Suisse prevê que os jogadores de videogame em nível global serão três bilhões. Pessoas já acostumadas a ter um avatar e a entrar em um mundo “outro”.
Isso já colocou há muito tempo em movimento os gigantes mundiais da tecnologia que fornecerão as infraestruturas para a realização do novo mundo virtual. Estão em ação todos os maiores atores, do Google à Apple, passando pelo Facebook e pela Microsoft, da Sony à Samsung.
E isso pode parecer óbvio. Menos o fato de que, de forma experimental, com primeiros, poucos e ainda minúsculos passos, também estão em movimento os senhores do consumo mais sofisticado, os da moda, do calçado, do esporte e do entretenimento, todos aqueles negócios que precisam da fisicidade para poderem chegar aos cidadãos-consumidores.
Daí as experiências da Gucci com o Roblox e da Balenciaga com o Fortnite para vestir os jogadores com suas próprias coleções. São movimentos, neste momento, ainda subterrâneos, de elite, que já levaram analistas e bancos de investimento a acenderem mais de um farol.
O próprio Credit Suisse produziu um relatório de 200 páginas no mês passado sobre o metaverso, no qual todos os aspectos são analisados, do hardware ao software, passando pelas empresas envolvidas.
Os números em jogo podem parecer substanciais, embora não enormes. Ou pelo menos ainda não. Para os analistas da Bloomberg, o metaverso gerará um negócio de 800 bilhões de dólares até 2024. Com uma taxa de crescimento de dois dígitos, igual a 13% ao ano (cerca de 480 bilhões em 2020). Grande parte do giro de negócios derivará da produção de conteúdos a partir do mundo da moda e também dos jogos.
Embora seja possível participar desse mundo com um simples PC, é evidente que o salto de qualidade requer novos instrumentos para nos transportar para o novo universo, talvez por meio da realidade aumentada para simular situações realistas com o auxílio de fones de ouvido, luvas, visores de realidade virtual.
Por enquanto, os números das vendas são altamente secretos, mas, de acordo com a IDC (International Data Corporation), no fim de 2021, o Facebook teria vendido entre 5,3 milhões e 6,8 milhões de peças, um forte aumento em comparação com os 3,5 milhões do ano passado. Além disso, devem ser levados em consideração os capacetes da Sony (5,5 milhões), que já representam 12% do faturamento total da Playstation. Não é muito, ao se pensar nos dois bilhões de contas do Facebook, acrescentam os céticos.
Neal Stephenson falou de metaverso e cunhou o termo em seu romance“Snow Crash”. O ano era 1992. Não muito antes daquele 1995 quando um igualmente cético David Letterman acolheu um joveníssimo Bill Gates, usando grandes óculos, com uma pergunta: o que é essa tal de internet?
É melhor se preparar. Ainda mais que se, em Milão, em um dia frio de março, uma reunião é realizada preferindo o metaverso ao Zoom, é porque algo está acontecendo.
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Metaverso, o engano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU