13 Outubro 2021
A teóloga Anne Soupa, que acaba de lançar um apelo pela renúncia coletiva dos bispos católicos na França após o relatório Sauvé, acredita que a escolha da Igreja hoje está entre desaparecer e renascer.
O artigo é de Anne Soupa, biblista e teóloga feminista francesa, publicado por Le Monde e reproduzido por Fine Settimana, 12-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se até ontem a Igreja Católica era reconhecida e integrada na vida dos franceses, hoje lentamente se tornou um grande corpo doente. Falta de sangue novo, falta de lucidez quanto ao desgaste de sua estrutura.
Na terça-feira, 5 de outubro, foi revelada a doença que a estava corroendo. Entrou numa fase crônica aguda: a comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (Ciase) ressaltou as numerosas derivas do ministério do padre e do bispo, ele também padre, que são os pilares da gestão pastoral da Igreja.
De fato, as 330.000 vítimas de padres e de leigos a tornam o lugar mais perigoso para os menores, depois da família. E a dissimulação dos bispos - incentivada, senão mesmo imposta, por Roma - torna pesada a culpa. A confiança foi perdida, a palavra episcopal nada mais é do que moeda falsa. E o sofrimento está em todos os membros deste corpo: nas vítimas dos abusos, nos padres, nos fiéis ...
Nesse sofrimento, ora está o espanto, ora a negação, ora a raiva. Na mídia e nas redes sociais, entre as quais o Twitter, a raiva aumenta rapidamente. A Igreja Católica era conhecida por ser lenta, mas descobriu-se que existem católicos bem rápidos. Nós os vimos, em poucos dias, passar da prostração à raiva, depois à expressão de sua vontade de mudar (#AussiMonEglise).
O que os irrita é a contradição básica entre dizer e fazer. O filósofo Damien Le Guay refere, por exemplo, em um artigo no Figaro, uma pergunta do presidente da Ciase, Jean-Marc Sauvé: “Como um empreendimento de salvação pode ocasionar uma obra de morte?”. Tanto mais que os bispos conseguiram em poucos dias coagular os temas do descontentamento: querem indenizar as vítimas de forma fixa, pedem aos fiéis que ponham a mão na carteira e abrem um conflito contraproducente com a República sobre a confissão. No entanto, nem a Conferência Episcopal da França nem Roma falam de qualquer mínima mudança da estrutura da instituição.
Então, se os bispos - e o papa? - não querem reformar, os católicos estão prontos para isso? E se sim, podem fazê-lo?
As reações não são unívocas. Os “católicos culturais” (isto é, aqueles que se sentem tais por estarem imbuídos de cultura católica) já estão com a mão na porta para sair. Mas aqueles que se baseiam em convicções profundas, manifestam seu desejo de retomar a reforma da Igreja, a partir das fundações. O argumento teológico é simples: a Igreja foi construída sobre um inocente crucificado, a de amanhã deve ser construída sobre a própria experiência das vítimas inocentes. As feridas nas quais convidam a colocar a mão são a sacralização do padre - deriva teológica que leva a pensar que Deus seja cúmplice do abuso -, uma masculinidade onipotente e arrogante que favorece as violências sexuais, e o poder absoluto dos bispos.
Existem duas maneiras de erradicar essas calamidades.
A primeira é reduzir o perímetro do ministério do padre. Como a assimilação rápida demais do sacerdote a Cristo. Como o privilégio masculino. Como aquele cânone 1008 do código de direito canônico que estabelece que “com o sacramento da ordem por instituição divina, alguns fiéis, mediante o caráter indelével com que são marcados, são constituídos ministros sagrados”. Alegação insana que só pode levar a abusos. Dever-se-ia reconhecer que não é essa a situação, que o presbitério não foi instituído por Jesus, mas que os padres apareceram por volta do ano 250 d.C. Quanto à sucessão apostólica - ininterrupta, diz-se - a que se referem os bispos, a partir dos doze companheiros de Jesus, é uma corrente em que as tesouras muitas vezes aportaram cortes.
A segunda é revalorizar o papel dos leigos, em virtude do que se denomina "sacerdócio batismal", termo do Novo Testamento que confere um caráter sagrado ao povo cristão graças ao batismo (enquanto o "sacerdócio ministerial", aquele dos padres, ali nunca é mencionado).
Outra referência importante é a escolha dos doze por Jesus. Ao contrário do que se costuma dizer, os doze não são um clube de happy few, homens e solteiros. Aos ouvidos dos ouvintes de Jesus, o número doze ressoa como uma referência aos doze filhos de Jacó, um patriarca do povo judeu. Jesus confiou, portanto, a sua Igreja ao conjunto do povo, simbolicamente constituído pelos descendentes de Jacó. A "todos" e não a "alguns" ...
Fortalecidos por essa poderosa legitimidade, leigos, homens e mulheres, teriam pleno direito de ser responsáveis pelas paróquias ou dioceses e administrar os sacramentos. Muitos já têm a formação necessária.
Por fim, deveriam ser criados verdadeiros contrapoderes nas paróquias e nas dioceses. Com plena legitimidade, o futuro da Igreja pertence aos batizados. Não competiria a eles lançar os alicerces e as etapas de uma reconstrução que obedeceria ao triplo roteiro já mencionado?
Renascer ou deixar a mensagem do evangelho desaparecer: este é o dilema. É claro que até hoje a Igreja baseou toda a sua estrutura nos padres. Os católicos podem, portanto, temer pelo futuro.
Além disso, a instituição já demorou demais. Quanto mais se espera, mais difícil será a reforma, porque lhe faltarão as forças.
Mas nada está perdido. A Igreja deve se confiar o mais rapidamente possível aos leigos (dos quais fazem parte também os religiosos não padres e as religiosas) que estão ao seu serviço e cuja dedicação e competência são tidas como certas.
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Pedocriminalidade: “Para se reformar, a Igreja deve, o mais rapidamente possível, contar com os leigos que estão ao seu serviço”. Artigo de Anne Soupa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU