Lucas é o evangelho da contemplação manifestada na ação. Na obra lucana, os personagens agem repletos do Espírito Santo, por isso, suas palavras são sempre traduzidas em exemplos de compaixão, misericórdia, hospitalidade e amor. Aquelas categorias de pessoas que a sociedade excludente colocava à margem, na pedagogia de Jesus, como o médico das almas e dos corpos, estão no centro: mulheres, pecadores, samaritanos, estrangeiros e pobres ocupam as mais belas páginas deste evangelho.
O artigo é de Isidoro Mazzarolo, frei capuchinho, doutor em teologia bíblica pela PUC-Rio (1992), PhD em exegese bíblica pela École Biblique et Archéologique de Jerusalém.
É o evangelho que mais títulos recebeu pelos exegetas e pesquisadores: evangelho dos pobres, da mulher, da inclusão, da misericórdia e outros; e o seu estilo e redação demonstram a importância da cultura grega para o Novo Testamento, especialmente em Lucas e Paulo (ou, de modo inverso, Paulo e Lucas, visto que Lucas é discípulo de Paulo). A cultura grega era aberta, receptiva, ansiosa por novidades e conhecimentos. Lucas nos apresenta Jesus como um grande intérprete das tradições do passado, capaz de fazer atualizações de modo magistral, sem fazer apologias retóricas, mas demonstrando em atos a pedagogia do Reino de Deus. Jesus não tem conflitos nem temores: vai à casa de um fariseu fechado e nela acolhe uma mulher pecadora (7,36-50), faz uma grande viagem entre os samaritanos excluídos (9,51-18,34), pede hospedagem na casa de um publicano chamado Zaqueu (19,1-10) e muitos outros fatos, mostrando a nova pedagogia do Reino. O Papa Francisco alicerça a carta Fratelli Tutti (esp. 56-86) na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37), exemplo de superação de preconceitos, exclusões ou outras formas de afastamento dos necessitados.
Ler o evangelho de Lucas é acompanhar uma fascinante caminhada do Homem de Nazaré que, fazendo-se o humano perfeito, como filho de Adão (3,38), mostrou como são os caminhos de Deus. Melhor que ninguém, Lucas nos coloca em contato direto com as opções de Jesus diante da vida. O itinerário traçado deixa o leitor comprometido e angustiado com a sua própria história. Ele precisa fazer como o Mestre fez. E, de modo especial, voltando a mensagem para os “excluídos”, para aqueles que estão “fora”, a necessidade de entender o sentido do evangelho torna-se maior. Ao acompanhar as etapas narradas pelo evangelista, o leitor sente-se próximo do Mestre e, concomitantemente, sente-se acompanhado por ele na história presente. Lucas nos mostra que, nos passos de Jesus, estão as pegadas de um homem como o novo ser humano, o novo Adão, e, nos feitos realizados pelos cristãos, estão as silhuetas da vontade do Pai.
Lucas tem um destinatário preciso, Theófilo (theou + philós = amigo de Deus), um discípulo e um seguidor de Jesus em todas as circunstâncias. Esse Theófilo é um discípulo perfeito no seguimento do Mestre pelos caminhos dos pagãos, se dispõe a comer com os pecadores, assumir e defender as mulheres de má conduta. Alguns autores acreditam que Theófilo seja um personagem rico que tenha ajudado a patrocinar pergaminhos para multiplicar as cópias das cartas e missivas de Paulo. Nesse campo, havia muitas pessoas que o ajudavam. Por isso, não me parece correta essa interpretação.
Caminhar com Lucas, seguindo as pegadas de Jesus, é dispor-se a seguir caminhos desafiadores, de ruptura com esquemas rígidos da lei e das tradições, para assumir um itinerário novo, mais perigoso e mais inseguro, mas verdadeiramente próximo de Deus e próximo do outro. É nos caminhos de uma opção pelos excluídos, dos que estão sendo despejados para fora da base da pirâmide social, política e religiosa, que se encontra o caminho profético da graça do Espírito manifestado por Jesus de Nazaré, que veio para ser a vida, a paz e a voz dos que lutam sozinhos neste mundo, diante dos déspotas e dos opressores que, depois de oprimi-los, exigem que os pobres os chamem de benfeitores (Lc 22,24-30).
Diferentemente de Marcos e Mateus, que apresentam a missão de Jesus em duas etapas (Galileia e Judeia), Lucas nos apresenta a missão de Jesus em três grandes etapas:
1. Aos perdidos da Galileia (4,1-9,50);
2. Aos perdidos da Samaria (9,51-18,31);
3. Aos perdidos de Jerusalém (18,32-22,56).
O terceiro evangelho é, sem dúvida alguma, o mais humano e o mais divino ao mesmo tempo. Apresenta Jesus, perfeitamente humano, como portador da Revelação e Graça do Pai ao mundo e aos homens, seus amados (Lc 2,14). Jesus é o médico, é o pedagogo, o irmão do órfão, o advogado da viúva desamparada, o crítico do comportamento hipócrita diante da mulher pecadora, a esperança do desvalido, o crítico severo da liderança despótica, enfim, o embaixador da misericórdia e da justiça (Lc 4,18-19). Jesus, em Lucas, é a imagem dessa comunhão da divindade encarnada no humano, conferindo à criatura humana uma dignidade e um direito inalienáveis: filhos e filhas amados.
Num caráter universal, apresentando Jesus na linha do gênero de Adão (Lc 3,38), Jesus é o portador da graça a todos os homens e mulheres de boa vontade. Assumindo um princípio pedagógico da inclusão, Jesus vai em busca de Levi (5,27-32); do fariseu e da pecadora (7, 36-50); da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho perdido (Lc 15,1ss); de Zaqueu (19,1-10). A pedagogia da inclusão é uma inversão da lógica social fundamentada nos privilégios e nos falsos direitos. A partir dos privilégios, existem os “direitos adquiridos” pela geração anterior ou pela simples classe ou casta a que alguém pertence. A partir dos preconceitos, há “eleitos”, escolhidos por Deus e outros preteridos, condenados ao sofrimento e ao submundo do desterro. Diante desses quadros antagônicos, encontramos a soberania de Jesus, que não se faz adular pela direita ou pela esquerda, mas segue intrépido a voz do Espírito (4,18-19). Jesus demonstra aos homens e mulheres que o universo pertence ao Pai e, dessa forma, tudo o que nele está deve contribuir para que os seus filhos possam reencontrar o caminho para ele.
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O evangelista afirma que muitas pessoas já haviam tentado compor algo sobre Jesus e os fatos acontecidos com ele (Lc 1,1-5). Nas comunidades cristãs, havia a preocupação em conservar e transmitir as palavras de Jesus à geração seguinte com a maior fidelidade possível. Assim, já na época de Paulo, antes que Lucas começasse a escrever seu evangelho, havia muita gente que escrevia sobre os discursos e os milagres de Jesus (2Cor 2,17; Gl 1,6-10; 3,1-3). Alguns escreviam com maior precisão e estrutura; outros, apenas frases e sentenças. Em épocas posteriores, com certeza havia um maior número. As coletâneas de escritos do Novo Testamento, encontradas e guardadas em diversas bibliotecas do mundo, são muitas. Dessa forma, Lucas escreve no começo do seu evangelho: Depois que muitos haviam escrito sobre a vida, fatos e ditos de Jesus, Lucas entendeu que era necessário fazer um trabalho crítico para solidificar a fé daqueles que tinham acreditado no anúncio dos primeiros discípulos, mas que depois corriam o risco de acreditar em falsos escritos. Não faltavam, desde o começo, mal-intencionados que escreviam para desdizer ou contradizer aquilo que os verdadeiros discípulos anunciavam. No seu prólogo, o evangelista deixa claro que não está compondo uma biografia de Jesus, mas fazendo um relato sobre os fatos que sejam seguros e sólidos para a catequese dos novos cristãos. O que ele escreve está fundamentado na tradição dos primeiros testemunhos oculares e nas fontes que outros haviam elaborado. Trata-se de uma pesquisa de ajuda ao discernimento entre os falsos e verdadeiros escritos.
A definição do trabalho é que vai ser uma narrativa (diêgêsis) a respeito de tudo o que havia acontecido, de tudo aquilo que tinha alcançado seu complemento ou sua plenitude. Diante da multiplicidade de escritos, muitas vezes difamatórios, tornava-se imperioso compor uma narrativa sólida para evitar que os cristãos mais ingênuos e menos informados acreditassem em mentiras veiculadas pelos bajuladores e mentirosos, que colocavam confusão em suas cabeças. Por história ou narrativa, o evangelista quer expressar a seriedade do seu trabalho e a garantia que o leitor terá com isso. A história tem base nos fatos, e só isso confere seriedade e garantias de autenticidade.
Evangelho de Lucas.Imagem: Pixabay
Ao pensar em escrever uma história a respeito dos principais eventos, era preciso investigar a documentação e ao mesmo tempo consultar os mais velhos, que tinham sido testemunhas oculares dos fatos. Lucas ainda estava próximo da primeira geração de discípulos e apóstolos.
O modelo narrativo de Lc pode ser evidenciado em dois exemplos específicos: em At 20,17-38 e Lc 22,14-38. Em ambos, aparece uma chamada de atenção em torno de Jesus e Paulo como duas figuras-modelo a serem imitadas. Paulo serve como um grande modelo para os anciãos de Éfeso; usa um procedimento padrão dentro das categorias filosóficas dos mestres gregos, quando faz suas exortações éticas em torno da ceia. No relato da Eucaristia, Jesus pede que os discípulos façam o mesmo, como memorial dele (22,20). As fontes principais do estilo narrativo de Lucas estão em dois ambientes: de um lado, o estilo do mundo greco-romano, e do outro, o ambiente judaico-helenístico. Nesse caso a fórmula é de uma narrativa padrão da época. Os modelos narrados, dentro da tradição helenística, tinham como finalidade oferecer exemplos a serem imitados, exemplos em educação e retórica, e também de conduta ético-social (cf. 1Cor 4,14-21; 7,7). Os escritos narrativos biográficos, retóricos ou mesmo novelísticos tinham uma finalidade pedagógica. Pode-se ver as novelas bíblicas: Jó, Rute, Ester, 2Macabeus, Tobias.
No estilo narrativo de Lc, o gênero paradigmático desempenha um papel fundamental. As figuras e as narrativas possuem um sentido simbólico e procuram conduzir o leitor ou o ouvinte a descobrir o significado do exemplo. Nesse modelo narrativo, o gênero historiográfico helenístico deve ter influenciado Lucas, bem como uma série de outros escritores (1,2Mac, Políbio, Dionísio de Halicarnasso, Josefo, Fílon).
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O “coração” do evangelho de Lucas, retratado no capítulo 15, justifica a forma como esse evangelista apresenta Jesus. A pedagogia da inclusão confere ao evangelho uma pintura clara da perspectiva geral das atitudes de Jesus e, por isso, essa obra recebe com mérito o título de evangelho sociológico. É bem provável que o contexto da evangelização dos pobres, em Lucas, encontra seu paradigma em Is 61,1-2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Javé me ungiu; ele me enviou para anunciar uma mensagem de alegria aos pobres; curar os corações feridos; proclamar a libertação aos deportados e a liberdade aos prisioneiros”. Esse horizonte de missão pode ser percebido na pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30). Segundo J. Dupont, a questão não pode ser tomada ao pé da letra. No entanto, o público que estava na sinagoga divide-se, e um grupo se encarrega de começar a perseguição e de fazer-lhe oposição.
A hostilidade se estende depois a Cafarnaum; quando eles vão usar o provérbio: “Médico, cura-te a ti mesmo”, vão dizer-lhe que fizesse em Nazaré aquilo que estava fazendo lá (4,31-41). A resposta seria automática: “Nenhum profeta é mal recebido, senão em sua própria Pátria” (4,24). O costume sinagogal era de fazer aos sábados uma leitura dos “livros de Moisés”, numa leitura contínua, como faz alusão At 13,14;15,21. Na leitura da sinagoga, Jesus e Paulo se aproximam: Lc 4,16-30 de At 13,14-52. No primeiro relato, Jesus entra na sinagoga de Nazaré e lê (Lc 4,16-30; cf. Is 6,1-2). No segundo, é Paulo que entra na sinagoga de Antioquia e faz a leitura dos Profetas e da Lei e depois profere o discurso (At 13,15-41). A resposta que Jesus dá aos fariseus e a outros que se levantam contra ele por inveja e arrogância enfatiza a razão pela qual Elias e Eliseu não fizeram em Israel o que fizeram fora. Paulo e Barnabé respondem aos judeus da sinagoga que a palavra de Deus já não era enviada aos judeus porque eles não aceitavam a Boa Nova, mas aos pagãos, que se manifestavam receptivos e acolhedores.
A sentença: “hoje se cumpre a Escritura” (4,21) tem um sabor de cumprimento em função dos eventos que irão se passar em Jerusalém, Paixão e Ressurreição. Jesus, o Filho do Homem (Lc 18,31), sofre uma paixão injuriosa (Is 53,12) como o Servidor do Pai (Lc 22,37), mas é nele que se cumprem as Escrituras. Jesus é o evento do cumprimento das Promessas. Na verdade, o paradigma mais claro desse voltar-se para os pagãos pode ser encontrado na parábola do Bom Samaritano (10,25-37), o qual, superando o sacerdote e o fariseu, é apresentado como o próximo verdadeiro. Ser o próximo de alguém não é algo teórico, mas prático. Assim, o terceiro evangelista constrói uma práxis, dentro de uma parênese ao sistema farisaico e cristão.
São Lucas, Evangelista. Fonte: St. James Episcopal Church
Lucas escolhe alguns quadros centrais nos quais coloca os princípios básicos da missão de Jesus:
a. O Espírito Santo.
Em toda a obra aparece a força do Espírito Santo como o condutor da História. Na abertura da História da Salvação, em Jesus Cristo, aparece a presença e a ação do Espírito sobre a mãe do Salvador. O anjo que anuncia a embaixada de Deus a realizar-se em Maria seria obra do Espírito (1,35). Em seguida, quando Maria vai saber se sua prima está mesmo grávida, ao chegar e saudar a que era estéril, o Espírito Santo torna Isabel plena da força do alto (1,41). Ao iniciar sua missão, Jesus afirma que sua missão seria orientada pela unção do Espírito Santo e a direção dessa missão seria a do Espírito e não das tradições dos antepassados (4,18-19; cf. Is 61,1-2).
b. A paixão.
Um dos quadros fortes de Lucas é o relato da Paixão, segundo o qual, para muitos estudiosos, tem mais uma ótica martirológica que soteriológica. No gênero literário da Paixão que inicia com a Instituição da Eucaristia (22,19-20), Jesus é um paradigma para a imitação e seguimento.
c. A tentação.
Jesus é apresentado, em cada cena superando a tentação, como exemplo a seus discípulos, para que estes não sucumbissem diante das tentações. Aqui, aparece uma das diferenças redacionais do terceiro evangelista em relação a Marcos, pois Lucas enfatiza mais a presença de Jesus em oração com os seus discípulos. No relato de Lucas, Jesus costumava ensinar no Templo de dia e passar a noite em oração no Monte das Oliveiras, aonde era seguido pelos seus discípulos (22,39). Nesse quadro, Jesus atua como o verdadeiro Mestre, de modo diferente de Marcos 14,32. “Orai para não cairdes na tentação” (Lc 22,40) é uma exortação feita imediatamente antes de ser preso.
d. A oração.
Pode-se afirmar que a oração é outro paradigma na obra de Lucas. Diante de todos os momentos especiais, Jesus faz longos exercícios de oração (19,47; 21,37; 22,39). Há uma típica ênfase lucana na orientação de fazer a vontade do Pai (22,42). O Pai Nosso (11,1-4) é o modelo de oração da confiança no Pai. Essa oração sustenta Jesus num momento crucial, no qual os discípulos dormem, no Getsêmani (cf. 22,45-46). Lucas possui uma narrativa mais pedagógica, modelística, por isso omite a perspectiva do trágico presente em Mc/Mt, os quais apresentam uma influência provável do Sl 22,2, para narrar o sono dos discípulos e a solidão de Jesus naquela hora, na qual eles eram tão importantes. Jesus enfrenta a morte com calma e, cumprindo um projeto, entrega o espírito ao Pai, citando o Sl 31,6.
e. A misericórdia.
Alguns ensinamentos de Jesus são fundamentais dentro da nova pedagogia do Reinado de Deus, que é a pedagogia da inclusão. Na vocação de Levi (5,27-32), Jesus mostra aos outros quatro, já convocados e presentes no grupo, que era preciso “incluir” aqueles que a sociedade desprezava. A conversão dos “puros” deveria dar-se na compaixão e no voltar-se para fora. Com certeza os discípulos devem ter questionado Jesus sobre a “dignidade” de Levi e sua “contaminação” ao grupo. No entanto, Jesus manifesta sua soberania e convoca quem ele quer. Num outro episódio (7,36-50), Jesus quer incluir a mulher pecadora, mas entende que era muito difícil converter o fariseu. Dessa forma, estando na casa de Simão, o “fariseu”, Jesus aproxima a mulher e põe diante daquele a sua possibilidade de fazer parte do grupo; porém, para que isso ocorra, é necessário que ele aceite a mulher. Estando na Samaria, Jesus é questionado por um doutor da Lei que quer saber sobre quem é o próximo e o que é a vida eterna. Jesus responde através da parábola do bom Samaritano (10,25-39) e ensina que a solidariedade está acima das leis. E num ponto alto dos ensinamentos (15,1ss), Jesus mostra em três parábolas - A ovelha, a moeda e o filho - que Deus é um Pai que procura, perdoa e “reinclui” os que os homens jogaram fora.
f. A morte.
A morte de Jesus, em Lucas 23 e a lapidação de Estevão, em Atos 7, estão modeladas como retratos claramente paradigmáticos da resistência e força do Espírito diante das forças do mal. A tendência de Lucas é de relativizar ou diminuir as possíveis emoções negativas no contexto da Paixão de Jesus presentes em Marcos (15,34) e Mateus (27,46). O grito alto de desamparo aparente em Marcos (Mc 15,34) e Mateus (Mt 27,46), baseado em Sl 22,2, está atenuado em Lucas. Se Lucas 23,34 é genuíno, Jesus exemplifica o perdão aos inimigos, pelos quais ele orou, como em Lucas 17,3-4 (perdão frequente de alguém que peca contra você), dando um exemplo de como rezar: “Pai... perdoe nossos pecados, porque a nós mesmos perdoa todo o mundo que está endividado conosco” (11,4). Depois de suportar em silêncio o escárnio dos seus inimigos (23,35-39), Jesus assegura pacificamente ao ladrão crucificado e arrependido que para ele esse perdão seria “hoje”, e eles estariam juntos no Paraíso (23,43). Tudo isso está em contraste afiado com o quadro de Marcos, no qual a situação de Jesus é um profundo tormento. Em Marcos, Jesus pergunta ruidosamente ao Pai por que o abandonara e, com um forte grito, morre. Os temas redacionais de Lucas entram por outra porta e colocam Jesus como um modelo de superação ou como um paradigma em situação semelhante diante da morte. Jesus seria colocado como paradigma de como morrer, assim como na tradição helenística eram colocados Platão e Sócrates.
g. A Eucaristia.
O evangelista acentua de modo singular a Eucaristia como Aliança, de forma a tornar o seu leitor comprometido com toda a história de Jesus, não apenas com um ritual à mesa. A Eucaristia não é um remendo nas tradições judaicas, mas um novo conceito de práxis e vida; ela é a Nova Aliança no sangue. O participante de um rito religioso de oração e fração do pão não oferecerá mais os frutos do campo, dos rebanhos ou da sua profissão. Ele oferecerá a si próprio como oferta em sacrifício; o seu sangue será sinal de consagração, e a sua vida será o elemento de ligação entre o sagrado e o profano (cf. Rm 12,1-2). No ato de culto, no rito religioso ele só terá para oferecer aquilo que ofereceu como aliança com os pobres, com os coxos, cegos e marginalizados. Se ele tiver feito de sua vida uma doação no processo de Libertação pela unção do Espírito (Lc 4,18-19), então ele terá feito tudo o que era necessário para possuir a dignidade de partir o pão e o cálice (cf 1Cor 11,17-34). A Eucaristia é uma ação de graças no altar do mundo e uma elevação dessa comunhão com o mundo no altar de culto.
Imagem: Cerezo Barredo
O relato de Lucas exige do leitor ou do ouvinte uma tomada de posição diante da vida concreta. Há um imperativo categórico segundo o qual o discípulo deve tomar suas decisões. Em muitas parábolas, Jesus oferece pistas de amadurecimento das opções. Diante dos fatos da vida, há uma possibilidade de decidir conforme a Lei, conforme as tradições (Lc 7,36-50 = a pecadora e o fariseu, Lc 10,25-37 = o samaritano no confronto com o sacerdote e o levita, Lc 16,19-31 = Lázaro, o miserável e o rico avarento). O evangelista procura, em toda a narrativa, comunicar a seus leitores um potencial real ou imaginário, diante do qual ele, por força do relato, tomará uma decisão. A capacidade de discernimento vai conferir ao verdadeiro discípulo uma maturidade moral através da qual ele será capaz de distinguir entre o legal e o moral. Para Lucas, que aprende muito de seu grande mestre Paulo, o discipulado é uma aprendizagem verdadeira da posição de Jesus diante dos fariseus, do sinédrio e das tradições. Nem tudo o que é legal é moral. Mesmo que algum preceito tenha valor legal (jurídico), se ele for imoral (Is 10,1-2), não poderá ser cumprido.
A vida é um palco cujos atores são os que detêm a capacidade de representar. Não é algo previamente determinado, mas, ao entrar no ambiente da narrativa, o leitor vai decidir sua posição. Essa forma retórica é muito perceptível no estilo e no ambiente de Lucas. As narrativas helenísticas tinham como pano de fundo criar uma mentalidade referente a uma determinada forma de comportamento. Poderíamos falar talvez da Halakah judaica - narrativas que ajudam e estimulam uma forma comportamental. Nas narrativas de Lucas, Jesus é o modelo para todo o discípulo.
Na verdade, as narrativas de Lucas/Atos nunca foram vistas como moralizadoras, mesmo que usassem de modelos e paradigmas dignos de imitação ou de reprovação comportamental nas suas funções específicas. Há quem veja nisso um recurso retórico referente ao meio helenístico no qual o evangelho é escrito. Nisso, se comparadas (Lc/At) com a moral estoica e as correntes dos epicureus, poderão ser vistas como uma forma de ensinar uma determinada ética comportamental, uso feito pelas primeiras gerações cristãs. Assim, a pregação em torno do martírio de Policarpo usava um argumento de semelhança com o martírio de Estevão. O martírio dos dois era colocado como ideal para os cristãos. Do mesmo modo, o Concílio de Jerusalém (At 15,1ss), criticado por alguns exegetas como sendo uma narrativa harmonizada pelo redator (na realidade ele teria sido um momento crucial de controvérsias entre dois modelos de evangelização e de dois temperamentos diferentes), foi usado pela vida monástica como o exemplo de conclusão de qualquer discussão comunitária e de qualquer solução pastoral.
Uma teologia da libertação como releitura do Êxodo. Sem ser moralizador, Lucas usa de modo próprio uma linguagem e muitos arquétipos para atingir seus objetivos catequético-pedagógicos. Assim, ele constrói um cântico para Maria (o Magnificat) que se torna o modelo de todo o projeto teológico libertador (Lc 1,46-55). Do mesmo modo, a dialética entre Marta e Maria pode ser vista como o modelo de acolhida e de seguimento por parte de Maria, que gasta tempo com o hóspede (Lc 10,38-42). A parábola do bom Samaritano coloca frente a frente a caridade para com um homem em necessidade feita por um estrangeiro e a omissão do socorro do Levita e do Sacerdote, os quais fazem da tradição e da lei um critério de negação fundamental à vida (Lc 10,25-37). Na parábola do mau administrador (Lc 16,1-13), o evangelista nos apresenta um modo pérfido de solucionar questões difíceis, exemplo que, invertido (usado para o bem), pode ser a solução de muitos problemas entre os cristãos.
Jesus faz o seu êxodo, o verdadeiro. Assim, estando na Samaria, Jesus faz o terceiro anúncio da paixão (18,31-34) colocando Jerusalém como o “palco” do desfecho de tudo, no entanto, em lugar de caminhar diretamente para Jerusalém, ele faz um “desvio” por Jericó (18,35-19,27), lugar do “velho êxodo do povo hebreu”. Em Jericó, Jesus se encontra com um cego e depois com um publicano e faz o cego ver e Zaqueu se converter. Este é o verdadeiro êxodo, aquele que transforma e cura.
Quadro de Guercino (1562), "Lucas, evangelista".
A estrutura narrativa segue um fluxo dos personagens. Nos capítulos iniciais (1-3), encontramos os protagonistas da “virada” da História agindo sob a proteção do Espírito do Senhor. São mulheres, juntamente com os homens (Isabel, Maria, Ana, Zacarias, Simeão...) que entendem a voz e se põem na dinâmica da Boa Nova do Reino.
Os protagonistas marcham na dinâmica do Espírito do Êxodo: eles se tornam profetas da Libertação. Os cânticos de Maria (1,46-55), de Zacarias (1,67-79) e de Simeão (2,27-32) são arquiteturas teológicas que reconstroem a perspectiva libertadora do Êxodo. É uma profecia a caminho. É a força do Espírito capaz de reendireitar as “veredas do Senhor”, aplainar seus caminhos e fazer novas todas as coisas, especialmente as esperanças dos desvalidos, dos despojados e dos que estavam “fora” do círculo antropológico-teológico da época.
A mulher torna-se protagonista da Salvação. A partir da ruptura da “esterilidade” de Isabel, do sim de Maria, do discipulado da pecadora (7,36-50), da visita a Marta e Maria (10,38-42) e do discipulado das mulheres da alta sociedade (8,1-3), pode-se notar que o sentido da missão é integrar todas as forças e todas as capacidades sociais de uma comunidade. O diferente torna-se constitutivo nessa comunidade.
Centralizada nas três parábolas da misericórdia (15,1ss), pode-se ver a dimensão objetiva da missão de Jesus em todo o evangelho como o anunciador de um tempo favorável da parte de Deus à humanidade (4,19). O tempo da Salvação segue a ótica do Espírito, que o envia para anunciar a graça (4,18). Jesus está na continuidade da pregação profética, especialmente de Isaías, e realiza sua missão nos moldes próprios, manifestando a soberania de Deus e a vitória da Trindade no plano da Salvação.
O Magníficat é um cântico de libertação que não significa a destruição dos tronos dos poderosos para assumir os seus lugares, mas de que os poderosos façam uso dos seus bens para a promoção dos pobres e transformar a terra numa utopia do céu.
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A primeira questão em torno do conteúdo da narrativa é: como o Evangelho de Lucas apresenta seu personagem principal, como ele se move e como Jesus manifesta sua autoridade e sua compaixão? Aquilo que Lucas faz com sua primeira obra, uma iconografia de Jesus, glória de Deus e salvação do Homem. Na verdade, concentrada no capítulo 15, está a chave de leitura de toda a obra do terceiro evangelista: a misericórdia do Pai, tipificada nas três parábolas do resgate e da inclusão. O pastor que tinha 100 ovelhas vai em busca de uma que se perdeu, mesmo tendo ainda 99 seguras; a mulher que tinha 10 moedas procura uma moeda perdia pela casa, mesmo tendo ainda 9 e o pai que, tendo 2 filhos, não descansou enquanto não viu o que saíra, regressar.
Na matemática da compaixão e da redenção, o pastor vai em busca de 1% que se perdeu; a mulher procura 10% das moedas e o pai procura um filho, que significava 50% dos filhos que possuía. Desta forma, quem não quer perder tudo precisa cuidar dos mínimos detalhes. Uma comunidade com 1000 fiéis não pode ficar tranquila se, porventura, um deles abandonou a comunidade, pois quem despreza o pouco, pode acabar desprezando o muito.
O evangelho de Lucas, no perfil da misericórdia, torna-se uma obra de múltiplas faces e especialmente do jeito do Pai revelado em Jesus Cristo, na sua manifestação e resgate do plano da Salvação. A misericórdia é a manifestação do desejo original e do sentido primitivo do ser humano desde a Criação; por isso, Lucas recebe as mais diferentes definições, como o “evangelho da misericórdia, o evangelho dos pobres, o evangelho social, o evangelho da história da salvação...”. Tomando uma expressão do próprio evangelista no segundo Livro (At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14.22), pode-se afirmar que este é o evangelho do Caminho, pois Jesus torna-se o evangelho do Pai nos caminhos da Galileia, nos caminhos da Samaria e no Templo de Jerusalém.
Lucas escreve no primeiro livro (o evangelho) a essência daquilo que as comunidades conservaram como ditos e fatos da vida de Jesus, além daquilo que ouviu transmitido oralmente por outras testemunhas, como relatos fidedignos das origens. No entanto, quando lhe convém, Lucas segue um caminho próprio, com informações que só ele obtém. Isso lhe permite revestir sua obra com uma tonalidade e beleza singulares.
Lucas (Jim Caviezel) e Paulo (James Faulkner) retratados no filme "Paulo, Apóstolo de Cristo", de Andrew Hyatt, 2017
Em três oportunidades, Paulo fala de Lucas como companheiro; em Cl 4,14, Fl 24 e 2Tm 4,11. Em Cl 4,14, o apóstolo Paulo refere-se a Lucas também como médico. Na verdade, considerando o relato dos Atos (20,6ss), Lucas vai estar ao lado de Paulo até sua chegada a Roma. Assim como outros discípulos, Lucas se torna não apenas um discípulo do evangelho, mas um suporte humano e espiritual do Apóstolo. Segundo alguns autores, ele seria originário da Antioquia, da Síria. Esse testemunho é de Eusébio (História Ecclesiastica, 3,4). Partindo do relato que Lucas faz nos Atos (16,10), ele se apresenta na companhia do Apóstolo, a partir de Trôade até Filipos, permanecendo em Filipos durante a segunda e terceira viagem de Paulo, retornando à companhia do apóstolo na terceira viagem rumo a Jerusalém (At 20,13). Isso nos leva a crer que Lucas pode provir da Antioquia da Ásia Menor ou então de uma cidade próxima.
Dois testemunhos do segundo século d.C. apresentam o médico e companheiro de Paulo como o escritor da obra em dois volumes Lc/At. O primeiro nos é dado pelo Canon de Muratori, de caráter mais genérico, afirmando:
O terceiro livro, do evangelho segundo Lucas, pertence ao médico que, depois da ascensão de Cristo, foi convidado por Paulo como companheiro de suas viagens... e que escreveu em seu nome o pensamento [de Paulo]; entretanto, ele não viu o Senhor em carne. Por isso, começa sua narrativa com o nascimento de João, como ele o pode compreender.
O segundo testemunho aparece na Patrística, notadamente em Irineu, Tertuliano e Orígens, padres do século II. O testemunho está no chamado prólogo antimarcionita (Marcion, por volta de 140 d.C., rejeitava a canonicidade dos evangelhos de Mateus, Marcos, João e muitos outros textos do AT). O documento é uma apologese contra essa heresia e, ao falar sobre o terceiro evangelho, afirma:
O autor desta obra é um certo Lucas, originário da Antioquia da Síria, médico, discípulo dos apóstolos, o qual mais tarde seguiu Paulo até o seu martírio. Serviu ao Senhor sem falhas, não tinha esposa, não teve filhos e morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo, com a idade de oitenta e quatro anos. Assim, pois, evangelhos já haviam sido escritos; Mateus na, Judéia; Marcos, na Itália; este, sob a inspiração do Espírito Santo, escreveu nas regiões da Acaia. Ele explica que, até o momento em que ele toma a iniciativa de escrever, outros textos já haviam sido escritos, mas que ele sentiu a necessidade de expor sua intenção aos fiéis de origem grega uma obra completa e cuidados com os acontecimentos...
Uma tradição popular justificou que Lucas seria um dos setenta e dois e o outro discípulo de Emaús, companheiro de Cléofas. Mas não passa de uma lenda. Lucas, que entra na história da evangelização da Ásia e da Macedônia, é um grego, provavelmente da Antioquia da Ásia Menor e acompanha Paulo na viagem para Roma (At 20-28).
Mapa da Terra Santa. Fonte: Wikicommons
Para muitos autores, a busca de uma resposta material à geografia de Lucas tornou-se um caminho espinhoso e sem grandes resultados. Podemos localizar, geograficamente, quatro pontos da obra de Lucas e da missão de Jesus:
1) Nazaré/Belém como parte do evangelho da Infância e retomada do AT, vinculando Isabel a Maria; Maria a Ana, mãe de Samuel (1Sm 1-2), e João Batista a Jesus (Lc 1-2);
2) A Galileia/Cafarnaum e arredores como uma região periférica ao centro do poder que era Séforis/Tiberíades (3,1-9,50);
3) A Samaria, pois Jesus gasta nessa região um tempo maior evangelizando esse povo e, apesar de ter sido mal recebido (9,51-56), faz nela a grande missão a caminho. A Samaria é a segunda fase da missão, na qual o número de discípulos aumenta e ele acrescenta outros Setenta e Dois (72), superando o significado judaico do número Doze. Agora Jesus tem 12+72 = 84, um número novo, com sentido da missão. A Samaria, como missão entre os excluídos e pagãos, assume um caráter mais profético do que a primeira etapa na Galileia e na terceira etapa na Judeia (9,51-19,27);
4) Jerusalém, ápice do itinerário e da obra (19,28-24,53). Como parte da geografia, mesmo não constituindo uma secção especial, é a passagem de Jesus por Jericó (18,35-19,10), como referência teológica ao Êxodo. Jesus faz o verdadeiro êxodo; por isso, ao deixar a Samaria, onde faz a grande missão aos “israelitas”, muitos deles banidos de Jerusalém na época de Esdras (cf. Esd 4. 9-10), faz uma volta por Jericó, para assemelhar-se ao ponto de partida do judaísmo do AT (Cf. Jos 6,1ss) e de lá estabelecer seu novo e definitivo momento pastoral, antes da entrada e tomada de posse de sua cidade.
A geografia de Lucas está ligada à sua concepção de História. Para o evangelista, a História tem três grandes etapas:
1. Da Criação até Jesus;
2. O tempo de Jesus;
3. O tempo depois de Jesus, ou seja, da Igreja (cf. 16,16).
Dentro dessas três etapas de tempo, a geografia de Lucas tem um sentido teológico mais que geográfico, e o retardamento da parusia fez com que ele elaborasse uma teologia da história.
Lucas usa muito os monólogos (espécie de discursos) dentro da sua forma narrativa, como um recurso linguístico presente na literatura clássica greco-romana. O evangelista faz o recurso do chamado narrador, que introduz, desenvolve e ao mesmo tempo apresenta algumas conclusões. Os monólogos são as conclusões que Jesus faz depois de encontros, diálogos, sinais ou controvérsias. Essa forma literária faz parte da chamada “última palavra”, que cabe ao Mestre dizer aos seus ouvintes e discípulos. Lucas trabalha esse estilo literário dentro de uma visão global de sua obra, aproveitando alguns personagens importantes, como acontece no início do Evangelho.
O recurso lucano dos monólogos permite ao leitor acompanhar aquilo que se passa no interior dos personagens e perceber a decisão ou a solução do problema. As questões de fundo são um reconhecimento da atual situação diante dos outros escritos e contextos.
O terceiro evangelista segue a tradição bíblica do AT (Dt 30,11-20) quando elabora uma história da Salvação (Lc 16,13//Mt 6,24). O caminho para Deus se faz por opções conscientes, livres e responsáveis. A liberdade, um grande valor na ética helenística, passa a ser para o evangelista um fator decisivo na caminhada cristã. Cada um tem diante de si sempre duas possibilidades e precisa decidir o que vai e o que pode fazer. Muitas vezes um caminho é possível, mas não convém ser tomado (cf. 1Cor 6,12).
Diferentemente de muitos textos bíblicos e da própria tradição judaica que, nessa proposta das duas opções, se revestem de caráter moralizador, em Lucas pode-se notar que as tendências são missionárias, catequéticas e voltadas para a formação da liberdade responsável dentro da própria comunidade e da vivência do Evangelho.
Lucas escreve com um estilo próprio, fluente, demonstrando estar escrevendo em sua língua materna. Tudo indica que ele tem recebido uma educação helenística, manifestada na própria retórica. No entanto, a forma como ele trabalha e arquiteta os conteúdos faz emergir uma pergunta: Responderia Lucas a um momento de crise da história? É provável, mas não necessariamente obrigatório. Se o helenismo, gnosticismo, cínicos e outras correntes colocavam riscos à persistência da doutrina, o evangelista constrói um edifício para os cristãos no paganismo, na segurança e na fidelidade.
O ponto de partida da cristologia lucana é que Jesus é o Cristo-Senhor. Pode-se ver uma possível influência paulina nessa tese, mas é, sem dúvida, uma arquitetura bem ao jeito de Lucas que mostra um Cristo próximo da História, fazendo a vontade do Pai e ajudando os excluídos a recuperar seu lugar no Reino dos homens, através da cura, e no Reino de Deus, através da misericórdia (cf. gráfico abaixo).
Gráfico: Isidoro Mazzarolo
O eixo central da cristologia lucana passa por três afirmações fundamentais:
a) Jesus é o Cristo;
b) Jesus é o Filho de Deus;
c) Jesus é Senhor.
Acompanhando essas afirmações, Lucas apresenta Jesus como Profeta, Salvador, Rei e Servo.
a. Jesus é o Cristo:
Já em tempos muito antigos, usando a terminologia grega de filiação do Alto, dos céus. O anjo afirma a Maria que o seu filho será o filho do Altíssimo. Com essa afirmação, o evangelista se dispensa de apresentar Jesus de outro jeito, deixando clara a sua origem. Ele pode ser conhecido na família do carpinteiro José e entre os parentes de Maria, mas será o Ungido desde sempre.
b. Jesus é o filho de Deus:
Nos tempos do evangelista, já surgiam as discussões sobre a procedência divina dos reis, dos faraós e dos imperadores. A dificuldade de Jesus ser visto como filho de Deus era por ter nascido na periferia, à margem, e não ter ancestrais na nobreza judaica. Os deuses sempre atuavam dentro das grandes camadas da nobreza. O nascimento no meio dos pastores, sua familiaridade com os pequenos e desprezados não dava crédito à sua figura. Lucas vai afirmar categoricamente que ele é o Filho de Deus, independentemente de sua missão à margem dos padrões convencionais.
c. Jesus é Senhor:
A cultura helenística usava o termo kyrios para dizer senhor (homem, marido) e na expressão religiosa para dizer “o Senhor” (os cristãos aplicaram esse título muito cedo à profissão de fé do Cristo ressuscitado). Esse título, comum nas cartas de Paulo, é pouco usado nos evangelhos. Na entrada em Jerusalém, quando envia os discípulos para buscarem a mula, lhes diz que, em caso de alguma pergunta, respondam: o Senhor precisa dela (Mc 11,3; Mt 21,3; Lc 19,31).
Dentro da cristologia lucana, Jesus ainda aparece fortemente como profeta. Na proposta geral da obra, como história da salvação, Jesus é o Profeta-Servo da Palavra (5,1; 8,11.21; 11,28). Nesse evangelho, Jesus recebe diversas vezes o título de profeta (7,16.39; 24,19). Inicialmente, dois eventos de Jesus haviam sido interpretados como proféticos (o batismo e a transfiguração), ambos voltados para a paixão. Mas depois esses eventos assumem o contexto da realeza da Salvação, e o sentido do profetismo diminui um pouco. O discurso inaugural de Jesus em Nazaré, apenas presente na obra de Lucas (4,24-27), evoca dois episódios da vida dos profetas do AT (1Rs 17,8ss: 2Rs 5,14), e o milagre de Naim (Lc 7,11-17) tem alguma ligação com os relatos que se referem a Elias (1Rs 17,23) e com Eliseu (2Rs 4,35).
Conforme Lucas 9,51, aproximava-se o tempo em que Jesus seria tomado deste mundo, e a sua ascensão parece assemelhar-se (Cf. At 1,2.11.22) à ascensão de Elias descrita em 2Rs 2,11. Essa tipologia antiga, retomada por Lucas, pode ser vista também no relato da anunciação à Maria (Lc 1,26-38), que faz pensar na vinculação com personagens do AT, como Abraão (Gn 18,14.19), Gedeão (Jz 6,23) e outros. Da mesma forma, essa prospectiva tipológica conduz o evangelista a ver no julgamento de Jerusalém uma antecipação e uma prefiguração do juízo final (Lc 1,12-15; 17,26-30). A morte de Jesus é tratada por Lucas como o martírio de um profeta, em virtude de ser o Cristo o modelo de todo o ser cristão, e as ações dos seus discípulos deveriam ser as mesmas do mestre e presentes na História. E à luz de Is 53, o evangelista faz uso de outros títulos cristológicos, especialmente em Atos 3,13.26; 4,27.30.
Pode-se dizer que a cristologia em Lucas é otimista, corajosa, cheia de Espírito Santo, porque é uma cristologia redentora e não passivista ou pessimista (cf. Lc 9,51-56). A missão é uma missão confiante, fortalecida na unidade que se impõe às forças adversárias (Lc 4,5-7; 8,31; 10,18-21; At 19,15-16). Essa cristologia reflete uma consciência clara da presença de Deus na missão, num programa da história da salvação, que se distingue entre “uma presença espiritual’” e uma “história do futuro”.
É nesse horizonte que o terceiro evangelista constrói um discurso sócio-econômico no sermão da planície (6,20-26); um programa sociológico no envio dos Setenta e Dois (10,1-12) e um balanço da economia da missão (22,35-38). Especialmente no sermão da planície (6,20-26), ele faz uma leitura social de textos importantes do AT, como Levítico 25 e Deuteronômio 15. Da mesma forma, na oração de Jesus (Lc – o Pai Nosso, 11,2b-4), Lucas mantém-se na fidelidade radical de sua apresentação de Jesus como aquele que leva o perdão e a reconciliação. Economicamente, Jesus insiste no perdão (Dt 15,2). A petição, o pão nosso, o necessário, cada dia, consiste na fundamentação do princípio jubilar da distribuição (At 2,42-47; 4,31-5,11; Lc 11,3). O evangelista sublinha constantemente a comunidade como dom de Deus, e na comunidade, a segurança da distribuição do pão, o necessário, o suficiente. É nessa suficiência como direito e como justiça que o evangelista apresenta sua antropologia da Salvação, uma Boa Nova aos homens e mulheres de boa vontade, corajosos, dispostos a trabalhar pelo Reinado de Deus neste cosmos do Pai (Lc 2,14).
Lucas calca fortemente os aspectos socioeconômicos da comunidade redimida, pois ela precisa ser misericordiosa como Deus é (Lc 6,35-36). É nesse caminho que a comunidade nasce, experiencia e testemunha o poder e graça do Reinado de Deus. Ser misericordioso para com o outro pode significar a necessidade de vir a ser com o pobre ou o necessitado (Lc 6,20-22; cf. Mt 5,2-11) e, por outro lado, é ter a coragem de estar com o outro todo o tempo necessário até que ele se liberte de suas prisões, pobrezas ou carências. O mandamento de estar em torno das necessidades sociais é a nota distintiva, que acentua o maior preceito da missão da Igreja: a reconciliação no campo sociopolítico.
A ética define o que é bom para uma comunidade como resultado de um consenso. Ético é um comportamento positivo, construtivo, transformador para uma pessoa ou para um grupo de pessoas. A “arêtê” grega (virtude) estabelecia alguns princípios fundamentais para todos os cidadãos: a inteligência, a fortaleza, a circunspecção e a justiça. A ética exige um comportamento individual e coletivo voltado para o bem social. Na perspectiva da vida socializada, há um imperativo cristão para distinguir aquilo que a lei indica como um aspecto jurídico a ser cumprido e aquilo que a sua consciência moral lhe indica como um valor antropológico e transcendente; uma tensão entre o legal e o moral (ético). Nem tudo o que a lei indica pode ser um bem a ser cumprido, visto que muitas leis são imorais, construídas com a perfídia dos legisladores (cf. Is 10,1-2), e por isso, na ética cristã, se faz mister um discernimento entre o bom e o mau a partir do Evangelho.
Desde o começo dos estudos introdutórios ao Novo Testamento até o século 19, encontram-se expressões clássicas como Ebionismo, Pauperismo e o Socialismo para estigmatizar uma peculiaridade da obra dupla de Lucas, que porta talvez um real valor histórico, mas que, exatamente por causa desses termos técnicos, deixou um significado obscuro.
A posição do evangelista para com a Pobreza/Reino pode, então, embora objetivamente estando na origem, ser vista numa concepção global, não apenas como algo parcial ou marginal. A ética cristã faz uma opção pelos pobres porque eles são destinatários do Reino de Deus e a miséria os exclui da convivência social e religiosa. A opção pelos pobres é prioridade na pedagogia da inclusão. Por outro lado, atendendo a relação do evangelista Lucas para com sua comunidade, é pré-requisito e responsabilidade do teólogo, nos tempos atuais, diante da própria comunidade Cristã, seja ela de concepção ebionita ou socialista na dupla obra de Lucas, saber caracterizá-la como tal. Na verdade, quer a comunidade de Lucas ontem, quer atualmente, as compreensões de comunidade como missão voltada para o social, para o antropológico e o ético são de capital importância para entender o perfil da obra do evangelista.
Faz-se mister, em função da linguagem e da teologia de Lucas, um esforço especial para ler de modo correto as curas e as possessões. Elas apresentam um caráter um pouco difícil, pois sua função é simbólica. Os grandes arquétipos do movimento popular, como Moisés, Jesus e os Apóstolos, desempenham uma função e encontram sentido com o povo. Assim, as possessões assumem um caráter de aceitação/rejeição da liderança. Da mesma forma, os conceitos de pobreza/riqueza podem desempenhar um papel metafórico enquanto apego ou desprendimento em relação aos líderes e suas propostas.
A obra lucana aborda outros temas de máxima relevância e se desenvolve dentro de um quadro particular e diante de uma situação problemática que envolve a expectativa da parusia, o relacionamento com os judeus e o paradoxo da cruz de Cristo. Diante desse ambiente, percebe-se a concepção ético-pastoral do evangelista. Toda a função do texto está voltada para a manifestação do Reinado de Deus e o seu sentido para os pobres. Uma opção pelos pobres é igualmente uma rejeição à miséria, à indigência e à submissão da parte da comunidade às condições desumanas. Dessa forma, o olhar pastoral da Igreja e sua interpretação da escatologia deverão ser buscados, em última análise, na opção radical pelos pobres.
Seguir Jesus no caminho é dispor-se a criar e viver numa comunidade solidária. A ética expressa por Lucas, concernente à postura de Jesus diante de seu tempo, pode ser vista, ingenuamente, como algo pertencente ao passado. No entanto, nenhum tema tem tanta atualidade e pertença ao presente quanto os aspectos éticos trabalhados pelo evangelista nessa obra. Com tanta singularidade e com tanto compromisso social-crítico, Lucas apresenta a proposta do Reinado de Deus para nosso tempo. Diante do quadro da pobreza e dos necessitados, Jesus apresenta a seus seguidores um quadro ideal de missão, um modus vivendi (forma de vida) parecido com o dos cínicos e estoicos, com um olhar muito crítico e desconfiado para a ambição de ser rico.
O éschaton é o fim último, é o “já” acontecido e o “ainda não”, é o final e o não-acabado da história pessoal ou da história coletiva. A escatologia trabalha a realidade futura integrada com a história de cada momento. O final da vida, a expectativa da vida eterna, do além-túmulo, do depois da morte tem uma relação direta com a história atual. Tudo o que alguém espera depois da morte implica nas suas decisões e posições no seu tempo presente. A escatologia é o já e o ainda não.
Lucas é aprisionado por uma realidade e por uma ideia fixa do acontecer inevitável do Reino; dessa forma, ele faz um apelo à distinção entre o já, o reino que está presente, e o ainda não do Reino. É diante dessa necessidade de distinção que ele apresenta uma avaliação das possessões à luz do Reinado de Deus.
Na compreensão da comunidade, Lucas sublinha a função do resgate, da procura, da pedagogia da “inclusão” do que se perdeu, do que ainda não pertence, mas deve fazer parte. É óbvia a visão de Lucas em torno de uma ética eclesiológica na qual a pedagogia da inclusão seja a perspectiva da ação. Pode-se afirmar que esse é um tópico crítico e radical na soteriologia do evangelista. A salvação vincula a pobreza à necessidade, pois esta é a revelação da Justiça e da Misericórdia de Deus. O evangelista sofre, na sua concepção prática de ética eclesiológica, uma influência do pensamento de Paulo e, no Sermão da Planície, os bem-aventurados são os que passam fome, sede e injustiças agora, não no futuro. É mister ver na obra de Lucas traços indeléveis de concretude e prática individual e comunitária. Além da temática do capítulo 15, que coloca a graça, a gratuidade como referências ao constitutivo de uma comunidade cristã, podemos tomar outros dois traços nítidos da catequese de Lucas, na sua concepção eclesiológica: a aceitação do convite de ir à casa de Simão, o fariseu (7,36-50); o discipulado das mulheres (8,1-3); a anexação de outros 72 (10,1-16); a parábola do bom samaritano (10,25-37); o encontro com Marta e Maria (10,38-42); a oração do publicano e do fariseu no templo (18,9-14). Na teologia eclesiológica, sublinha o elemento do perdão como integrador da vida da comunidade e a festa como celebração da vitória da justiça, da verdade e da graça.
A psicologia transparece no contexto de como o evangelista personaliza o evangelho. O contraste da pobreza e da riqueza como algo individualizado, que atinge a pessoa, com nome e endereço na anteposição de quem não tem nome nem endereço é traço magistral da psicologia do evangelista, a fim de realçar o socialmente desprezado e pré-julgado (cf. Lc 7,36-50). Isso pode ser observado também na dedicatória da obra a Teófilo, o amigo de Deus, e abrange todos os “amigos de Deus”.
No Sermão da Planície, Lucas nos mostra, diferentemente de Mateus, que os coxos, os estropiados e outros com deficiências de movimentos não subiriam à montanha, então Jesus fez o “sermão” onde todos podiam ter acesso. A pedagogia do médico apresenta Jesus em busca de todos os tipos de enfermos, quer físicos, quer morais, quer espirituais (Mc 2,17; Lc 4,23; 5,31). O agir de Jesus é tipificado nas três parábolas do c. 15.