09 Março 2022
Eleonora Menicucci de Oliveira dispensa apresentações. Isso porque a vida dessa brasileira nascida em Lavras, Minas Gerais, está diretamente ligada à história nacional, pelo seu compromisso com a democracia e pela luta militante e intelectual pelos direitos sexuais, reprodutivos e trabalhistas das mulheres. Para marcar o Dia Internacional da Luta das Mulheres em 2022, nada mais importante do que saber como a professora titular sênior do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina de Universidade Federal de São Paulo (DMP/EPM/ Unifesp), Ministra-Chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo da presidenta Dilma Rousseff de 2012 a 2016, associada à Abrasco, conta sua própria trajetória e analisa a conjuntura atual.
Eleonora Menicucci. Foto: Flickr CC
A entrevista é de Bruno C. Dias, publicada por Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, 08-03-2022.
O que motivou sua escolha pelo campo da saúde?
Embora tenha escolhido a Sociologia, desde o início da graduação tive uma preocupação de pensar a saúde pelo viés das humanidades. Primeiramente, pesquisas sobre o direito sexual e reprodutivo, depois o papel da mulher nos espaços de trabalho. Cheguei a prestar vestibular para Medicina como segundo curso, mas escolhi priorizar a formação e a militância, clandestina à época, que desenvolvia no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.
Sua produção científica tem a contribuição de pensar sobre a visão que a mulher tinha de si no espaço doméstico à sua reinvenção pelo exercício da cidadania. Quais os pontos altos dessa produção científica e acadêmica?
Na minha tese de doutorado busquei desenvolver um trabalho que fiz com as moradoras da Favela Beira-Rio, em João Pessoa, quando fui professora da UFPB. Basicamente busquei compreender como elas se apropriavam de seus corpos a partir de suas noções e dos conhecimentos que debatíamos nos nossos encontros. Fiz o pós-doc na Clinica del lavoro Luigi Devoto, ligada à Facoltà di Medicina e Chirurgia, da Università Degli Studi di Milano e pude fazer pesquisas com as mulheres trabalhadoras de Milão. Quando retornei ao Brasil, apliquei a mesma pesquisa realizada em João Pessoa em áreas periféricas de São Paulo e do Recife. Os resultados e debates constituíram a minha tese de livre docência, submetida e aprovada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Pude ainda fundar e coordenar, em 2000, a Casa de Saúde da Mulher Dr. Domingos Delascio, ligada à Unifesp, voltada ao atendimento de mulheres vítimas de estupro e violência sexual e onde também se fazia o aborto permitido em lei.
E em 2012, você assumiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres. Que ações destaca?
Pensando as gestões petistas no seu todo, as políticas nas quais mais avançamos foram as que tratam dos direitos das mulheres, como a lei Maria Penha (11.340/2006), a lei do feminicídio (13.104/2015) e PEC das trabalhadoras domésticas (Lei Complementar 150 da CLT). No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, implementamos, em parceria com o Ministério da Saúde, a possibilidade de medidas de contracepção em até 72 horas de uma gravidez indesejada e a criação de serviços de aborto legal pelo país. Avançamos muito na universalização dos atendimentos, com o programa Mulher Viver sem Violência e com a construção das Casas da Mulher Brasileira. A proposta inicial era dar acesso, num mesmo espaço físico, a todos os serviços necessários ao atendimento e acolhimento de mulheres vítimas de violência. Para poder oferecer parcela desses serviços às populações não-urbanas, criaram-se os barcos e ônibus lilás, buscando assim atender as mulheres do campo, das floresta e das águas.
Quais foram os desmonte dessas políticas a partir do golpe parlamentar contra a presidência de Dilma Rousseff?
Digo sem medo que todas as mulheres foram beneficiadas no período em que construímos a Secretaria de Políticas para as Mulheres, e que tudo foi detonado, não tem mais nada. As Casas da Mulher Brasileira, por exemplo. Com o objetivo para que foram criadas, atualmente só funcionam as de Campo Grande, Fortaleza e São Luiz, essas duas últimas concluídas com recursos estaduais. A de São Paulo foi terceirizada, e as demais provavelmente devem ter sofrido desvios de função, como a Curitiba. Outro exemplo é o Disque Mulher – 180. Era uma linha exclusiva que dispunha de um processo de automação que permitia, se desejado pela mulher, fazer da denúncia um Boletim de Ocorrência e a abertura processual para medidas protetivas. Esse recurso foi encerrado e desmobilizado. As demandas das mulheres são tratadas atualmente pelo Disque 100 [voltado inicialmente apenas para Direitos Humanos]. O orçamento para as políticas para as mulheres foi zerado no último ano. E por quê? Porque Bolsonaro escolheu as mulheres como seu alvo prioritário, junto com a população LGBTQIA+, as comunidades quilombolas e os povos indígenas.
Como esse desmonte se articula com a pandemia?
Quando o vírus SARS-CoV-2 chegou ao Brasil já estávamos em pleno desmonte das políticas públicas. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi um golpe contra a democracia e os avanços das políticas de direito. A primeira fase dessa orquestração conservadora foi a retirada da presidenta do cargo sem que ela tenha cometido nenhum crime. O segundo ato foi o desmonte a toque de caixa das políticas de direitos, seguida pela implementação das políticas neoliberais, e a terceira fase do golpe foi a prisão do presidente Lula e sua interdição de se candidatar ao pleito de 2018. O cenário da pandemia intensificou os retrocessos. Se o feminicídio já representava 40% dos óbitos entre as mulheres, se os estupros estavam aumentando, a necessidade de ficar em casa aumentou sua vulnerabilidade no convívio com os agressores. O feminicídio ultrapassou a marca dos 50% dos registros históricos. O desmonte das leis trabalhistas foi amplificado, levando ao aumento da precarização do emprego, o que atingiu em cheio as trabalhadoras domésticas. Elas não conseguiram ficar em quarentena em suas casas e tiveram de se expor nos transportes públicos para não perder seus empregos. A primeira morte por Covid-19 no Brasil, uma trabalhadora doméstica do interior fluminense que contraiu a doença dos patrões que voltaram de férias da Itália, é simbólica e significativa desse quadro.
Este ano teremos, em outubro, a eleição para presidente, e em novembro, o Abrascão. O que espera desses dois eventos?
Estive na resistência ao golpe de 1964, e como ministra, junto ao governo que sofreu um golpe em 2016. Espero que a gente saiba construir uma narrativa que chegue na população e consiga resgatar o Brasil, essa democracia muito nova. Uso o verbo “espero” no sentido de esperançar, de estar em movimento para que isso aconteça. O Abrascão será fundamental para que avancemos ainda mais no que já tínhamos conquistado de direitos para as mulheres, na saúde integral e nas questões reprodutivas. Nós criamos o SUS e o PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher) e, por isso, temos a obrigação de impedir os mecanismos de terceirização; de resgatar o financiamento do Sistema e ressaltar que toda a força da descentralização e regionalização em saúde não significa a privatização da gestão ou serviços nos municípios. Temos de recuperar o projeto do SUS para todas as áreas. O atual governo tirou a violência obstétrica do quadro das violências tipificadas contra as mulheres, sendo que a mortalidade materna ainda é muito alta. Temos só um caminho para que a esperança retorne e se torne realidade.
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“Tudo o que construímos na Secretaria de Políticas para as Mulheres foi detonado”, diz Eleonora Menicucci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU