“Agora, no século XXI, a tarefa é repensar uma Cúria Romana que deixa para trás a ordem política do século XX para um papado em um mundo que enfrenta a crise da globalização.Isso implica lidar com a crise dos Estados-nação e organizações internacionais em favor de novas redes transnacionais, etnonacionalismo e grandes corporações. É uma crise da democracia em benefício do Estado administrativo e do capitalismo globalizado”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 05-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Tornou-se costume os papas se reunirem com os principais funcionários da Cúria Romana todos os anos, pouco antes do Natal, para trocar saudações natalinas.
E desde 2014, os comentaristas anteciparam o encontro anual com grande curiosidade, enquanto os líderes e funcionários desses escritórios do Vaticano o abordaram com crescente apreensão.
Isso porque o Papa Francisco usou seu discurso na reunião pré-natal daquele ano para alertar seus principais assessores contra serem vítimas de uma longa lista de, o que ele chamou, “doenças curiais”.
O discurso ocorreu no segundo ano de seu pontificado, quando havia grandes esperanças de que os esforços do papa jesuíta para reformar a Cúria Romana estavam avançando.
Mas depois que um esboço da Praedicate Evangelium – a constituição apostólica para implementar a reforma – foi distribuído em 2019, não houve mais movimento.
Na verdade, houve principalmente silêncio desde então... e uma redução das expectativas.
Relatos recentes preveem que Francisco publicará a constituição no primeiro semestre deste ano. Mesmo assim, o papa não fez menção a isso no mês passado, no discurso antes do Natal para as autoridades do Vaticano.
Em vez disso, ele se concentrou na humildade e na sinodalidade, mais uma vez exortando-os a se tornarem menos burocráticos, menos voltados para a carreira e mais como uma comunidade cristã.
A Cúria Romana, que funciona como a burocracia central da Igreja Católica, tem sido alvo de polêmicas e caricaturas desde tempos imemoráveis.
Tem estado sob ataque pelo que parece uma eternidade por ser corrupto, não pastoral o suficiente, separado da experiência vivida pelos cristãos e por fazer regras para outros que não se aplicam aos legisladores.
Tem sido assim desde a época de Dante na Idade Média e mais tarde, quando o papa e sua Cúria estavam localizados em Avignon (França) e o humanista italiano Petrarca descreveu os cardeais como aliados de Belzebu.
Esta percepção negativa faz parte do perfil da Cúria Romana e depende sempre (também nos casos de Dante e Petrarca) de uma certa ideia de Roma como cidade sagrada e/ou secular.
Mas em alguns momentos da história da Igreja, como o atual, é mais agudo o sentido da Cúria como alvo do diálogo eclesial e teológico.
No conclave de 2013, após a renúncia de Bento XVI, a polêmica contra a Cúria (e especialmente os italianos lá) tornou-se mais dura tanto da esquerda quanto da direita eclesial, por motivos diversos.
A situação é, em alguns aspectos, semelhante ao que aconteceu durante o Concílio Vaticano II (1962-65), quando a maioria reformista buscou uma grande reforma da Cúria Romana.
Paulo VI impediu que isso acontecesse e, em vez disso, preparou sua própria reforma com a constituição apostólica Regimini Ecclesiae universae de 1967.
Ao mesmo tempo, Paulo VI fez o possível para tranquilizar os funcionários da Cúria, dos quais dependia para o governo cotidiano da Igreja, que nenhuma reforma seria implementada sem sua colaboração no projeto.
É interessante comparar o discurso cuidadosamente codificado que ele proferiu em 29 de setembro de 1963, no início da segunda sessão do Concílio Vaticano II, com os discursos que Francisco fez à Cúria Romana, começando com o discurso pré-natalino de 2014.
Os discursos de Paulo VI sobre a reforma da Igreja visavam tranquilizar o pessoal e as elites da Cúria e obter sua colaboração leal. As emitidas por Francisco parecem ser o oposto.
Existem muitas semelhanças entre Giovanni Battista Montini e Jorge Mario Bergoglio, mas não nesta questão.
Paulo VI tinha um sentido para os planos de reforma: tinha um plano claro para a reforma da Cúria e o executou em apenas dois anos após o fim do Vaticano II.
O papa italiano era a alma de um grupo bastante coeso, a maioria reformista do Concílio, que se tornou uma grande parte da classe dominante da Igreja no início do período pós-conciliar.
Graças a ele, a Cúria Romana tornou-se menos italiana, mais internacional e mais sensível às relações entre a Igreja e a cultura moderna. Obviamente, isso foi feito com resultados mistos.
Ao contrário, Francisco não trouxe ninguém de seu próprio povo a Roma e não nomeou nenhum argentino para cargos de chefia no Vaticano liderados por bispos e cardeais.
Ele só pode contar com jesuítas importantes e alguns latino-americanos que vivem em Roma, mas ele não tem um time – nem mesmo um time de rivais.
Nós ainda não sabemos se a Cúria Romana será significativamente diferente depois que Francisco completar sua reforma.
O Conselho de Cardeais (que ele criou apenas alguns meses após sua eleição para o papado) começou a trabalhar neste projeto a sério em 2014 e a única coisa que foi colocada em branco e preto é o projeto de 2019 da constituição apostólica. E isso foi recebido com feedback crítico e foi chamado de volta para uma reformulação.
O que sabemos agora é que a reforma financeira, que envolveu mudanças em vários cargos, foi uma mistura (mesmo deixando de lado a rivalidade entre os cardeais George Pell e Angelo Becciu ou o atual julgamento criminal contra este último).
O papa também fundiu vários departamentos (chamados dicastérios no jargão do Vaticano), como acontece periodicamente nos governos. É possível que outra grande fusão envolva os dicastérios da Propaganda Fide, Nova Evangelização, Educação e Cultura.
O Conselho de Cardeais – que era originalmente conhecido como C8 (oito membros), depois cresceu para o C9 e agora é o C7 – perdeu muito de seu apelo original.
A própria decisão de Francisco de criar um conselho privado para ajudá-lo a governar foi considerada inovadora e quebrou um tabu na história das relações estritamente monogâmicas entre os papas e os membros da Cúria.
O modo como a nova constituição apostólica trata de certas questões-chave dirá muito sobre o projeto do papa argentino para o futuro do corpo administrativo central da Igreja.
O primeiro conjunto de questões diz respeito às congregações históricas da Cúria Romana.
Por exemplo, a Congregação para a Doutrina da Fé manterá o papel supremo que tem desempenhado desde o século XVI, ou se igualará às demais como parece ter acontecido durante o pontificado de Francisco?
E o que acontecerá com a poderosa Congregação para a Evangelização dos Povos – comumente conhecida como Propaganda Fide – agora que toda a Igreja Católica é considerada território missionário e precisa ser (re)evangelizada?
Haverá um reequilíbrio entre as congregações para bispos, clérigos, religiosos e leigos à luz da nova ênfase na sinodalidade?
Nessa perspectiva, Francisco manterá o sistema baseado em dicastérios permanentes ou voltará ao modelo anterior de governo denominado consistorial centrado em comitês ad hoc?
Um segundo conjunto de questões diz respeito a dicastérios que foram criados recentemente ou cujo papel se tornou central nos últimos dois séculos.
Uma delas é a Secretaria de Estado. Continuará a ser um superdicastério coordenando os demais (como Paulo VI queria que fosse)? Ou a tarefa de coordenação será assumida por outras instituições, talvez o Conselho de Cardeais?
Um terceiro conjunto de questões diz respeito aos dicastérios ou órgãos que Francisco criou, como o Secretariado e o Conselho para a Economia e o Dicastério para o Desenvolvimento Humano (que agora tem uma liderança interina, depois que Francisco recentemente aceitou a renúncia do Cardeal Peter Turkson em conclusão do seu mandato de cinco anos)?
Em uma Igreja sinodal, qual será a relação entre o Sínodo dos Bispos e a Cúria Romana?
E o mais importante: a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores (ou um dicastério recém-nomeado com a mesma tarefa) receberá posição, pessoal e recursos adequados para fazer valer o seu papel no tratamento de outros dicastérios da Cúria?
E, finalmente, uma quarta questão diz respeito ao papel do Vaticano como centro de uma Igreja que agora se orienta para as periferias.
A atual desordem global, eclesial e política reforçou a necessidade, prática e simbólica, de um centro seguro para a Igreja Católica.
O catolicismo é maior e mais vasto do que a Cúria Romana, mas acredito que um centro em Roma ainda seja essencial. Não para a preservação de tradições eclesiásticas transitórias, mas para manter as periferias no radar da Igreja universal como um todo.
Entre outras coisas, nos últimos dez séculos a Cúria Romana também serviu como produtora de ideias e cultura – não apenas nas artes – que mantiveram o catolicismo global.
Isso é frequentemente ignorado por aqueles (tanto à esquerda quanto à direita) que superestimam o momento de autoridade / normativo na ordem eclesial e eclesiástica.
As dificuldades persistentes na redação da constituição apostólica para uma Cúria Romana reformada devem ser vistas no contexto dos últimos dois séculos.
Nas primeiras décadas do século XIX, houve diferentes tentativas de introduzir reformas curiais radicais durante os anos profundamente traumáticos que se seguiram à Revolução Francesa (1789-99) e ao surgimento de Napoleão.
Houve o sequestro e a morte de Pio VI nas mãos dos franceses, o conclave de 1800 em Veneza e duas ocupações francesas de Roma. Tudo isso serviu para paralisar ou deslocar pessoal e arquivos da Cúria.
O fato é que a reforma real da Cúria Romana, que marcou época, aconteceu apenas em 1870. Mas não por causa de algo que foi ordenado pelo papa ou pelo Concílio Vaticano I (1869-70).
Em vez disso, a reforma ocorreu indiretamente com o colapso dos Estados papais.
Isso reformulou completamente a tarefa da Cúria. Não estava mais encarregado de governar um reino ou uma Igreja a ele ligada.
Agora estava no centro de uma Igreja global que caminhava para a globalização. Isso se deveu, em parte, à exaltação do papado por meio dos dogmas sobre o primado e a infalibilidade aprovados pelo Vaticano I.
O plano de reforma de Francisco nos ajuda a entender que a forma da Cúria Romana não é decidida autonomamente pela própria Cúria ou pelos papas, mas também pelas condições históricas externas nas relações entre o papado e a ordem política global (Itália incluída).
Nos últimos dois séculos, vimos duas mudanças importantes.
A primeira foi entre os séculos XIX e XX, quando a Cúria passou de servir um papado inserido no sistema imperial para uma Cúria servindo a um papado operando em um sistema de Estados-nação.
Agora, no século XXI, a tarefa é repensar uma Cúria Romana que deixa para trás a ordem política do século XX para um papado em um mundo que enfrenta a crise da globalização.
Isso implica lidar com a crise dos Estados-nação e organizações internacionais em favor de novas redes transnacionais, etnonacionalismo e grandes corporações. É uma crise da democracia em benefício do Estado administrativo e do capitalismo globalizado.
O que está claro é que a tentativa de cada papa de reformar a Cúria Romana é, em grande parte, baseada em sua experiência anterior com essa estrutura burocrática central.
É evidente que Paulo VI queria atualizar a Cúria de Pio XII, da qual ele havia sido um protagonista. Seu modelo era uma mistura de Pacelli e Vaticano II.
Mas Francisco é uma anomalia em muitos aspectos. Ele não é um padre italiano ou diocesano, mas um jesuíta sem nenhuma rede pré-existente na Cúria Romana. Em vez disso, ele está mais próximo a um modelo de Igreja como movimento e a um cura villero (padre das favelas).
Suas relações com a burocracia do Vaticano como arcebispo eram mais distantes em comparação com seus antecessores no século passado.
As idiossincrasias do Papa Francisco contra a Cúria são bem conhecidas. Mas ainda é difícil saber que tipo de modelo ele imagina para a Cúria Romana – isto é, em que se inspira ou almeja.