31 Agosto 2021
A direita latino-americana viu neste boom evangélico uma porta aberta para atrair eleitores em um nicho social que tradicionalmente tem resistido a ela: os pobres.
Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, viu sua profecia da 'nação divina' se cumprir quando seu amigo Jair Bolsonaro tocou o céu (do Palácio do Planalto) em 2018. Macedo é o arquétipo dos líderes religiosos que têm riqueza acumulada e poder político na América Latina. As igrejas evangélicas estão avançando implacavelmente em uma região que até recentemente era o viveiro da Igreja Católica. Cem milhões de adoradores enchem seus templos e ouvem os slogans antiaborto dos pastores pentecostais. Mas seu discurso não se limita à esfera religiosa.
Graças a impérios de mídia como o que Macedo construiu no Brasil, os evangélicos são hoje um lobby político influente. A Dilma Rousseff quase lhe custou a presidência em 2010 a ideia de descriminalizar o aborto. Em plena campanha eleitoral e sob pressão dos evangélicos, teve de qualificar sua proposta. Leviatã para todas as igrejas, o aborto agora serviu de desculpa para os evangélicos argentinos insultarem a escritora argentina Claudia Piñeiro, roteirista de El Reino, uma série de televisão que reflete as relações promíscuas entre o poder político e alguns líderes espirituais.
Lançada recentemente por Netflix, a série bateu recordes de audiência na Argentina. Para a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas da República Argentina a ficção é inspirada pelos caprichos mortais de alguns pastores.
A reportagem é de César G. Calero, publicada por Publico, 28-08-2021
A influência dos evangélicos na política argentina ainda é limitada e sua implantação social é menor do que em outros países da região (cerca de 15%). O caso do Brasil é diferente, onde os evangélicos já representam 30% da população e seus líderes têm presença marcante no Parlamento e nas prefeituras há anos. Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, foi senador, governador do estado do Rio de Janeiro e prefeito de sua capital entre 2017 e 2020. Pertence ao Partido Republicano Brasileiro, intimamente ligado aos neopentecostais.
Antes de encerrar seu mandato como prefeito, ele foi preso por corrupção. Na prisão, ele pode ouvir a ladainha de uma das milhares de congregações evangélicas no Brasil: “Pare de sofrer”. Seu tio Edir Macedo não sofre há muito tempo. Com seu poderoso arsenal de mídia (ele possui a rede de televisão Record, várias estações de rádio e dois jornais), ele faz e desfaz à vontade. Ele acumulou uma fortuna e agora conta com um aliado de luxo em Brasília, o extrema-direita Bolsonaro, a quem ajudou a vencer as eleições de 2018. Os parlamentares evangélicos já foram decisivos no impeachment que tirou Dilma da presidência em 2016. Ao votar, a maioria invocou Deus.
A doutrina pentecostal (relevância do Espírito Santo, relação direta com Deus, prosperidade terrena, etc.) estava sendo implantada na América Latina desde meados do século XX. Antes, já havia se enraizado nos Estados Unidos, cuja influência nas igrejas latino-americanas foi notável. Diante das experiências progressistas da teologia da libertação católica (com a qual os movimentos insurgentes latino-americanos se confraternizaram), a partir da década de 1980, setores conservadores norte-americanos optaram pela “teologia da prosperidade” pregada por pastores evangélicos carismáticos e eloquentes.
De acordo com um estudo do Pew Research Center de 2014, cerca de 20% dos latino-americanos se declararam evangélicos. Os católicos continuam a ser a maioria (cerca de 70%), mas seu declínio é constante (eles representaram 94% até a década de 1960), apesar dos esforços do Vaticano para estancar o sangramento. As viagens contínuas dos papas pela região faziam parte dessa estratégia. Um relatório mais recente do Latinobarômetro (2018) confirma essa tendência ascendente da doutrina evangélica em detrimento da doutrina católica, embora seu crescimento não seja homogêneo. Existem países como México ou Paraguai onde o catolicismo não sofre tanto, enquanto no Brasil o declínio é contínuo. E a América Central já tem mais evangélicos do que católicos.
A política tem permeado o discurso das igrejas neopentecostais em muitos países. O comediante evangélico Jimmy Morales, na mira da justiça por suposto financiamento eleitoral irregular, governou na Guatemala entre 2016 e 2020. E na Costa Rica, Fabricio Alvarado, outro líder na órbita dos evangélicos, quase chegou à presidência em 2018. Ele venceu o primeiro turno com o grito de “Não mexa com as famílias!”. Ele se referia à educação sexual secular que começava a ser ensinada nas escolas da Costa Rica. Não ganhou no segundo turno eleitoral, mas o poder do lobby evangélico ainda está muito presente no país.
O populismo de direita defendido por Bolsonaro na América Latina se viu no espelho das igrejas evangélicas. Os pastores pentecostais conquistaram os desprivilegiados prometendo redenção espiritual e alívio pecuniário no mesmo sermão. Seu maior sucesso tem sido se instalar nos locais onde a Igreja Católica ainda não conseguiu penetrar. As correntes migratórias do campo para a cidade criaram bairros gigantescos nas grandes cidades latino-americanas. Lá, as igrejas evangélicas com suas redes de apoio comunitário para combater o vício das drogas ou o alcoolismo cresceram como cogumelos, atraindo milhares de fiéis à sua causa.
A direita latino-americana viu neste boom evangélico uma porta aberta para atrair eleitores em um nicho social que tradicionalmente resiste: os pobres. A boa harmonia entre populistas de direita e pastores evangélicos é evidente em muitos países. Eles coincidem em muitas ocasiões (embora nem sempre) em uma defesa do neoliberalismo e uma oposição militante aos direitos sociais como o aborto ou o casamento igualitário. Essa conexão político-religiosa não proliferou apenas no Brasil.
Os evangélicos desempenharam um papel importante na rejeição dos acordos de paz no referendo colombiano de 2016. O empresário Sebastián Piñera voltou ao poder no Chile depois de vencer as eleições em dezembro de 2017. Tanto o líder conservador quanto o candidato pinochetista, José Antonio Kast, tiveram conselheiros evangélicos em suas equipes de campanha. E na Bolívia, os conspiradores que tiraram Evo Morales do poder em novembro de 2019 invadiram o Palácio do Governo agitando Bíblias.
Jeanine Áñez, presidente de fato por um ano e agora na prisão, é uma fervorosa crente católica. O golpista, Luis Fernando Camacho, atual governador da rica província de Santa Cruz de la Sierra, está intimamente ligado aos evangélicos (na verdade, é conhecido como o Bolsonaro boliviano). O reino que certas igrejas e líderes evangélicos invocam é muito terreno. Um paraíso de votos para a emergente extrema-direita latino-americana.
Na quarta-feira, 1° de setembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra "Extrema-direita e populismo religioso no Brasil e na América Latina", com o Prof. Dr. Pablo Semán, da Universidad Nacional de San Martín – Argentina, como parte do Ciclo de Estudos Populismos, Autoritarismos e Resistências Emergentes.
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Evangélicos: o novo reino terreno da extrema direita na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU