09 Julho 2021
"A fé na qual se realiza o encontro com Deus não precisa, em si, de superestruturas que a encapsulem; é um ato livre que não deve ter vínculos de espaço e tempo. Porém, a possibilidade que se gere a abertura a Deus, que sempre vem primeiro ao nosso encontro, está ligada ao cumprimento de algumas pré-condições antropológicas, que favorecem a nossa capacidade receptiva".
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado por Il Gallo, julho-agosto de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A dessacralização foi, desde o início, uma das características fundamentais do cristianismo. Num mundo - o pagão - constelado de divindades que ocupavam os espaços naturais e presidiam às várias funções exercidas pelo homem, não é de admirar que os cristãos fossem considerados como ateus. Em continuidade com a tradição judaica anterior, eles adoram um único Deus, que não hesita em afirmar com força a sua transcendência. Como JHWH, o Deus de Israel, que no momento em que se torna aliado do povo reivindica a sua infinita diversidade e distância, prescrevendo ao homem que não faça nenhuma imagem dele e, inclusive, que não o chame pelo nome (Ex 20,4-6), também o Deus de Jesus Cristo tem ciúme de sua radical alteridade.
A fidelidade a esta elevada concepção de Deus sofreu graves contragolpes ao longo da história da salvação, tanto judaica como cristã. A tentação de capturar Deus, sujeitando-o ao próprio poder e interesses, muitas vezes tomou o caminho da sacralização de algumas realidades que têm a ver com a experiência religiosa. Entre estas, um papel particularmente relevante foi desempenhado, no mundo judaico, pelo culto – basta pensar nas invectivas da pregação profética contra o culto material - pelo templo e, na última fase - aquela do judaísmo - pela lei, que se tornou, depois a destruição do templo, a única referência para a religiosidade do povo (cf. Salmo 119).
No Novo Testamento, a tentação de fazer a salvação coincidir automaticamente com a adesão a uma ou outra dessas realidades, não reconhecendo que é um dom de Deus e que sua aquisição só pode ocorrer com a condição de que a própria pobreza seja reconhecida e se criem as condições internas para seu acolhimento, continuou a persistir. Este é o principal motivo da polêmica de Jesus contra os escribas e fariseus, que fazem da observância da lei o instrumento de sua autojustificação, a forma através da qual merecer - como nos lembra a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14) - salvação.
Por isso Jesus reage com veemência às tentativas de sacralizar a lei, não destituindo-a de seu significado, mas levando-a à plenitude ("Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir", Mt 5, 17), mediante sua submissão ao mandamento maior, o do amor. Ele assume uma posição semelhante em relação a outros símbolos religiosos relativos a - como escreve o autor da epístola aos Hebreus - sacerdócio, sacrifício e vítima que não têm mais nenhum sentido de ser porque estão identificados com sua própria pessoa (Hb 4,14-16; 5-10. Esse processo também ocorre em relação ao templo, que Jesus identifica com o seu próprio corpo (Jo 2,19-20). O texto do qual emerge seu pensamento a esse respeito é especialmente o trecho dedicado ao encontro com a samaritana na cidade de Sicar junto ao poço de Jacó. Aqui, respondendo à mulher, que nota a diversidade dos lugares onde samaritanos e judeus veneram a Deus, Jesus diz-lhe: “crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem”(Jo 4, 21-23).
O que está claramente afirmado neste caso é a abolição de um espaço "sagrado". Nem o templo nem o Monte Gerizim podem reivindicar o direito de ser lugares exclusivos da relação com o divino; não há espaços "separados" (ou reservados), porque Deus está presente em todos os lugares, na profundidade das coisas e na intimidade da consciência do ser humano (intimior intimo meo, diz Agostinho). Mas a possibilidade de reconhecer essa Presença - esta é a segunda afirmação importante do texto joanino - depende estritamente de sermos "verdadeiros adoradores" que se relacionam com ele "em espírito e verdade"; que se abram, em outras palavras, ao acolhimento do mistério divino, partindo da própria interioridade e aderindo à verdade da sua manifestação na pessoa do Filho de Deus.
A instância contida nessas afirmações só pode ter a primazia. A fé na qual se realiza o encontro com Deus não precisa, em si, de superestruturas que a encapsulem; é um ato livre que não deve ter vínculos de espaço e tempo. Porém, a possibilidade que se gere a abertura a Deus, que sempre vem primeiro ao nosso encontro, está ligada ao cumprimento de algumas pré-condições antropológicas, que favorecem a nossa capacidade receptiva. Não é este o significado da relação entre fé e religião? O reconhecimento do primado da fé não implica a rejeição da religião, que é, por um lado, a estrutura originária – a abertura à transcendência (homo naturaliter religiosus) - que permite ao homem receber o dom da fé e, pelo outro, o modo como a fé encontra a sua possibilidade de expressão ao se encarnar em atos humanamente significativos. Entre fé e religião existe - como é fácil intuir - uma relação dialética, pela qual a subordinação da religião à fé comporta a colocação em prática de um constante discernimento para evitar formas de sacralização que obriguem esta última a sofrer uma indevida conspurcação. É como dizer que se trata de não ignorar a importância da religião para o acolhimento e a consolidação da fé e de assumir, ao mesmo tempo, uma atitude de vigilância para com ela pelo perigo do surgimento do "sagrado", em sentido deletério.
O significado do espaço "sagrado" deve ser colocado nesse contexto. Constitui um fator importante para a criação de um clima que favoreça o recolhimento e a concentração meditativa, a interiorização e a escuta; elementos que se combinam para dar vida àquelas pré-condições antropológicas mencionadas acima. Este espaço - convém sublinhar - não pode ser reduzido exclusivamente às paredes de uma igreja; existem diferentes cenários, inclusive naturais, nos quais a atmosfera descrita pode ganhar vida: basta pensar em algumas vistas encantadoras das altas montanhas nas quais acaba sendo natural olhar para cima invocando uma Presença que se percebe próxima. No entanto, apesar de todas essas considerações, edifícios sagrados ainda permanecem um fator importante para o desenvolvimento do clima mencionado. Certamente nem todo tipo de igreja cumpre essa função, porque nem sempre se trata de espaços "sagrados" em sentido autêntico. A possibilidade de que se tornem, de fato está estritamente ligada à capacidade de associar o nível artístico, que constitui um paradigma insubstituível, com a atenção à sensibilidade própria do contexto cultural em que se vive, não esquecendo as finalidades que estes edifícios atendem e que podem ser alcançadas somente quando os cânones próprios da identidade da arte sacra são respeitados. A este respeito, existem exemplos brilhantes do passado que interpretaram perfeitamente o espírito do tempo, produzindo obras de grande prestígio: das igrejas românicas às catedrais góticas até ao próprio barroco (por exemplo, àquele romano de Bernini e Borromini).
Arte barroca em Roma: interior da igreja Santa Maria della Vittoria, com a obra O Êxtase de Santa Teresa. Na segunda imagem, o Baldaquino da Basílica de São Pedro. Ambas obras são de Gian Lorenzo Bernini (Fotos: Wikimedia Commons)
A diversidade de contextos, que determina a variedade dos estilos, permite aproximar-se da riqueza de um testemunho que, ao longo dos séculos, é entregue à humanidade como expressão de uma espiritualidade diferentemente modulada e ao mesmo tempo fiel à substância da mensagem religiosa. E não se trata apenas do passado; também se projeta na atualidade no signo da verdadeira continuidade, se considerarmos algumas obras da modernidade - basta lembrar aqui entre as muitas igrejas aquelas de Le Corbusier e de Michelucci - nas quais a beleza e a verdade são o horizonte de um "sagrado "que interpreta, de forma exemplar, a consciência religiosa do homem contemporâneo.
Arte moderna: interior da igreja das Virgem Santa Maria, na Toscana, Itália, de Michelucci (à esquerda) e interior da igreja em Firminy, na França, de Le Corbusier
(Fotos: EC - Shot - Flickr | Richard Weill - Wikimedia Commons, respectivamente)
A secularização nos libertou de uma forma de "sagrado" que servia como cobertura para uma série de realidades, separando-as de tudo o mais e transformando-os em recipientes imediatos do "divino", e nos fez descobrir o santo "como uma dimensão que permeia profundamente as coisas e as pessoas, para fora e para além de qualquer distinção.
E isso graças à presença do Espírito que anima o universo e a consciência do homem a partir de dentro, e que se move em liberdade absoluta sem que se saiba de antemão de onde vem e para onde vai. A fé ajuda-nos a apreender esta Presença sempre que se manifesta sem barreiras temporais ou espaciais. A redescoberta desta dimensão, que é a mais verdadeira, porém, não se opõe radicalmente à possibilidade (e mesmo à necessidade) de tempos – basta pensar no tempus oportunum de alguns momentos significativos do ano litúrgico - e de espaços que têm - como já foi lembrado - uma função instrumental ao serviço da aquisição daquelas atitudes que dão ao ser humano a possibilidade de haurir a "santidade" das pessoas e coisas. Se o espaço "sagrado" cumpre esta função, adquire uma importância particular, sem que por isso lhe seja atribuída uma exclusividade que não possa ter, e sobretudo sem pretender substituir-se àquela adoração de Deus "em espírito e verdade", que é o modo mais autêntico de viver a relação com o mistério absoluto.
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Existe um espaço sagrado? Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU