29 Julho 2021
A história com dados vazados do padre Jeffrey Burril colocou novos focos sobre as práticas jornalísticas do The Pillar, mas seus editores tem uma longa história de jornalismo questionável.
A reportagem é de Christopher White, publicada por National Catholic Reporter, 28-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Apenas poucas horas após o anúncio de que uma autoridade da Conferência dos Bispos dos EUA havia repentinamente renunciado, em 20 de julho, citando “possível comportamento impróprio”, um novo veículo de mídia católico decolou. The Pillar, publicou um artigo de aproximadamente 3 mil palavras alegando que o padre, monsenhor Jeffrey Burrill, esteve engajado em “má conduta sexual em série”, por frequentar bares gays e usar Grindr, um aplicativo de celular para paquera e sexo entre homossexuais.
O artigo estava baseado em uma análise de sinais do aplicativo que os autores alegaram que “se correlacionava com dispositivo móvel de Burrill”. Os sinais, eles escreveram, “sugerem que ele esteve engajado em atividade sexual em série e ilícita”.
O que falta na reportagem de The Pillar e em uma resposta posterior às perguntas sobre a ética da peça está o nome do fornecedor desses dados, detalhes sobre quem pagou para adquirir os dados e como eles foram obtidos pelo veículo, também como qualquer informação sobre como a investigação foi conduzida para determinar se os sinais foram transmitidos do telefone celular de Burrill. A história também carecia de qualquer confirmação da conduta de Burrill além dos dados de localização.
Desde então, o veículo publicou dois artigos subsequentes alegando o uso de aplicativos de encontro em residências clericais na Arquidiocese de Newark, em Nova Jersey, e no Vaticano.
Especialistas em ética jornalística que conversaram com a NCR levantaram várias preocupações sobre o artigo do The Pillar.
“Eticamente, isso é frágil. O artigo é horrível”, disse Todd Gitlin, professor de jornalismo da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, ao NCR por e-mail. “O hackeamento usando rastreamento de dados é ilícito, indefensável e totalmente contrário à ética jornalística”.
“Isso exala às depredações do News of the World de Rupert Murdoch invadindo telefones privados”, acrescentou ele, referindo-se ao escândalo de hackeamento pela empresa em 2011 que levou ao fechamento do tabloide histórico e resultou em milhões de dólares em litígios depois que foi revelado que a publicação invadiu telefones de políticos e celebridades.
Embora o artigo do The Pillar dissesse que não havia “nenhuma evidência” para sugerir que o padre teve contato com menores, ele passou a sugerir que seu possível comportamento sexual consensual arriscava a possibilidade de turvar seu julgamento sobre a forma como a Igreja lidou com a crise de abuso sexual do clero – outro salto problemático, segundo especialistas em ética jornalística.
“A história casualmente liga este caso a outros envolvendo padres pedófilos, mas, na verdade, não há evidências disso aqui”, observou Bill Grueskin, professor de prática profissional na Columbia Journalism School.
“Um bom editor teria descoberto essas questões e provavelmente eliminado as muitas referências a casos não relacionados a comportamento criminoso a uma situação que carece de evidências de tal conduta”, disse Grueskin ao NCR por e-mail.
Gitlin concordou: “As referências sarcásticas à pedofilia são nada menos que vis e macartistas”, concluiu. “Roy Cohn ficaria orgulhoso”.
Rick Edmonds, analista de negócios de mídia do Poynter Institute, uma escola de jornalismo sem fins lucrativos e organização de pesquisa, disse ao NCR: “O artigo levanta várias questões sobre segurança cibernética e privacidade pessoal e apresenta uma questão alarmante sobre se você pode ser rastreado onde quer que vá”.
Edmonds descreveu os métodos usados pelo The Pillar como “incomuns” e sem qualquer precedente jornalístico conhecido.
Flynn e Condon não responderam aos pedidos da NCR para comentar esta história (Os editores do The Pillar buscaram comparar sua história com o trabalho de jornalistas do The New York Times para localizar indivíduos para a insurreição do Capitólio de 6 de janeiro, embora um dos repórteres do The New York Times tenha apontado que suas reportagens, sobre um incidente criminal, citaram apenas indivíduos que consentiram em ser citados).
O vazamento da história de Burrill por meio de práticas jornalísticas questionáveis gerou um debate contencioso entre muitos católicos e, para alguns, representa um afastamento total do “jornalismo sério e responsável sobre a Igreja, da Igreja e para a Igreja”, que The Pillar prometeu fornecer quando foi lançado em 4 de janeiro.
No entanto, embora a polêmica reportagem de The Pillar sobre Burrill tenha colocado o novo site em holofotes nacionais, uma revisão de suas operações anteriores, conexões de seus principais editores, juntamente com conflitos de interesse não revelados e uso impróprio de fontes anônimas, revela uma história de ética jornalística questionável.
The Pillar foi fundado por seu editor-chefe J.D. Flynn e co-editor Ed Condon depois que os dois se demitiram da Agência Católica de Notícias (CNA, pela siglas em inglês), de propriedade da EWTN, em dezembro.
Na CNA, Flynn e Condon estavam à frente de uma agência que se autodenominava “uma das provedoras de notícias católicas de crescimento mais rápido no mundo”. Durante seu mandato, os dois frequentemente se gabavam de sua independência da hierarquia da Igreja, sua capacidade de descobrir e relatar histórias sem medo ou favorecimento e sua precisão e imparcialidade no processo.
Os dois também prometeram trazer esses mesmos padrões para suas novas operações. No entanto, embora The Pillar tenha recentemente gastado considerável tinta escrevendo alegações de má conduta sexual contra um padre, incluindo inferências de como seu suposto comportamento pode ter afetado seu julgamento em questões relacionadas ao abuso sexual de menores, suas publicações nem sempre revelaram seu próprio envolvimento profissional em casos de abuso sexual do clero – não como jornalistas, mas como advogados.
Tanto Flynn quanto Condon são advogados canônicos. Em um podcast de dezembro de 2020 para a Universidade Católica da América (onde trabalha a esposa de Condon e seu tio, John Garvey, é presidente), Condon revelou que continuou a praticar ativamente o direito canônico enquanto também trabalhava como jornalista cobrindo a Igreja.
Depois de lançar o The Pillar, Flynn tuitou em 6 de janeiro que “os comentaristas católicos de direita e esquerda estão se alinhando” para dizer que ele e Condon são “advogados canônicos, não jornalistas”.
“Enquanto isso, nós dois estamos divulgando histórias que fazem mudanças, enquanto as turmas faladoras propagam suas opiniões cada vez mais irrelevantes e partidárias”, escreveu ele.
Entre os mais importantes prelados da Igreja acusados de abusos nos últimos anos está o ex-arcebispo Anthony Apuron, de Agana, Guam. Em 2018, um tribunal do Vaticano o considerou culpado de abusar de menores e o sentenciou, resultando em sua destituição do ministério público.
Como é seu direito canônico, Apuron teve advogados canônicos que o representaram enquanto seu caso avançava no sistema judicial da Igreja. Segundo fonte familiarizada com o julgamento e confirmada por foto de jornal da equipe jurídica, entre seus representantes estava Condon, junto com o vigário judicial da Arquidiocese de Denver, padre Giovanni Capucci.
A reportagem da CNA sobre o julgamento – que carrega uma assinatura de Flynn – refere-se a “fontes próximas ao arcebispo”. No entanto, apesar do trabalho de Condon como advogado canônico no caso de Apuron, a CNA nunca divulgou essa informação.
Apuron, junto com Capucci e Condon, são todos membros do Caminho Neocatecumenal, um movimento controverso que se espalhou por todo o mundo proporcionando formação na fé através de comunidades de pequenos grupos.
O envolvimento de Condon no Caminho Neocatecumenal também não foi revelado durante sua cobertura de outro caso de abuso clerical de alto escalão, o do cardeal australiano George Pell, que foi julgado por abusar de menores, condenado e posteriormente absolvido pelo Supremo Tribunal da Austrália. Condon foi um dos repórteres mais agressivos cobrindo o caso e um cético aberto quanto à culpa de Pell.
Pell há muito tempo está próximo do Caminho Neocatecumenal, do qual Condon e sua família estendida fazem parte da coordenação. Pell, em seu diário da prisão, observou que “todas as lideranças do Caminho Neocatecumenal, de todo o mundo estão intercedendo” por ele.
Evitar conflitos de interesse é um conceito ético fundamental para jornalistas. No mínimo, os jornalistas devem “divulgar conflitos inevitáveis”, como afirma o Código de Ética da Sociedade de Jornalistas Profissionais (SPJ).
O veterano repórter religioso e ex-editor do Newsday Paul Moses dá o exemplo da National Public Radio, que costuma relatar controvérsias a respeito da Amazon, um de seus doadores. “Qualquer história sobre a Amazon ou seu proprietário inclui que a Amazon é um dos doadores da rede sem fins lucrativos”, disse ele.
Moses enfatiza que até mesmo os conflitos percebidos devem ser evitados.
“No ensino de ética do jornalismo, muitas vezes faço uma citação de um falecido editor do New York Times, Abe Rosenthal, embora em uma versão resumida: ‘Você pode dormir com um elefante se quiser, mas se dormir, não pode cobrir o circo’”, dizia ele.
Quando The Pillar foi lançado no início deste ano, ele o fez por meio da plataforma online Substack, que inclui um modelo de assinatura de newsletter. Mas o The Pillar não divulgou suas outras fontes de financiamento, nem delineou como pretende evitar conflitos de interesses.
“Se os escritores ou editores do The Pillar também trabalham com direito canônico, é provável que entre em conflito com o trabalho que eles fazem ao reportar sobre a Igreja Católica”, observou Moses. “No mínimo, esses conflitos de interesse em potencial precisam ser divulgados aos leitores”.
“Eles podem sentir, e pode até ser verdade, que sua cobertura é absolutamente justa”, alertou. “Mas também é essencial evitar a aparência de conflito de interesses.”
Tanto na CNA quanto no The Pillar, Flynn e Condon têm elogiado sua independência e transparência. Quando questionado nas redes sociais sobre o tratamento dado pela CNA a certos líderes religiosos, Flynn foi defensivo.
“Não somos ‘controlados pelo bispo’, patrocinados pelo bispo, aprovados pelo bispo, ou conectados ao bispo”, ele respondeu recentemente a tais críticas. No entanto, o tratamento bajulador de bispos que compartilham da tendência ideológica de Flynn é comum.
Um mês antes de o arcebispo Charles Chaput completar 75 anos em 2019, a idade de aposentadoria para bispos católicos, Flynn publicou um tributo de 2 mil palavras ao homem que lhe deu seu primeiro emprego em direito canônico e trabalho diocesano.
“No interesse de uma divulgação completa, devo deixar claro meu próprio preconceito: eu amo o arcebispo Chaput”, escreveu ele.
“Ele investiu em meu desenvolvimento profissional, intelectual, pessoal e espiritual. Alguns dos anos mais felizes de minha vida profissional foram passados trabalhando para Chaput na Arquidiocese de Denver”, continuou Flynn.
Antes de ser nomeado editor-chefe da CNA em 2017, Flynn também trabalhou como um assistente especial e diretor de comunicações do bispo James Conley, de Lincoln, Nebraska Quando foi anunciado que Conley estava deixando de focar na saúde mental, Flynn foi às redes sociais, escrevendo: “Revelação jornalística completa: o bispo Conley é um dos meus melhores amigos, e estou orando por ele, e estou orgulhoso de sua decisão de ser tão aberto sobre sua saúde mental”.
Flynn também é próximo do arcebispo de Denver, Samuel Aquila, tendo trabalhado para a Arquidiocese de Denver de 2007 a 2013, o que incluiu servir como chanceler de Aquila durante esse tempo.
Em abril, The Pillar expôs um desacordo privado entre Aquila e o cardeal Blase Cupich, de Chicago, que motivou o arcebispo de Denver a fornecer um “esclarecimento público” dos comentários feitos em um ensaio na revista America defendendo a chamada “coerência eucarística” negando o sacramento para aqueles que “persistem em pecado grave”.
Flynn não revelou seu relacionamento anterior com Aquila naquele relatório, nem o relatório indica como a correspondência privada de Cupich foi obtida.
Outro princípio ético fundamental para jornalistas envolve o tratamento de fontes anônimas, que ocasionalmente são necessárias, mas podem ameaçar a precisão e a credibilidade. Fontes anônimas são usadas regularmente no The Pillar e o foram na CNA sob a liderança de Flynn.
O Código de Ética da Sociedade de Jornalistas Profissionais recomenda reservar o anonimato para aqueles “que podem enfrentar perigo, retaliação ou outros danos e têm informações que não podem ser obtidas em outro lugar”.
Os jornalistas também devem explicar por que o anonimato foi concedido, diz o código.
Um uso polêmico de fontes anônimas sob a direção de Flynn na CNA envolveu a visita “ad limina” dos bispos estadunidenses a Roma em 2019-20, que incluiu um encontro entre o papa e cerca de uma dúzia de bispos da região oeste dos Estados Unidos.
Flynn escreveu um artigo para a CNA com dois bispos não identificados que compareceram à reunião, alegando que Francisco estava descontente com parte da cobertura generalizada e favorável de um encontro de setembro de 2019 com o padre jesuíta James Martin, um proeminente aliado católico da comunidade LGBTQIA+.
“Ele foi muito expressivo, tanto em suas palavras quanto em seu rosto – sua raiva era muito clara, ele sentiu que havia sido usado”, disse um bispo anônimo à CNA. Entre os presentes durante a conversa estava o ex-chefe de Flynn, Aquila (Francisco, depois do encontro, ainda enviou a Martin uma carta reiterando seu apoio ao seu trabalho com os católicos LGBTQIA+).
A história da CNA – para a qual Condon contribuiu – não incluiu comentários de nenhum dos outros bispos que compareceram à reunião, mas depois que a história da CNA foi publicada, dois bispos adicionais foram registrados contradizendo as fontes anônimas de Flynn.
Em um artigo publicado pelo NCR, o arcebispo John Wester, de Santa Fé, Novo México, deu um passo incomum ao contestar a reportagem da CNA.
“Acredito que tenho a obrigação de oferecer minha perspectiva sobre os assuntos contidos no artigo da CNA sobre o padre James Martin, uma vez que meu entendimento dos fatos difere do que foi relatado anonimamente”, escreveu ele.
Seguindo o artigo de Wester, o bispo Steven Biegler, de Cheyenne, Wyoming, também registrou que a resposta de Wester “descreve com precisão o tom e a substância do breve diálogo a respeito do padre James Martin”.
Após o incidente, o diácono Greg Kandra, um veterano escritor e produtor da CBS, criticou a CNA pelo uso de fontes anônimas, observando que ela não cumpria os padrões jornalísticos básicos.
Kandra apontou que o artigo de Flynn não explicava por que as fontes eram anônimas ou suas motivações. Ele também observou a falta de confirmação e que “a CNA não parece ter solicitado comentários da assessoria de imprensa da Santa Sé, ou tentado fazer com que alguém fosse oficialmente confirmar o relato desta reunião em particular.”
“Qualquer que seja a história completa, aquela relatada pela CNA estava incompleta e deveria ter sido examinada mais detalhadamente. Com base nas diretrizes publicadas da Associated Press, a história não teria sido publicada como foi pela AP (ou muito de outras agências de notícias)”, escreveu Kandra. “Na verdade, não deveria ter sido publicada como foi pela CNA”.
Embora haja casos em que jornalistas usam e protegem fontes anônimas, o Código de Ética da SPJ afirma que geralmente “o público tem direito ao máximo de informações possíveis para julgar a confiabilidade e as motivações das fontes”.
Depois que o artigo do The Pillar sobre Burrill saiu – e apesar dos inúmeros apelos por mais transparência sobre a aquisição dos dados do aplicativo do telefone celular – Flynn e Condon continuaram a se recusar a nomear o conjunto de dados específico que eles, ou outra pessoa, compraram, ou a metodologia usada em deanonimizá-los.
Na semana passada, Kandra voltou a seu popular blog para compartilhar uma análise sobre a polêmica, da – ironicamente – Agência Católica de Notícias (CNA), que havia anunciado na véspera a história do The Pillar que havia recusado uma oferta anterior de dados do aplicativo em 2018.
“O fim nunca justifica os meios, mesmo que sejam digitais e pareçam confiáveis por causa da tecnologia”, disse William Thorn, professor emérito associado de jornalismo e estudos de mídia no Instituto para Mídia Católica na Marquette University’s, em uma entrevista ao diretor-executivo da CNA, Alejandro Bermudez.
Apesar das amplas críticas aos métodos e práticas jornalísticas do The Pillar, o portal continuou usando os dados para duas histórias sobre a Arquidiocese de Newark e o Vaticano.
Michael Murphy, diretor do Hank Center para a Herança Intelectual Católica na Loyola University de Chicago, expressou no Twitter sua própria exasperação:
“Flynn e Condon praticaram jornalismo de segundo nível na CNA – com algumas abordagens questionáveis de pesquisa e investigação”, escreveu. “O padrão continua”.
“E caveat lector”, concluiu, usando a expressão em latim para: “alerta ao leitor”.
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Novo site católico “The Pillar” opera com bases jornalísticas frágeis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU