06 Mai 2020
"A mesa da Palavra, como dimensão da eucaristia é a Revelação viva de Jesus no meio de nós. Ele se oferece, transborda seu amor por palavras e ações", escreve Rosemary Fernandes da Costa, doutora em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio e assessora da CRB e CNBB e de comunidades educativas e pastorais em especial quanto aos temas relacionados à Mistagogia e Iniciação Cristã e à Espiritualidade Libertadora, professora do Setor de Cultura Religiosa na PUC-Rio, organizadora do livro "A Mística do Bem Viver" (2019), Senso, BH e autora dos livros "Mistagogia hoje" (2014) e "A Mistagogia em Cirilo de Jerusalém" (2015), Paulus, SP. O artigo nos foi enviado por Celso Pinto Carias.
Estamos vivendo um momento ímpar para as comunidades religiosas, distantes de seus templos, de seus recantos sagrados, de seus terreiros e tendas. Contudo, tem sido também um tempo de revisão do significado do espaço sagrado, do templo sagrado, da tenda sagrada. Inicialmente, as comunidades se viram diante do desejo de re-criação do espaço de encontro com o sagrado, e aos poucos essa busca vai se configurando como um retorno ao sentido mais original e fontal.
Nesse dinamismo, percebemos algumas dimensões presentes neste novo-antigo jeito de ser comunidade religiosa. Novo por estarmos criando a partir das referências que vivíamos até este momento e com o cuidado de não perdermos o que é essencial na experiência religiosa. Antigo porque estamos retomando experiências que deram origem a muitas religiões, em sua necessidade de construir um espaço sagrado, como um espaço físico que convida a experiência interior, de encontro com Deus.
A primeira dimensão que estamos tocando, é a da presença do Sagrado em nós mesmos, ao encontro com o sagrado no profundo de cada um de nós. Essa é a experiência que dá origem à reverência, às práticas religiosas, às comunidades que se reúnem em torno de um vínculo que as precede, convida e orienta.
Muitas pessoas relatam nas redes como tem se dado essa descoberta. Essa experiência é a percepção consciente da presença do Mistério divino, é uma experiência mística, de quem se sente habitado pelo divino e vivencia um sentimento único de realização de seu próprio ser e do sentido do viver. Para a espiritualidade cristã, se trata da autocomunicação de Deus com seus filhos e filhas.
Uma segunda dimensão que vai sendo re-descoberta nestes tempos de isolamento de nossas comunidades religiosas, é a presença do Sagrado na natureza, nos acontecimentos, nas pessoas. Nos diz Libanio em uma de suas reflexões: “A natureza, em sua condição de reflexo do Criador, tem sido o lugar do encontro com Deus”. Em muitos momentos temos tido a oportunidade de contemplar a Criação e ela nos brinda a cada dia com sua harmonia, como se estivesse em festa diante do repouso que essa pandemia acabou oferecendo a ela. Podemos contemplar, tocar, sentir, cuidar dos campos, flores, plantas, animais, solos, ar e aprender a admirar a harmonia das criaturas da natureza. Talvez estivéssemos distraídos e, como crianças, estamos sendo reapresentados ao mundo como espaço privilegiado do sagrado. Ao mesmo tempo, essa terra é redescoberta como lar, como casa de todos nós, como Casa Comum, como nos alerta Papa Francisco.
Nessa mesma dimensão nos abrimos para nossos relacionamentos, alguns se tornam ainda mais próximos na convivência, outros, mais distantes, mas que nos convocam a uma atenção sensível e fraterna. Os fatos históricos e acontecimentos cotidianos também nos chegam como convites a revermos nossas vidas e escolhas. A Casa Comum é a casa de todos nós, sem divisões e fronteiras que nos isolem. O sentimento de fraternidade pode ser tocado a cada dia.
O Papa Francisco, em sua Encíclica Laudato Si, nos pede que cuidemos juntos da Casa Comum. Sendo morada de todas as criaturas, devemos cuidar de cada dimensão dessa morada. Não se trata apenas de uma morada como a nossa casa, a nossa cidade ou o nosso país. Todo o planeta é nossa Casa Comum.
A terceira dimensão que desejamos trazer nessa pequena reflexão é a confirmação da presença do Sagrado nas comunidades de fé. Sim, as comunidades religiosas, nos mais diversos recantos do mundo, descobriram formas de que os encontros pudessem permanecer vivos e alimentadores da vida. E ainda mais. As comunidades abriram suas portas virtuais para a acolhida de quem necessita de apoio, aconchego, força espiritual, escuta e silêncio, abraços virtuais. Em sua força espiritual amorosa, as comunidades religiosas se tornam, neste tempo tão difícil, espaços fecundos de vida nova, de superação e alimento, de sustentação da energia amorosa sagrada que tudo conecta, que cuida, supera e renova todo o cosmos.
Poderíamos ousar caminhar pelos encontros de muitas comunidades religiosas, de muitos novos templos sagrados que foram construídos na realidade virtual, mas não seria apropriado trazer à tona experiências de outros universos religiosos que não ao que pertenço. Portanto, neste ponto de nossa reflexão, gostaria de sublinhar uma dimensão sacramental própria das comunidades religiosas cristãs, a dimensão da eucaristia. Para as comunidades cristãs, a liturgia cristã é um eixo, uma referência, como diz a Constituição Sacrosanctum Concilium: “A liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de que promana sua força. A liturgia renova e aprofunda a aliança do Senhor com os homens, na eucaristia, fazendo-os arder no amor de Cristo. Dela, pois, especialmente da eucaristia, como de uma fonte, derrama-se sobre nós a graça e brota com soberana eficácia a santidade em Cristo e a glória de Deus, fim para o qual tudo tende na Igreja." (SC 10).
Nesse aspecto, vem até nós uma aproximação ao sentido da Eucaristia. O termo eucaristia possui um significado muito amplo, pois ele reúne a comunidade eclesial, todo o povo santo e sacerdotal, para celebrar a vida, paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus. É memorial, celebração do Mistério Pascal.
· É uma celebração,
· uma celebração da comunidade de fé,
· uma celebração daqueles que se reúnem com Jesus Cristo para fazer memória de sua vida, morte e ressurreição.
Ela é uma ação-litúrgica e sacramental na qual se integram as muitas formas da presença de Jesus Cristo – na assembleia reunida, na Palavra proclamada e partilhada, no Pão e vinho consagrados e partilhados. Na Celebração Eucarística há, portanto, uma relação entre a comunidade, a mesa da Palavra de Deus e a mesa do Pão. Como nos recorda o Concílio Vaticano II, na Dei Verbum, “a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma, como o próprio corpo do Senhor” (DV 21).
Vejamos então, o que este momento no qual estamos em nossas casas, possui de especial com relação a essa experiência litúrgica e sacramental. Sim, estamos reunidos, como comunidade de fé, em nossos templos sagrados e, juntos, podemos proclamar a Palavra, ouvir profundamente, deixar ressoar em nossas vidas, dialogar sobre nossa escuta e compreensão, e rezar sob sua inspiração. Não estamos partilhando do pão e vinho consagrados, portanto, uma das dimensões fundamentais da Celebração Eucarística não está sendo experimentada: a mesa do Pão.
Contudo, cada uma dessas ações litúrgico-sacramentais carrega o sentido profundo da Eucaristia. Pensemos um pouco mais sobre essa experiência.
Na Celebração Eucarística estamos reunidos em comunidade, em assembleia eucarística, em torno de duas mesas: a mesa da Palavra e a mesa do Pão. As duas mesas nos alimentam, nas duas mesas somos conduzidos, pela graça de Deus, ao seguimento de Jesus Cristo. Uma mesa conduz à outra mesa, são dialógicas, elas se encontram como experiência mistagógica de toda a comunidade local e universal.
A experiência mistagógica nos fala de um processo no qual é Deus mesmo quem toma a iniciativa e vai tecendo um diálogo amoroso com cada pessoa e com cada comunidade. A experiência mistagógica se torna, dessa forma, como um “eco” desta autocomunicação divina, como uma mediação entre Deus e a realidade pessoal, histórica e social.
Costumo dizer que a melhor forma de compreendermos a mistagogia é olhando para o próprio Jesus. Nele percebemos todas as dimensões da mistagogia: o Mistério revelado, o acompanhamento das pessoas e a sua própria relação de intimidade com o Mistério. Em Jesus, o mistério de Deus se revela à humanidade, se faz um conosco, entra na história e, a partir de dentro, de seu núcleo, a conduz a seu sentido pleno. Mesmo assim, Jesus se coloca como caminhante, como aprendiz do Mistério.
Nesse momento, é verdade que, estamos carentes de uma das mesas, e nos sentimos um pouco órfãos da partilha na mesa do Pão, mas, enquanto não podemos participar da plenitude da Celebração Eucarística, a mesa da Palavra é a preciosidade que nos conduz, nos alimenta, nos sustenta e nos orienta.
Como exorta a Constituição Sacrosantum Concilium: “Quanto mais a palavra de Deus for oferecida aos fiéis, maior acesso terão aos tesouros da Bíblia. Por isso, deve-se ler uma parte bem maior das Escrituras, nos espaços litúrgicos que lhe são reservados cada ano.” (SC 51).
A liturgista Ione Buyst nos lembra que a Palavra é Deus mesmo falando à comunidade reunida e, nessa experiência, algo grandioso acontece: libertação, salvação, comunhão. “(...) a palavra na celebração se converte em sacramento por intervenção do Espírito Santo.” (ELM, 41).
Vale a pena lermos o texto integral da Instrução para o Elenco das Leituras da Missa no n. 10.
A Palavra de Deus e o mistério eucarístico fora m honrados pela Igreja com a mesma veneração, embora com diferente culto. A Igreja sempre quis e determinou que assim, fosse, porque, impelida pelo exemplo de seu Fundador, nunca deixou de celebrar o mistério pascal de Cristo, reunindo-se para ler “todas as passagens da Escritura que a ele se referem” (Lc 24,27) e realizando a obra da salvação, por meio do memorial do Senhor e dos sacramentos.
Com efeito, “a pregação da Palavra é necessária para o próprio ministério dos sacramentos, visto que são sacramentos da fé, a qual nasce da palavra e dela se alimenta”. Espiritualmente alimentada nessas duas mesas, a Igreja, em uma, instrui-se mais, e na outra santifica-se mais plenamente; pois na Palavra de Deus se anuncia a aliança divina, e na Eucaristia se renova esta mesma aliança nova e eterna.
Numa, recorda-se a história da salvação com palavras; na outra a mesma história se expressa por meio de sinais sacramentais da Liturgia. Portanto, convém recordar sempre que a Palavra divina que a Igreja lê e anuncia na Liturgia conduz, como a seu próprio fim, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, isto é, à Eucaristia.(ELM 10)
Participando da mesa da Palavra cada pessoa e toda a comunidade recebem e partilham desse alimento. Ou seja, temos respostas pessoais, a partir da vida e do contexto de cada uma e de cada um, mas também estamos reunidos em comunidade, como Povo de Deus que se coloca à caminho e se deixa conduzir pelo Mistério que se revela. A Palavra é dabar, é viva, dinâmica, fala aos homens e mulheres no seu tempo e para além de seu tempo. A Palavra é reveladora e, ao mesmo tempo, mediadora.
“A comunidade é chamada a ouvir, receber a Palavra no coração, deixar-se atingir e converter, responder à Palavra de Deus, à oração e intercessão, ao louvor e à ação de graças, ao compromisso e à comunhão de vida. Tudo isso é obra do Espírito Santo em nós.”(BUYST, I. 2009,13)
Ao se reunir em torno desta mesa, a comunidade é constituída pela Palavra. E nesta dimensão, a comunidade também se torna mediadora. Na medida em que escuta profundamente, a Palavra faz seu caminho de Revelação, ela é acolhida, assumida e se torna testemunhal. A Palavra é viva e eficaz. (Hb 4,12) A Palavra é capaz de edificar e dar a herança a todos os santificados (At. 20,32; 1Ts. 2,13). O Povo de Deus que a acolhe e vive se torna missionário pelo próprio testemunho.
A mesa da Palavra, como dimensão da eucaristia é a Revelação viva de Jesus no meio de nós. Ele se oferece, transborda seu amor por palavras e ações. Por isso mesmo, essa mesa nos convida à escuta e, consequentemente, ao seguimento. É, mais uma vez, o Senhor cuidando de cada um de nós amorosamente, misericordiosamente, e também nos enviando a cuidar dos irmãos e irmãs, nos enviando em missão. A Palavra que é ouvida é semeada, e dá frutos.
Iniciamos esta reflexão mencionando que as comunidades religiosas estão buscando suas formas de se encontrar, de celebrar, de estarem em diálogo com o sagrado, segundo suas referências. Estes gestos criativos de ser comunidade nos chegam por diversas fontes, e até mesmo, somos convidados a nos integrar às comunidades nesta experiência nova-velha.
Na comunidade cristã católica vem crescendo o resgate da liturgia doméstica, da liturgia vivenciada a partir das casas, como espaço sagrado. Para trazer um exemplo significativo, uma experiência que vem sendo vivida nesse período de isolamento é de minha própria comunidade - Comunidade Batismo do Senhor, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nesta experiência temos celebrado cada dia através do Ofício Divino das Comunidades. A mesa que nos reúne e alimenta é a mesa da Palavra. Através dos Salmos, da leitura orante do texto bíblico de cada dia, das orações e preces comunitárias, a comunidade se encontra duas vezes a cada dia, às 9h e às 18h, e vive essa experiência mistagógica, que nos conduz, misteriosamente e amorosamente nos caminhos do amor e da dinâmica pascal.
Nestes tempos, partilhemos desta mesa eucarística, na certeza de que a Palavra que se fez carne e habitou entre nós, está viva. Como terra que somos e na qual habitamos, ela nos fecunda e semeia vida nova. Nestes tempos tão difíceis e misteriosos, nos aproximemos dessa mesa que nos reúne e nos integra, e ouçamos a voz de Deus que nos convida a caminhar, até que possamos nos reunir em torno das duas mesas que nos convocam e alimentam no seguimento de Jesus.
Lembramos o diálogo entre o mistagogo Jesus e a samaritana, à beira do poço. A narrativa nos convida a re-ver tantos conceitos sobre templo, sobre o lugar sagrado, e nos conduz a adorar o Pai, em espírito e verdade. Quem sabe esse é um momento privilegiado, um momento no qual a graça que nos conduz sem cessar, nos leva para dentro de nossos corações, de nossos lares, de nossas comunidades, e nos diz que Deus está aí, onde nosso coração estiver, onde reina o Amor.
ALDAZÁBAL, J. A mesa da Palavra I: Elenco das leituras da missa. São Paulo: Paulinas, 2007.
BUYST, I. A Palavra de Deus na liturgia. São Paulo: Paulinas. 2009.
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 1965.
Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina, Documentos do Vaticano II, 1965, Petrópolis: Vozes, 1966.
LIBANIO, J. B. Eu creio, nós cremos. São Paulo: Loyola, 2000.
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si. Sobre o cuidado da casa comum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2015.
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