23 Novembro 2014
“Cada uma das imagens cósmicas usada na Bíblia para indicar a presença de Deus pode ser desenvolvida de maneira similar. Elas expressam a imanência, ou a íntima presença e atividade do Espírito Criador que não está distante de nenhum de nós”, diz a teóloga.
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“Os bispos precisam estudar a história da teologia mais de perto.” É assim que a teóloga Elizabeth Johnson dá início à resposta sobre a crítica dos bispos norte-americanos ao seu livro, Quest for the Living God: Mapping Frontiers in the Theology of God (New York: Continuum Publishers International, 2007).
Segundo os bispos norte-americanos, a obra, ao criticar o teísmo moderno, critica pontos fundamentais da teologia católica, questionando, por exemplo, a tese tradicional de que Deus está no topo da pirâmide do Ser. O livro também recebe críticas por ser apresentado ao grande público como “um instrumento didático para estudantes universitários” que têm interesse pela teologia católica; os bispos justificam que alguns dos argumentos apresentados pela teóloga não representam o pensamento da Igreja.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Elizabeth Johnson argumenta que seu livro está fundamentado no “insight” de que a “teologia deu passo em falso no século XVII (...) ao tentar responder aos ataques do Iluminismo europeu contra a existência de Deus”, conforme demonstra o livro At the Origins of Modern Atheism (Nas origens do ateísmo moderno), do jesuíta Michael Buckley.
A teóloga esclarece que “ao invés de apelar aos seus próprios materiais primários, a saber, a cristologia com seu centro na pessoa e no ensinamento de Jesus Cristo, assim como na experiência religiosa com seu foco no testemunho pessoal motivado pelo Espírito Santo, a teologia abandonou seu campo distintivo” ao responder aos iluministas. Em seu lugar, acrescenta, “os teólogos começaram a convocar a filosofia, com seu método de raciocínio inferencial, assim como a ciência com seus testes de teses objetivas. Eles utilizaram esses métodos a fim de defender a existência de Deus. Nesse sentido, a teologia de fato encontrou um solo em comum sobre o qual podia dialogar com o ateísmo nascente, mas ao preço de sua característica única. O que desapareceu foi o entendimento de Deus revelado na Bíblia, através da história de Israel e a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo”.
Segundo ela, a visão católica tradicional acerca de Deus enfraqueceu ainda mais com a “descoberta” contemporânea de uma nova cosmologia, explicada, a partir de então, pela teoria do Big Bang. A teóloga explica que a nova tese sobre a origem do universo se contrapõe à visão de que o “universo era estático” e às teses de que “tudo era feito diretamente por Deus, como narra o livro do Gênesis, e mantinha-se em um mesmo estado permanente por toda a sua existência”. Elizabeth pontua ainda que a filosofia antiga e a medieval foram as responsáveis por organizar “todas essas criaturas estáticas em uma grande hierarquia de seres” do seguinte modo: “Na base estava a matéria não viva (rochas, água, estrelas). Acima daquela base vinham os vegetais e então os animais, depois os humanos, depois os anjos e cada nível superior era abençoado com mais espírito do que aqueles que estavam abaixo. No topo da pirâmide do ser estava Deus, criador de tudo”.
Para a teóloga, as novas teorias da ciência levantaram outras questões para a teologia, e “a cosmologia do Big Bang e a evolução na Terra mostram que as coisas estão sempre em mudança, novas criaturas estão sempre surgindo e a criação está em devir”. Nesse sentido, ela enfatiza, segundo seu ponto de vista, que as novas “descobertas científicas” permitiram a possibilidade de “nos referir a Deus não apenas no topo de uma pirâmide do ser, mas no interior e em toda parte do círculo da vida que surge, luta, desenvolve-se e morre, criando ainda mais vida nova. Para a teologia cristã, trazer o Espírito Santo, que é o Espírito Criador, para o palco, significa obviamente trazer todo o Deus trinitário à cena, não apenas uma única figura masculina que cria”.
Ela lembra também que a teologia cristã interpreta Jesus “como a Palavra e a Sabedoria de Deus cuja vida, morte e ressurreição revelam o caráter do Deus vivo. O que nós vislumbramos através dessa lente? Um amor misericordioso que não conhece limites, uma compaixão que penetra fundo no pecado, no sofrimento e na morte terrível das pessoas a fim de trazer nova vida”. Entretanto, defende, a visão “ecológica” acerca de Deus “assegura à teologia a possibilidade de cruzar a linha da espécie e estender essa solidariedade divina a todas as criaturas”.
Diante das perguntas colocadas pelos iluministas europeus e pela recente teoria do Big Bang, a teóloga enfatiza que o “desafio para a teologia contemporânea, sendo feito em um contexto cultural no qual o ateísmo é agora um dado, é claro: não repetir esse grande erro. Nós precisamos nos voltar à Bíblia e às riquezas da tradição cristã para um entendimento mais pleno do Deus vivo”.
Elizabeth Johnson é professora de Teologia nos programas de graduação e pós-graduação da Fordham University, uma universidade jesuíta de Nova York, onde leciona Teologia sistemática e Teologia feminista. É ex-presidente da American Theological Society e da Catholic Theological Society. Faz parte do Conselho Editorial dos periódicos Theological Studies, Horizons: Journal of the College Theology Society e Theoforum. Elizabeth também é autora de Ask the Beasts: Darwin and the God of Love (Bloomsbury, 2014).
Por sua vez, Cadernos Teologia Pública, uma das publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, publicou os seguintes artigos de Elizabeth Johnson:
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como a cosmologia atual entende a história da criação? Em que consiste contar a história da criação à luz da cosmologia contemporânea?
Elizabeth Johnson - O consenso científico atual sustenta que o universo originou-se há cerca de 13,8 bilhões de anos em uma explosão primordial chamada “Big Bang”, uma efusão de matéria e energia que ainda continua em andamento.
Esse material expandiu-se de acordo com uma taxa precisamente calibrada, desdobrando-se de um modo nem tão rápido, nem tão devagar. Seus desníveis irregulares possibilitaram que a gravidade reunisse os átomos de hidrogênio; sua densa fricção deu o começo às estrelas, que se juntaram em turbilhões de galáxias.
Por volta de cinco bilhões de anos atrás, em um canto de uma galáxia, o nosso sistema solar formou-se do seguinte modo: algumas velhas estrelas gigantes morreram em meio a grandes explosões que “cozinharam” seus átomos mais simples transformando-os em materiais mais pesados, tais como carbono e ferro, expelindo seus detritos no cosmo. A gravidade ajuntou parte dessa nuvem de poeira e gás e isso deu início a uma nova estrela, o nosso sol. Parte dessa nuvem fundiu-se em pedaços muito pequenos para pegarem fogo, formando os planetas do nosso sistema solar, incluindo a Terra.
Finalmente, há 3,5 bilhões de anos, outra mudança importante teve lugar. Certos materiais nos antigos mares do nosso planeta adquiriram o poder de se reproduzir, e a vida começou. A vida evoluiu então de criaturas unicelulares para as pluricelulares, do mar para a terra e o ar, da vida vegetal para a animal, e, muito recentemente, dos primatas para os seres humanos, nós, os mamíferos, cujos cérebros são tão ricamente texturizados que experienciamos consciência autorreflexiva e liberdade ou, em termos de filosofia clássica, mente e vontade.
Essa história contemporânea do universo nos ensina coisas incríveis.
“Para os seres humanos, a aproximação do fogo do Espírito sempre assinala a vinda da graça, do repouso, da libertação, do amor, do conforto, da cura e da confiança”
- O universo é insondavelmente antigo. Um único ano terrestre pode dramatizar essa história cósmica. Se o Big Bang ocorresse em 1º de janeiro, nosso sol e os planetas viriam à existência em 9 de setembro; a vida na Terra originar-se-ia em 25 de setembro e a nossa espécie humana entraria em cena em 31 de dezembro, faltando cinco minutos para a meia-noite. Nós, humanos, teríamos chegado apenas recentemente.
- O universo observável é incompreensivelmente grande. Há mais de 100 bilhões de galáxias, cada uma contendo bilhões de estrelas, e ninguém sabe quantas luas e planetas, todas elas sendo matéria visível e audível, apenas uma fração de toda a matéria e energia do universo. A Terra é um pequeno planeta orbitando uma estrela de médio porte na borda de uma galáxia espiral.
- O universo é profundamente dinâmico. Do Big Bang, as galáxias e estrelas; da poeira estelar, a Terra; das moléculas da Terra, criaturas unicelulares com vida; da vida e morte evolucionária dessas criaturas, uma progressiva maré de vida, frágil, mas irrefreável, até o turbilhão de milhões de espécies que existem hoje; e de um dos ramos desse arbusto da vida, homo sapiens, a espécie na qual a Terra torna-se consciente de si mesma.
- O universo é profundamente interconectado. Tudo se liga a tudo; nada que podemos conceber está isolado. O que faz com que nosso sangue seja vermelho? O teólogo e cientista Arthur Peacocke explica: “todo átomo de ferro em nosso sangue não estaria lá se não tivesse sido produzido em alguma explosão galáctica há bilhões de anos e se finalmente não tivesse se condensado para formar o ferro na crosta da terra, da qual nós surgimos”. Nós somos feitos de poeira das estrelas. A subsequente história da evolução deixa claro que os humanos compartilham com todas as outras criaturas vivas do nosso planeta um ancestral genético comum. Bactérias, pinheiros, mirtilos, cavalos, as grandes baleias cinzentas: somos todos parentes genéticos na grande comunidade da vida.
IHU On-Line - Do ponto de vista dessa cosmologia do Big Bang, como nós devemos entender e nos referir a Deus?
Elizabeth Johnson - Antes de essa cosmologia ser descoberta, as pessoas pensavam que o universo era estático. Tudo era feito diretamente por Deus, como narra o livro do Gênesis, e mantinha-se em um mesmo estado permanente por toda a sua existência. A filosofia antiga e a medieval organizaram todas essas criaturas estáticas em uma grande hierarquia de seres. Na base estava a matéria não viva (rochas, água, estrelas). Acima daquela base vinham os vegetais e então os animais, depois os humanos, depois os anjos e cada nível superior era abençoado com mais espírito do que aqueles que estavam abaixo. No topo da pirâmide do ser estava Deus, criador de tudo.
Dada a ciência de então, esse era um arranjo inteligente. Utilizando-a, a teologia focou naquilo que ela chamou de “transcendência de Deus”, ou seja, o fato de que Deus é absolutamente diferente e está além de toda a criação.
A ciência contemporânea, entretanto, levanta novas questões para a teologia. A cosmologia do Big Bang e a evolução na Terra mostram que as coisas estão sempre em mudança, novas criaturas estão sempre surgindo e a criação está em devir. Embora continue a afirmar a transcendência, a resposta da teologia agora recupera a doutrina da criação contínua, que vê a presença do Espírito Criador habitando no interior do universo em evolução, sustentando a sua existência, capacitando a sua vida e suscitando a sua evolução.
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“Assim como no mundo humano, o mesmo ocorre na natureza: toda a criação é permeada, iluminada, energizada e encorajada pelo fogo do Espírito” |
IHU On-Line - O que entende por “Deus está no topo da pirâmide do Ser”? Deus está ou não está no “topo da pirâmide do Ser?” Se Deus não está no topo, o que isso significa?
Elizabeth Johnson - Uma belíssima metáfora do filósofo britânico Herbert McCabe recupera esse insight: “o Criador faz todas as coisas e as mantém na existência a cada momento — não como um escultor, que faz uma estátua e a abandona, mas como um cantor que continua cantando sua música na existência por todos os tempos”.
Assim, agora nós podemos nos referir a Deus não apenas no topo de uma pirâmide do ser, mas no interior e em toda parte do círculo da vida que surge, luta, desenvolve-se e morre, criando ainda mais vida nova. Para a teologia cristã, trazer o Espírito Santo, que é o Espírito Criador, para o palco, significa obviamente trazer todo o Deus trinitário à cena, não apenas uma única figura masculina que cria.
IHU On-Line - Quais são algumas das imagens usadas na Bíblia para referir-se a Deus e o que elas nos dizem sobre Ele? O fato de Deus ser apresentado em imagens, é suficiente para entendê-Lo como não estando no topo da pirâmide?
Elizabeth Johnson - Para dar conta da contínua presença dinâmica de Deus no mundo, a Bíblia frequentemente usa imagens naturais, tais como o ruah, que significa respiração, hálito ou vento que sopra; também a água corrente, nuvens que se movem, pássaros voando e fogo ardente. Não que o Espírito seja impessoal. Mas esses elementos transmitem algo da energia movente do Espírito Criador operando no mundo, de maneira mais clara do que a imagem limitada de uma pessoa humana.
Considere o fogo. Valorizado por seu calor e sua luz, mas sendo por vezes também incontrolavelmente perigoso, o fogo simboliza a presença do divino na maioria das religiões do mundo. Acender lamparinas ou velas, assim como o incenso ardente, são típicos atos rituais. De maneira semelhante na Bíblia, o fogo frequentemente significa a presença do divino. Você pode se lembrar da sarça ardente na qual Moisés encontrou o Deus de Abraão que o enviou para liderar os israelitas na fuga da escravidão no Egito. Lembre-se também de Pentecostes, quando línguas de fogo desceram sobre os discípulos de Jesus e eles foram inspirados a sair e pregar.
Para os seres humanos, a aproximação do fogo do Espírito sempre assinala a vinda da graça, do repouso, da libertação, do amor, do conforto, da cura e da confiança. Assim como no mundo humano, o mesmo ocorre na natureza: toda a criação é permeada, iluminada, energizada e encorajada pelo fogo do Espírito.
Em um poético oráculo, a teóloga do século XII, Hildegard von Bingen, manifestou assim o Espírito: “Eu, o maior e mais ígneo poder, gerei toda centelha vivente… Eu ardo por sobre a beleza dos campos; eu brilho nas águas; no sol, na lua e nas estrelas eu queimo. E por meio do vento etéreo, atiço tudo ao fulgor com uma certa vida invisível que a tudo sustenta. Eu, o ígneo poder, permaneço escondido nessas coisas e elas resplandecem a partir de mim”.
Cada uma das imagens cósmicas usada na Bíblia para indicar a presença de Deus pode ser desenvolvida de maneira similar. Elas expressam a imanência, ou a íntima presença e atividade do Espírito Criador que não está distante de nenhum de nós. Como o apóstolo Paulo escreveu, é em Deus que nós vivemos, nos movemos e existimos (cf. At. 17,28).
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“A história da vida é uma história de sofrimento e morte para milhões de criaturas em milhões de milênios. A tentação é negar a violência e escapar para uma visão romântica do mundo natural. Mas há outra opção, a saber, ler o Evangelho com olhos atentos” |
IHU On-Line - Os princípios da teologia narrativa aparecem como alternativa à filosofia dogmática numa perspectiva de compreensão do caráter dinâmico da relação da criação com Deus. Nesse sentido, como a teologia narrativa dá conta do oposto, ou seja, das verdades de fé que ultrapassam a história, como o caráter salvífico de Jesus? Como uma teologia que leva em conta a narrativa da cosmologia atual e a história da evolução expressa a verdade da fé acerca do valor salvífico de Jesus?
Elizabeth Johnson - A história da vida é uma história de sofrimento e morte para milhões de criaturas em milhões de milênios. A tentação é negar a violência e escapar para uma visão romântica do mundo natural. Mas há outra opção, a saber, ler o Evangelho com olhos atentos.
A teologia cristã interpreta Jesus como a Palavra e a Sabedoria de Deus cuja vida, morte e ressurreição revelam o caráter do Deus vivo. O que nós vislumbramos através dessa lente? Um amor misericordioso que não conhece limites, uma compaixão que penetra fundo no pecado, no sofrimento e na morte terrível das pessoas a fim de trazer nova vida. Uma visão ecológica assegura à teologia a possibilidade de cruzar a linha da espécie e estender essa solidariedade divina a todas as criaturas.
Na encarnação, a Palavra de Deus fez-se carne, parte da matéria da Terra, em solidariedade com a carne de todas as criaturas. Como o papa João Paulo II escreveu, “Encarnação significa trazer à unidade com Deus não apenas a natureza humana, mas nessa natureza humana tudo o que é carne: o todo da humanidade, o mundo visível e material todo inteiro. A encarnação tem, então, um significado cósmico”.
Jesus pregava que nem um pardal cai ao chão sem que o coração de Deus o saiba e se importe. A cruz trouxe Jesus à união com todos que morrem. Na ressurreição, o poder do Deus da vida abre um futuro para essa vítima da violência do Estado e, por meio dele, para todos os que morrem. Essa é a razão pela qual a igreja canta “Aleluia” na Páscoa.
Através de Jesus, nós aprendemos que a salvação tem um alcance cósmico. O Espírito Criador habita em uma solidariedade compassiva para com todo ser vivente que sofre, dos dinossauros destruídos por um asteroide ao filhote de impala devorado por uma leoa. O Espírito trabalha constantemente durante todo o tempo para renovar a face da Terra. Tal ideia não significa que devemos glorificar o sofrimento, uma armadilha que deve ser cuidadosamente evitada. Mas isso resulta na implicação da relação do Espírito vivificante com um mundo sofredor, evolucionário, com um olho na compaixão divina. O choro da natureza é encontrado pelo Espírito que geme em dores de parto de toda a criação para trazer o novo à luz (Rm, 8,22-23). Esse é o modelo de cruz e ressurreição que se encontra operando em uma escala cósmica.
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“Através de Jesus, nós aprendemos que a salvação tem um alcance cósmico. O Espírito Criador habita em uma solidariedade compassiva para com todo ser vivente que sofre” |
IHU On-Line - Como responde às críticas feitas pelos bispos norte-americanos, de que quando seu livro Quest for the Living God: Mapping Frontiers in the Theology of God critica o teísmo moderno, ele acaba por criticar pontos fundamentais da teologia católica?
Elizabeth Johnson – Minha resposta básica é que os bispos precisam estudar a história da teologia mais de perto. Um dos grandes insights que aparece ao final do massivo estudo At the Origins of Modern Atheism (Nas origens do ateísmo moderno), de Michael Buckley, SJ, é que a teologia deu passo em falso no século XVII. Ela estava tentando responder aos ataques do Iluminismo europeu contra a existência de Deus. Mas ao invés de apelar aos seus próprios materiais primários, a saber, a cristologia com seu centro na pessoa e no ensinamento de Jesus Cristo, assim como na experiência religiosa com seu foco no testemunho pessoal motivado pelo Espírito Santo, a teologia abandonou seu campo distintivo.
Em seu lugar, os teólogos começaram a convocar a filosofia, com seu método de raciocínio inferencial, assim como a ciência com seus testes de teses objetivas. Eles utilizaram esses métodos a fim de defender a existência de Deus. Nesse sentido, a teologia de fato encontrou um solo em comum sobre o qual podia dialogar com o ateísmo nascente, mas ao preço de sua característica única. O que desapareceu foi o entendimento de Deus revelado na Bíblia, através da história de Israel e a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
“Não é sem certa sensação de espanto que se recorda que os teólogos colocaram a religião entre parênteses para defender a religião” (Buckley). Se isso foi feito apenas como um primeiro passo, os resultados poderiam não ter sido tão pobres. Mas essa permaneceu sendo a contínua e completa opção da maior parte dos grandes pensadores nos séculos seguintes. Consequentemente, a teologia natural nunca se encontrou com a teologia mística, o que significa dizer que o raciocínio filosófico que parte do mundo para Deus, feito a partir da posição privilegiada do espectador, nunca se conectou com a experiência religiosa de Deus em Cristo.
O resultado é uma visão simplista de Deus que opera na cultura popular e em muito da pregação da igreja. É uma visão monárquica que enxerga Deus como um indivíduo invisível de grande poder que habita para além do mundo, mas que pode intervir de vez em quando para trazer mudanças. Embora “ele” ame o mundo, ele é incontaminado por sua desordem. E esse distante e senhorial dador de leis fica sempre no ápice do poder hierárquico, reforçando as estruturas de autoridade na sociedade, na igreja e na família.
Essa visão simplista é conhecida hoje pela abreviada expressão “teísmo moderno”. Note-se como ela fornece uma arma para o a-teísmo moderno. Pois é esse o Deus que os ateus dizem não existir. Na verdade, sem nenhum traço da história bíblica da graciosa autodoação de Deus na aliança e na salvação, essa ideia é mais uma construção humana moderna do que uma expressão do Deus da revelação.
O desafio para a teologia contemporânea, sendo feito em um contexto cultural no qual o ateísmo é agora um dado, é claro: não repetir esse grande erro. Nós precisamos nos voltar à Bíblia e às riquezas da tradição cristã para um entendimento mais pleno do Deus vivo.
IHU On-Line - Quais são as implicações éticas do entendimento da presença do Espírito Criador em um mundo ecológico?
Elizabeth Johnson – Há duas consequências, uma positiva e uma negativa. Num sentido positivo, torna-se claro que o segredo íntimo das comunidades ecológicas das plantas e animais é a habitação do Espírito de Deus em seus interiores. Ao invés de ser distante do que é sagrado, o mundo evolutivo da vida traz a marca do sagrado, sendo ele mesmo imbuído do esplendor espiritual. Isso não equivale a dizer que tal mundo é divino. Mas sim que em sua própria vitalidade, seu sofrimento, morte e seus novos avanços, ele é permeado, vivificado e englobado pelo Espírito de Deus. Isso significa também que o mundo natural é revelador: ele desvela algo da sabedoria, da beleza, do poder e do amor divino para aqueles que têm olhos para ver. Que maravilha!
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“Essa visão simplista é conhecida hoje pela abreviada expressão “teísmo moderno”. Note-se como ela fornece uma arma para o a-teísmo moderno. Pois é esse o Deus que os ateus dizem não existir” |
Num sentido negativo, torna-se claro que visto tanto da perspectiva científica quanto da religiosa, a atual destruição da vida na Terra pela ação humana tem o caráter de um profundo fracasso. Para falar cientificamente, nós estamos destruindo o fruto de milhões de anos de evolução sobre a Terra e impedindo o seu futuro. Para falar filosoficamente, esse é um fracasso moral; especialistas em ética cunharam novas palavras para nomear essa violência: biocídio, ecocídio, geocídio. Falando teologicamente, essa destruição é profundamente pecaminosa, contradizendo a vontade do Criador cuja amada criação aí está. “Sacrilégio” e “profanação” não são designações suficientemente fortes. Os bispos das Filipinas chegam mesmo a dizer que tal espoliação é um insulto a Cristo: “a destruição de qualquer parte da criação, especialmente a extinção de espécies, desfigura a imagem de Cristo que está impressa na criação”. Qualquer que seja a linguagem, o julgamento permanece sendo que o dano ecológico que os humanos estão causando à Terra está profundamente errado.
Em termos cristãos, o movimento do pecado para uma nova vida marcada pela graça é conhecido como conversão. Conversão implica uma virada, uma mudança de direção, afastando-se de um caminho e virando-se para outro. Face à ruína ecológica, nós, a igreja inteira, precisamos de uma profunda conversão de mente e coração para a Terra que é a criação amada de Deus. Isso é mais do que simplesmente uma questão de prática moral ou ascética. É uma conversão espiritual em direção a uma relação mais profunda para com o Deus vivo que fez e ama o mundo natural do qual nós somos parte. Convertendo-nos para a Terra, nós nos tornamos parceiros com o doador da vida e responsavelmente cuidadosos para com o mundo natural que por ora tem sido arruinado.
(Por Patricia Fachin – Tradução de Gabriel Ferreira)
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“Precisamos nos voltar à Bíblia e às riquezas da tradição cristã para um entendimento mais pleno do Deus vivo”. Entrevista especial com Elizabeth Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU