27 Fevereiro 2017
"Nos últimos 20 anos, tenho pedido a cristãos e ateus, poetas e físicos, autores e ativistas falarem no ar sobre algo que, em última análise, desafia cada uma de nossas palavras. Esta aventura rádiofônica começou em meados dos anos 90, quando saí da faculdade de divindade e descobri uma mídia e um cenário político em que a discussão sobre a fé tinha sido entregue a algumas vozes estridentes e polarizadas. Eu queria criar um espaço de diálogo que pudesse honrar tanto o o conteúdo intelectual quanto o espiritual deste âmbito da existência humana", escreve Krista Tippett, criadora e apresentadora do programa de rádio público e podcast "On Being" e autora de Becoming Wise: An Inquiry Into the Mystery and Art of Living. (em tradução livre: Tornando-se Sábio: Uma Investigação Sobre o Mistério e Arte de Viver), em artigo publicado por América, 01-02-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
A história da teologia é uma força muito longa para permanecermos totalmente em silêncio, como disse Santo Agostinho. A história da teologia, e da humanidade, também é cheia de palavras sobre a irracionalidade e as limitações da fé, sem dúvidas. Uma das minhas definições favoritas de fé surgiu em uma entrevista com um padre jesuíta, o astrônomo do Vaticano George Coyne, que citou o autor Anne Lamott: "O oposto da fé não é a dúvida. O oposto da fé é a certeza". Tenho dito essa frase em várias discussões eruditas, que ficam encantadoramente mexidas por ela.
Isso tudo é para dizer que minhas observações são incompletas e humildes quanto à questão do que eu aprendi sobre a fé durante minha vida de conversas no rádio e a vida que levo junto a isso. A fé traz evoluções em cada cultura e em qualquer vida. A mesma crença duradoura e fundamental detém uma substância transformada no início, no meio e no fim de qualquer vida. Então, seguem três coisas que eu percebo sobre o estado de evolução da fé no nosso mundo e na cultura estadunidense no momento.
A frase "espiritual, mas não religioso", atualmente um jargão social comum, é apenas a ponta de um iceberg que já se modificou. Somos os primeiros na história da humanidade que não herdaram a identidade religiosa em geral como algo dado, questão de parentesco ou tribo, como a cor do cabelo e a cidade natal. E isso não está levando ao declínio da vida espiritual, mas à sua transformação. Pode-se até usar a carregada palavra "reforma". Trata-se da reforma de um jeito peculiar do século XXI. Seus impulsos fariam mais sentido para Bonhoeffer, com sua sugestão de "cristianismo sem religião", do que para Lutero, com teorias que poderiam ser afixadas a uma porta.
Foram dedicados muito tempo de rádio e espaço nos impressos ao fenômeno dos "sem religião" - o segmento de identificação espiritual de nome estranho e ávido crescimento, que compreendia cerca de 15 por cento da população estadunidense e chegava a um terço das pessoas abaixo de 30 anos. Não considero surpreendente que jovens nascidos nos anos 80 e 90 tenham se distanciado da noção de declaração religiosa, por terem crescido nessa época, em que vozes religiosas estridentes tornaram-se forças tóxicas na cultura estadunidense.
Mais especificamente, o universo crescente dos "sem religião" é um dos espaços mais espiritualmente vibrantes e provocantes da vida moderna. Não é um mundo em que a vida espiritual não esteja presente. É um mundo que resiste ao vazio e a excessos religiosos. Uma grande parte é composta por pessoas loucas pela ética da paixão e pela busca, e pela curiosidade abertamente teológica, que expressam isso em lugares e de maneiras inesperadas. Há igrejas e sinagogas cheias delas, assim como salas de aula de graduação do Novo Testamento e Santo Agostinho.
Nathan Schneider, um frequente colaborador da América, descreveu eloquentemente o paradoxo da sua própria educação espiritualmente eclética e da profundidade da sua busca e de seus colegas ao encontrar as tradições, durante sua entrevista no meu programa. Ele se converteu ao catolicismo quando era adolescente, atraído pela tradição contemplativa da Igreja medieval e o testemunho social radical de pessoas como Dorothy Day. Mas, na missa, ele conheceu muitos católicos que pareciam desconhecer as riquezas de sua própria tradição e continuaram praticando "em uma espécie de inércia". Enquanto isso, entre os sem religião, ele encontrou pessoas que estavam realmente preocupadas com as questões fundamentais. "Eles achavam que não podiam se comprometer com estas instituições, mas estavam curiosos e buscando alguma coisa."
Vejo pessoas que estão em busca neste campo apontando ao cristianismo o seu próprio coração indomável, contracultural, voltado à servidão. Conversei com um jovem que abriu uma empresa digital que reúne estranhos para formar comunidades e conversar sobre traumas da vida, desde econômicos até familiares; jovens californianos apaixonados pela justiça social buscando uma base teológica e resiliência espiritual para o seu trabalho e o dos outros; afro-americanos praticantes da meditação contribuindo com iniciativas comunitárias para alcançar uma rede maior e mais diversificada de parceiros. A divisão entre o sagrado e o secular não faz sentido para eles, embora nenhum seja religioso no sentido tradicional. Mas eles seguem a visão de Martin Luther King Jr. de criar "uma comunidade amada". Eles estão se doando para isto, com ótimas intenções e com humildade, como uma vocação espiritual, e não meramente social e política.
No século passado, certas religiosidades viraram caixas onde muito pouco questionamento entra ou sai, assim como certos tipos de descrença. Mas acredito nisto: qualquer convicção que se preze convive com um pouco de mistério, e esse mistério é a essência da sua vitalidade e seu crescimento.
Einstein tinha uma capacidade de questionamento, uma reverência ao mistério, no coração do melhor da ciência, da religião e das artes. E no começo deste século, físicos, cosmólogos e astrônomos já não estavam querendo que não houvesse mistério, mas, sim, aceitando-o de volta. A Física chegou à beira do que considerou suas fronteiras finais e descobriu, entre outras revelações, que a expansão do universo não está desacelerando, muito pelo contrário. Na verdade, a maior parte dos cosmos tem forças nunca antes imaginadas e ainda não compreendidas - a chamada matéria escura e a energia escura.
Enquanto isso, a física quântica, cujos fundamentos Einstein comparou ao vodu, trouxe os celulares e os computadores, tecnologias do cotidiano com as quais preenchemos as versões online do espaço. Por sua vez, estas experiências científicas imersivas estão renovando antigas intuições humanas de que há mais do que a realidade linear imediata. Há a realidade e a realidade virtual, espaço e ciberespaço. Use a analogia que quiser. Nossas vidas online nos levam para a toca do coelho, assim como Alice. Nós acordamos de manhã e entramos no roupeiro rumo a Nárnia. Quanto mais nos aprofundamos na inteligência artificial e no mapeamento dos nossos próprios cérebros, mais nossa própria consciência nos parece fabulosa.
Sinto-me estranhamente confortada quando ouço cosmologistas falarem que os seres humanos ainda são as criaturas mais complexas que conhecemos no universo, de longe. Buracos negros são explicáveis; o mais simples ser vivo não é. Tendo a acreditar com um pouco mais de confiança que a vida é infinitamente intrigante. Eu amo essa palavra, intrigante. Neste sentido, a vida espiritual é uma busca razoável baseada na realidade. Pode ter pontos de entrada e destinos místicos, com certeza. Mas é, em última instância, sobre criar uma relação de amizade com a realidade, incluindo a experiência humana comum de mistério. Ela reconhece o drama da condição humana. E está na beleza e no prazer, no sofrimento e na dor, e no enigma da nossa capacidade de resistir às coisas que desejamos e precisamos.
A ciência é um novo companheiro para compreender isso, o mistério de nós mesmos. Biólogos, neurocientistas e psicólogos sociais estão levando as grandes virtudes para o laboratório - o perdão, a compaixão, o amor, e até o medo. Eles estão descrevendo como elas funcionam, de um modo que a teologia não conseguiria sozinha. Durante o processo, estão tornando a prática das virtudes e dos elementos da retidão mais humanamente possíveis. O "debate" ciência-religião e seu conflito de certezas nunca foi fiel ao espírito ou à história da ciência ou da fé. Mas este novo diálogo e inter-relação surgido de uma maravilha compartilhada é revolucionário e redentor para todos nós.
Os pontos de conexão do monasticismo e da contemplação, sobre os quais ouço falar em quase todos os lugares no cenário espiritual emergente, são mais do que intrigantes.
Os pais e mães do deserto, visionários como São Bento, São Francisco, Juliana de Norwich e Santo Inácio de Loyola, todos eles encontraram sua voz longe da igreja que eles viram que havia se tornado grande externamente e fria internamente, desconectada do seu próprio núcleo espiritual. Vejo seus semelhantes humanistas, transnacionais e ecumênicos no grupo dos sem religião. Há uma crescente constelação ecumênica de comunidades chamada novo monasticismo, com raízes profundas no cristianismo evangélico: uma ampla rede em torno dos Estados Unidos em que pessoas solteiras, casais e famílias exploram novas formas de comunidade intencional e serviço ao mundo ao redor. E há tecnólogos dominando a Regra de São Bento para construir comunidades abertas e conectadas para além dos gigantes da internet.
Enquanto isso, mesmo com muitas comunidades monásticas ocidentais ficando cada vez menores em suas formas tradicionais, seus espaços de oração e retiro estão ganhando espaço em conjunção com pessoas modernas buscando retiro, descanso e silêncio, bem como centrar-se e orar, e acabam levando isto a famílias, locais de trabalho, comunidades e escolas. Como o mundo barulhento parece estar nos separando, muitas pessoas dentro e além das fronteiras da tradição estão sentindo necessidade de práticas contemplativas que durante séculos eram buscadas por classes religiosas profissionais e muitas vezes estavam ausentes da vida dos crentes comuns.
De muitas maneiras, vejo as novas dinâmicas da vida espiritual atualmente como dons para a sabedoria das eras, mesmo que desestabilizem os fundamentos da fé como a conhecemos. Esta é uma dialética pela qual a fé, para sobreviver, pode viver mais profundamente no seu próprio sentido mais profundo, como jamais pôde. Não sei como será a religião daqui a um século, mas esta evolução da fé transformará a todos nós.
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A religião não detém o monopólio sobre a fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU