24 Setembro 2021
"O casamento de interesses entre o papado e a mídia está modificando o ofício papal e o próprio catolicismo".
A análise é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 22-09-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
O movimento político e religioso do século XIX conhecido como “ultramontanismo” mudou a Igreja Católica de uma forma que é visível ainda hoje. Ele exacerbou o papel do papado, tanto na Igreja quanto no mundo secular, a um nível antes desconhecido.
No início da secularização e da queda dos Estados Papais, o papado se tornou o mais importante marcador de identidade para os católicos.
Nas décadas que antecederam o Concílio Vaticano I (1869-1870), o concílio que definiu o primado e a infalibilidade papais, os modernos meios de comunicação ajudaram nesse desenvolvimento. De fato, alguns dos mais influentes ultramontanistas não eram teólogos ou clérigos, mas sim jornalistas leigos.
O apoio da mídia à preeminência do ofício papal ainda está muito vivo, como podemos ver na história da Igreja das últimas décadas. E, por sua vez, o papado retribuiu o seu amor pela mídia.
Trata-se de apenas mais uma prova de que, quando uma religião tradicional usa a tecnologia mais recente das modernas comunicações, isso necessariamente não nos diz nada sobre a modernidade ou a antimodernidade da sua tradição. Isso é tão verdadeiro para o Talibã quanto para o catolicismo.
Em certo sentido, a relação entre a mídia moderna e o papado confirmou que, se há uma “desordem” típica do catolicismo, essa desordem certamente não é o fundamentalismo bíblico.
Como disse certa vez o católico francês convertido e escritor Paul Claudel (falecido em 1955), “os católicos mostram um enorme respeito pela Bíblia: eles ficam o mais longe possível dela”.
Não, a desordem mais típica do catolicismo é o fundamentalismo magisterial: “Isto é católico porque o papa diz que é”.
Mais precisamente, em uma cultura religiosa como a nossa, em que o sentido da tradição se enfraqueceu, a ideia é de que “é católico porque o papa acabou de dizer”.
Nessa forma contemporânea de papalismo, fica claro o papel crucial desempenhado pelos meios de comunicação de massa modernos.
Como você acha que a maioria dos católicos fica sabendo o que o papa acabou de dizer?
Geralmente, isso não vem dos escritórios oficiais de informação e de comunicação da Igreja, mas sim da mídia secular ou convencional.
Parafraseando o famoso discurso do presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, quando ele deixou o cargo em janeiro de 1961, isso pode criar um “complexo jornalístico-papalista” no qual o papalismo e a mídia moderna se fortalecem mutuamente.
Os textos papais oficiais são frequentemente longos e complexos, enquanto a mídia opera com o uso de frases de efeito e citações rentáveis.
Mas, uma vez que existe apenas um papa – uma figura de liderança singularmente icônica que não existe exatamente da mesma forma em nenhuma outra religião –, o papado é uma fonte formidavelmente eficaz para a mídia.
Isso não começou com Francisco, mas ele levou o casamento entre o papado e a mídia a um novo nível, graças também às mídias sociais e digitais.
Como disse o jornalista americano Michael O’Loughlin em seu livro de 2015, Francisco é “o papa tuitável”.
Vimos isso pelos efeitos gerados pelas suas entrevistas e, especialmente, pelas coletivas de imprensa no avião. Pensamos imediatamente no “quem sou eu para julgar?” de 2013 e na mensagem do papa a Donald Trump em 2016 de que construir um muro na fronteira mexicana “não é cristão”.
E, mais recentemente, ao retornar de uma viagem a Budapeste e à Eslováquia, Francisco disse: “Eu nunca recusei a Eucaristia a ninguém”.
Era uma referência ao debate entre os bispos dos Estados Unidos sobre a possibilidade de negar a Comunhão ao presidente Joe Biden por causa de sua posição pró-escolha.
Mas o contexto dos comentários do papa, especialmente durante os seus encontros com jornalistas no avião, muitas vezes se perde nas reportagens da mídia.
Há um texto e um contexto específicos em que o papa responde a uma pergunta específica que um repórter lhe fez.
Há também um intertexto, ou seja, a presença oculta de outro texto ou de uma série de textos em tudo o que o papa diz. É importante notar que, em suas entrevistas e coletivas de imprensa, Francisco raramente menciona explicitamente declarações anteriores do magistério.
Depois, há um paratexto, que é o marco editorial por meio do qual as autoridades vaticanas (na Secretaria de Estado e no dicastério das comunicações) tentam situar as palavras do papa em uma estrutura mais institucional.
Por exemplo, o site do Vaticano coloca as transcrições das coletivas de imprensa do papa a bordo do avião na categoria “discursos”, embora sejam algo bastante diferente.
Os linguistas diferenciam entre diferentes tipos de textos: arquitexto, hipertexto, transtexto, metatexto, peritexto, hipotexto e assim por diante. Seria interessante aplicar essa análise às declarações papais à mídia.
A questão aqui é que o uso da mídia pelo Papa Francisco trouxe uma nova atenção para a relação e para a lacuna existentes entre o que o papa diz e o que a Igreja diz e faz na prática, in loco, em suas muitas e enormemente diferentes comunidades em todo o mundo.
Por exemplo, para permanecer perto do delicado caso envolvendo os bispos dos Estados Unidos e Joe Biden, será interessante ver se e como a comissão da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) que está redigindo o documento a ser apresentado e discutido na reunião da USCCB de novembro usará a última coletiva de imprensa do papa no avião.
Eles o citarão dizendo que “o aborto é assassinato” ou “nunca recusei a Eucaristia a ninguém”? O citarão ambas as declarações?
Certamente, muitos mais católicos ouvem o que Francisco diz por meio da mídia, em comparação com aqueles que tomam conhecimento das declarações emitidas pela Conferência Episcopal. Ainda menos são aqueles que realmente leem os documentos publicados pela Conferência.
O papado hipermidiático que temos hoje é importante para entender o atual estado do catolicismo, as suas muitas facetas diferentes em uma nova dimensão global, o seu senso de unidade e de desunião, e as fontes que moldam seus marcadores de identidade.
O casamento de interesses entre o papado e a mídia está modificando o ofício papal e, portanto, também o catolicismo.
Como previu o filósofo francês Gilles Deleuze há décadas, as instituições tendem a se evaporar no espaço global que o mercado (de bens, mas também de ideias) ocupa com muito pouca ou nenhuma resistência.
A incapacidade da Igreja institucional de controlar a velocidade dos processos sociais e culturais produziu como reação, em alguns ambientes dessa comunidade global de fé, uma ênfase na chamada cultura católica “pura” ou “ortodoxa”.
Trata-se de uma forma de política de segurança na tentativa de manter do lado de fora da porta, e possivelmente fora da vista, as formas variadas de engajamento e de ajuste a um mundo pós-cristão, mas também de rendição às forças do mercado.
Vivemos envoltos em uma mortalha midiática constante, e a Igreja institucional não tem mais o controle exclusivo da narrativa, nem mesmo dentro do catolicismo. O papado entendeu isso melhor do que muitos outros.
Como o veterano vaticanista Luigi Accattoli escreveu recentemente na revista católica independente Il Regno, “a aliança com a mídia ajuda os papas a realizarem objetivos hostilizados pelo sistema eclesiástico. Os papas de antigamente recorriam à aliança ou ao conflito com os reis e os imperadores. Os de hoje apelam à mídia”.
A principal diferença entre os papas do passado e os de hoje é que o papado que forjava uma aliança com reis e imperadores na Idade Média e no início da era moderna era claramente moldado por uma forma monárquica de governo e por uma doutrina hierocrática – um governo quase absoluto dos clérigos, com muito poucas restrições constitucionais ou legais.
A Igreja Católica agora está tentando se livrar desse modelo, especialmente por meio da sinodalidade.
Mas ainda não está claro se os objetivos dos meios de comunicação de massa modernos e os da Igreja Católica convergirão ou colidirão nesse ponto específico e em todos os outros.
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O complexo jornalístico-papalista: a mídia, o papa e a sinodalidade. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU