22 Outubro 2021
“O lamento bom pode ser o que é necessário para nos lembrar que somos criaturas, não deuses. Ao sofrer com os outros, somos forçados a confrontar nossa atenção mal direcionada e nossa autossuficiência imaginária. Aprendemos o que é digno de nossa tristeza aos olhos de Deus. E ao redirecionarmos nossa atenção, aprenderemos como amar o mundo como se não pertencesse a nós o controle”, escreve Hannah Malcolm, teóloga, ambientalista, em formação para ser reverenda da Igreja Anglicana, em artigo publicado por The Tablet, 21-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há um rápido crescimento da dor, ansiedade e estresse traumático devido à ameaça existencial posta pela catástrofe climática e a devastação ambiental.
Podemos lamentar isso sem cair no desespero, e resolver viver humildemente e bem num mundo em colapso?
No ano em que eu nasci, Francis Fukuyama publicou um livro chamado “O Fim da História e o Último Homem”. Ele argumentou que a humanidade havia finalmente encontrado sua evolução ideológica – a democracia liberal ocidental seria a forma final de governo humano. Embora houvessem contratempos temporários, os mercados e a democracia parlamentes venceria ao final. Fukuyama não estava sozinho em achar isso: meus professores de história na escola também marchavam ao toque do progresso liberal, convencendo-nos que nós vivíamos num mundo que apenas melhoria, sempre mais que nós sabíamos, e melhor que nós conseguíamos. Mais que nós sabíamos, o melhor que nós conseguíamos. 1992 parece como muito tempo atrás...
O ano em que eu nasci, a temperatura da superfície da Terra estava acima da média de 11951-1980. Isso tem acontecido em todos os anos da minha vida. Com exceção de 2011, todos os anos desde o meu nascimento entraram no top 10 dos anos mais quentes já registrados. Nós oscilamos à beira do caos climático, nossas ideologias políticas e econômicas se recusando a alcançar os dados. Em menos de 30 anos, essa promessa de fim da história acabou sendo pouco mais do que uma fantasia. Muitos de nós estão com raiva. Muitos mais já estão morrendo.
Em minha experiência como ativista, escritora e pesquisadora do clima, há um ponto crítico para o conhecimento sobre um mundo agonizante, onde minha dor não pode ser desfeita. Cheguei a esse ponto de inflexão e não posso voltar atrás, não importa o quanto eu tente me proteger contra a exposição futura ao ciclo implacável de más notícias. Eu vivo ao lado da minha dor. E acontece que não estou sozinha: a última década viu relatórios crescentes de tristeza, ansiedade e estresse traumático por causa de eventos climáticos cada vez mais extremos, a perda de flora e fauna ou a consciência da ameaça existencial representada pela catástrofe climática. O que essas experiências nos dizem? E podemos falar sobre elas de uma forma que seja honesta e útil – que pode até ser transformadora para nossa fé, para nossas comunidades, para nossa política? Podemos ao menos identificar pelo que choramos? É um passado de esperança, vidas individuais perdidas, o colapso de ecossistemas anteriormente abundantes? Talvez nossa dor antecipe um futuro assustador ou seja desencadeada por culpa e uma sensação de impotência. Talvez seja uma resposta de estresse pós-traumático ou pré-traumático a um número crescente de eventos climáticos extremos. Um dos problemas com o gerenciamento da dor climática é que suas fontes são variadas e que o “fechamento” tradicional não é possível – não temos que aprender a aceitar uma morte específica e seguir em frente. O colapso do clima é um multiplicador de tristeza. Não é algo que possamos contar com o tempo para curar.
Isso significa que teremos que aprender a conviver com isso – alguns de nós muito mais do que outros. Mas o outro problema que enfrentamos em nossa versão da cultura ocidental é a tendência de tratar nossa gama estimulante de respostas ao mundo (o que costumamos chamar de nossas “emoções”) como essencialmente privada, espontânea e, portanto, moralmente neutra. Se eu for a um psicoterapeuta para lidar com a minha dor climática (e esses projetos existem agora), ele pode me dizer, por exemplo, que não existe uma maneira certa ou errada de sofrer.
Por mais compassivo que este conselho possa ser para um indivíduo que está de luto pela morte de um membro da família, aplicá-lo ao nosso colapso coletivo sobre a vida e a saúde da Terra é menos útil. Existem, na verdade, coisas ruins pelas quais lamentar e maneiras ruins de fazê-lo: se o clima de nossa cultura e a dor ecológica estão focados em lamentar nossas vidas anteriores de desperdício sem culpa, isso é mal direcionado. E se nossa dor ou ansiedade são resolvidas pressionando por mais controle de nossas fronteiras, ou acumulando riqueza para um futuro instável, ou mesmo em excesso niilista, então acho que é justo dizer que precisa de um redirecionamento urgente.
Acho que a tradição cristã tem algo a oferecer aqui, ajudando-nos a discernir o que devemos sofrer e como devemos sofrer. Isso não quer dizer que a Igreja Ocidental esteja respondendo bem a este problema, dado que nosso envolvimento com o colapso ambiental foi basicamente reduzido à ética: nós perguntamos quais recursos ou ferramentas podem ser extraídos de uma tradição espiritual para persuadir as pessoas a se comportarem melhor. Esta abordagem é, penso eu, insuficiente para imaginar uma resposta fiel a esta crise. Mas também acredito que a tradição que herdamos tem coisas vitais a nos dizer sobre como viver num mundo agonizante e como ser corajoso diante de tanta morte.
Podemos começar perguntando o que devemos lamentar. Implícita nessa questão, é claro, está a ideia de que devemos lamentar – mas que essa tristeza deve ser devidamente direcionada. Isso resume essencialmente o argumento apresentado por Santo Agostinho no século V, quando ele procurou contradizer a posição estoica de que um homem verdadeiramente sábio não experimentaria tristeza (desculpe, não houve mulheres sábias). Em vez disso, como ele disse em “A cidade de Deus”, a tristeza é uma expressão de amor, e o que importa é o que amamos: “Amar, então, desejar ter o que é amado, é desejo; e ter e desfrutar disso é alegria; fugir do que se opõe a ele é medo; e sentir o que se opõe a ele, quando se abate sobre ele, é tristeza. Agora, esses movimentos são maus se o amor é mau; bom se o amor é bom”.
A tristeza ou a lamentação pela perda do que é bom é uma obra de amor que devemos buscar. E para saber o que é bom, Agostinho (e mais tarde também Tomás de Aquino) usaria a tristeza de Cristo como exemplo para a Igreja. Se Jesus se entristece pelos pecados de Jerusalém, por seu próprio sofrimento iminente na cruz e pela morte de Lázaro, então também seus seguidores devem se entristecer pelo sorimento e morte que o pecado traz.
Na história mais recente, a tradição da teologia da libertação também se voltou para a dor de Cristo – tratando-a não como um exemplo, mas como um sinal de sua solidariedade encarnada para com os pobres e oprimidos. Ambas as abordagens têm algo a nos dizer: o que é digno de tristeza e qual tristeza reflete mais verdadeiramente a prioridade divina. É verdade que nem Agostinho nem Tomás de Aquino prestaram muita atenção ao sentimento de tristeza pela morte do não-humano, mas acho que estamos justificados em aplicar sua lógica aqui, pelo menos por ter um reflexo do mais básico pecado humano em seu coração – o desejo de ser Deus, acumular poder e riqueza e fazer com indiferença violenta.
Também há algo intrigante neste tratamento moral do luto que o diferencia das leituras contemporâneas de nossas emoções. Em vez de ver o luto como uma experiência essencialmente passiva, sem “certo” ou “errado”, essas abordagens parecem compreender que o luto em si contém uma espécie de poder; ele reflete como vemos o mundo e reforça ou redireciona nossa atenção. Se não aprendermos o que lamentar – e como expressá-lo – como uma obra de amor, corremos o risco de simplesmente lamentar a perda de nosso próprio direito imaginado a um controle cada vez maior. Continuaremos a nos machucar.
Como, então, devemos lamentar? Recebo minha orientação das tradições judaicas e cristãs de lamentação. O lamento, estritamente falando, difere dos sentimentos individuais de pesar, porque o lamento é uma forma de oração. Quando clamamos a Deus, não o fazemos sozinhos; fazemos parte da comunidade daqueles que clamam a Deus, sejam visíveis ou invisíveis. Isso significa que, para lamento verdadeiro, precisamos chorar juntos, atendendo às dores dos outros. E nesse foco redirecionado para longe de nós mesmos, também evitamos que o lamento seja apenas para aqueles que atualmente sentem tristeza. A lamentação não é apenas pelos momentos em que nos sentimos compelidos a chorar, mas também uma posição que assumimos em relação ao mundo, uma disciplina que vai além da nossa experiência pessoal. Lamento é oração, expressando tristeza, raiva e desejo de justiça a Deus. O lamento está inserido na vida da comunidade. O lamento é uma resposta adequada à morte que o pecado produz. É um lamento que podemos finalmente começar a falar honestamente sobre a destruição que está diante de nós.
Como forma de praticar o luto, o lamento também evita a tentação do desespero e o niilismo que ele provoca. Ao ser direcionado para fora – para os outros, para Deus – reconhece nossa incapacidade de saber o futuro, e afirmar que o fazemos é arrogância. Essa atitude permite que a dor sobre a Terra nos leve a uma ação sábia: agir com sabedoria requer um certo tipo de humildade sobre nós mesmos e nosso conhecimento. Em desespero, presumimos que sabemos o que vai acontecer e que não há nada a ser feito. Nossa expressão de luto precisa nos diferenciar claramente das narrativas desesperadoras: enquanto não nos desesperarmos, sempre teremos mais momentos para agir com humildade e generosidade.
O lamento bom pode ser o que é necessário para nos lembrar que somos criaturas, não deuses. Ao sofrer com os outros, somos forçados a confrontar nossa atenção mal direcionada e nossa autossuficiência imaginária. Aprendemos o que é digno de nossa tristeza aos olhos de Deus. E ao redirecionarmos nossa atenção, aprenderemos como amar o mundo como se não pertencesse a nós o controle.
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Lamento bom: como viver num mundo em colapso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU