18 Junho 2021
"A tensão entre carisma e instituição se reproduz na história. Antes dos eventos destes últimos anos, ainda não tinha percebido quão afiada é a espada da Palavra e como ela divide mesmo onde pensávamos haver unanimidade em defesa da vida. Multiplicam-se os mal-entendidos, as divisões, as inimizades profundas entre nós, na família, na Igreja, com os vizinhos e, obviamente, na sociedade e na política. E não se trata do clássico embate entre direita e esquerda, porque vivemos em um contexto muito mais radical, criado pela violência capitalista e o retorno do fascismo, que novamente se apropria da Tradição", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 17-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando, cotidianamente, testemunhamos as tensões entre quem se preocupa com o Evangelho e quem vive com medo de perder sua identidade católica, reler e reinterpretar o capítulo nono da Dei Verbum pode ser uma iniciativa autocrítica terapêutica.
O que se discute é a relação entre Tradição e Escritura, unidas na mesma matriz espiritual e "aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência". Em jogo, relendo com léxico latino-americano, está a tensão ainda atual entre cristãos do Templo e cristãos do Caminho.
Em primeiro lugar, é necessário sintetizar o que todas as teologias - incluindo o Magistério - nos dizem sobre a tradição. Existe uma Tradição com T maiúsculo, imutável e irreformável - que pode, no entanto, crescer pela hermenêutica e exegese - e a tradição-tradições com t minúsculo, fruto de contextos históricos que as sugeriram e que podem e às vezes devem ser modificadas e descartadas por fidelidade ao Evangelho.
O próprio Ratzinger, em um artigo juvenil, chegava a afirmar que a única Tradição com T maiúsculo é a pessoa de Jesus e a sua Palavra. E esta é uma interpretação que continua sendo católica, distante do princípio protestante, considerado herético e perigoso, da sola Scriptura.
Não se pode ignorar que foram as Igrejas que definiram o cânone, ou melhor, os cânones da Bíblia, em processos longos, diversos e complicados.
Considerando o que aconteceu na Igreja Católica, podemos afirmar que a primeira Tradição indiscutível é a decisão inspirada da Igreja a respeito da canonicidade dos livros inspirados da Bíblia. Essa transmissão dos livros canônicos mostra-nos a estreita relação entre a palavra de Deus e a Palavra Apostólica, mas a definição dessa inegável interpenetração não deve postular uma identificação - "de alguma forma formam um todo e tendem para o mesmo fim" - eliminando qualquer hierarquia entre os dois eventos.
Talvez os teólogos poderiam considerar esta interpretação como uma simplificação redutiva, mas certamente a relação Escritura-Tradição não pode ignorar a prioridade da Palavra de Deus como norma normans e, em segundo plano, a Tradição como norma normata. Nesse sentido, somente Jesus e sua Palavra relida e interiorizada, em vínculo permanente com a vida e a história, orientam a práxis evangélica dos seguidores.
Tudo seria mais simples se bastasse esta afirmação da prioridade normativa da Palavra em relação à Tradição. De fato, não podemos ignorar que esta dialética entre Evangelho e Tradição está amplamente presente no Novo Testamento, a ponto de se estabelecer como norma normans da complexa fidelidade à comunhão eclesial.
Pode servir como exemplo a tensão, presente na comunidade de Roma, já nos anos 65-70, entre o radicalismo perigoso dos mártires e a "prudência" dos defensores do cristianismo como religio licita, que encontramos descrita no Evangelho de Marcos (Mc 3, 21). Nesse versículo, Jesus é chamado de louco por seus parentes. E isso acontece muito antes do pacifismo de Clemente Romano, nos anos 90, e antecipa a aliança definitiva da Igreja com os imperadores Constantino e Teodósio, no século IV.
Encontramos no epistolário paulino mais um testemunho dessa dialética normativa entre dois estilos de interpretação da Tradição: por exemplo, as cartas aos Colossenses, aos Efésios, a segunda aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda a Timóteo, a carta a Tito optam por uma inserção pacífica das comunidades no contexto social, cultural e político em que vivem, enquanto nas cartas aos Romanos, aos Gálatas e até mesmo na carta a Filemon prevalece o desafio profético contra um Cristianismo eminentemente jurídico, mais preocupado com a doutrina do que com a fé, em oposição àquele inspirado pela profecia.
Essas contradições não deveriam nos escandalizar, porque fazem parte do conjunto normativo da Palavra de Deus em todas as épocas da história da Igreja e nos acompanharão até a Parusia. Em outras palavras, trata-se da tensão constitutiva entre carisma e instituição, que, surpreendentemente, em alguns momentos, convivem profeticamente na Igreja e na própria hierarquia.
Por exemplo, em João XXIII, em Medellín, em setores significativos do episcopado latino-americano no período das ditaduras militares. Lembramos também que o próprio Concílio Ecumênico Vaticano II revela essa duplicidade, onde a inspiração evangélica e a fidelidade à Tradição se fazem presentes nos próprios documentos. E esse dilema certamente pode ser descrito, não resolvido, pela reflexão teológica, por isso deveria ser vivido fraternalmente nas comunidades.
Convém recordar também a revolução mística de Francisco e Clara, inspirada no Evangelho lido e obedecido sine glossa e eleito como única norma de vida comunitária, como alternativa ao direito canônico. Deve-se notar que desde o início do franciscanismo a dialética entre o Evangelho e a organização jurídica foi a causa da separação entre espirituais (o movimento) e o conventuais (a ordem).
Apesar disso, os herdeiros de Francisco e Clara conviveram dialeticamente sem romper a comunhão eclesial, mas essa atitude não havia funcionado com os gnósticos e os cátaros dos primeiros séculos e não funcionou depois com Ockham, albigenses, hussitas, até Lutero, que queimou, junto com a bula que o condenava, uma cópia do Corpus Iuris Canonici.
É uma tensão que persiste nas posições antijurídicas, radicais ou moderadas, do pós-concílio. Pensemos, por exemplo, na teologia de Leonardo Boff, no livro Igreja, Carisma e Poder. E lembramos a condenação infligida pela Congregação para a Doutrina da Fé.
E com Boff, é preciso lembrar a longa lista dos processados e condenados: Hans Küng, José María Castillo, Gustavo Gutierrez, Juan Antonio Estrada, Jacques Dupuis, Ivone Gebara, Lavinia Byrne, Jon Sobrino, Bernhard Haring, Charles Curran, Marciano Vidal, Charles Curran, Roger Haight, Eugen Drewermann, Tissa Balasuriya, Yves Congar, Edward Schillebeeckx, Piet Schoonenberg...
Não foram apenas teólogos: foram Igrejas e povos, com seus sonhos de vida em plenitude e justiça, a serem renegados e ocultados.
Depois de décadas caracterizadas pela defesa da doutrina, parece que algo está mudando com o Papa Francisco, mas seria ingênuo acreditar que aqueles que, na história da Igreja, representam o carisma, a profecia, a novidade perene do Evangelho, como oposição aos poderes deste mundo, não sejam minorias sujeitas à perseguição e à morte.
Os acontecimentos atuais mais uma vez nos mostram essa tensão perene entre o Papa Francisco e os defensores da tradição jurídica e doutrinal, à qual supostamente o bispo de Roma estaria desobedecendo.
A nossa história ensina-nos que esse conflito constitutivo e normativo pode ser administrado no âmbito da fraternidade e sororidade eclesial ou, no pior dos casos, pode provocar soluções cismáticas dolorosas e antievangélicas. Onde - é prioritário não o esquecer - a fraternidade passa necessariamente pela Cruz de Jesus e das suas testemunhas; Cruz que é a vitória definitiva sobre a morte e sobre as prepotências do Templo e do Palácio.
Mas existe um "porém", e foi o amigo Sandro Gallazzi quem chamou a atenção para isso: não podemos reduzir o conflito ao âmbito eclesial. A tensão entre carisma e instituição se reproduz na história. Antes dos eventos destes últimos anos, ainda não tinha percebido quão afiada é a espada da Palavra e como ela divide mesmo onde pensávamos haver unanimidade em defesa da vida.
Multiplicam-se os mal-entendidos, as divisões, as inimizades profundas entre nós, na família, na Igreja, com os vizinhos e, obviamente, na sociedade e na política. E não se trata do clássico embate entre direita e esquerda, porque vivemos em um contexto muito mais radical, criado pela violência capitalista e o retorno do fascismo, que novamente se apropria da Tradição.
É uma guerra civil mundial entre aqueles que defendem a vida e aqueles que estão a serviço da morte. O cenário não é ad intra, na Igreja Católica. O único teatro em que "a aparência deste mundo passa" (1Cor 7,31) é a história. E não é preciso sair como "Igreja em saída", porque, desde sempre, mesmo que não o tenhamos percebido, estamos "fora", na única "cidade", na única história, na única sagrada corporeidade, dos sofredores, irmãos e irmãs do Crucifixo, que vence a morte e seus algozes.
O texto poderia ser lido do ponto de vista intraeclesial, mas seria uma redução covarde diante das dimensões da barbárie que ameaça a vida. O estilo, aparentemente moderado, é sugerido pelo temor de que o ódio possa dominar minha vida e trair o ágape. Quando me deparo com irmãos e irmãs que se deixam seduzir pela morte, oro: “Perdoai-os, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
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O cristianismo entre o templo e as veredas da história. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU