31 Agosto 2018
As Escrituras jamais poderão ser congeladas. No Deuteronômio, Moisés abandona o discurso legalista em prol de uma insistência no amor, na vida e na interiorização da Palavra. No evangelho de hoje, Jesus faz a mesma coisa; repreendendo os fariseus que, mesmo sendo especialistas da letra, esquecem o espírito libertador das Escrituras. O que nos torna impuros? Com esta questão, Jesus nos interroga sobre o que na verdade é a religião: uma tradição? rituais a serem seguidos?...
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 22º Domingo do Tempo comum, do Ciclo B (02 de setembro de 2018). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas
1ª leitura: «Nada acrescenteis... à palavra que vos digo; guardai os mandamentos do Senhor» (Deuteronômio 4,1-2.6-8)
Salmo: Sl. 14(15) - R/ Senhor, quem morará em vossa casa e no vosso monte santo habitará?
2ª leitura: «Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes» (Tiago 1,17-18.21-22.27)
Evangelho: «Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens» (Marcos 7,1-8.14-15.21-23)
Por que Jesus ataca as práticas de pureza ritual? Elas a princípio não são más. São muitas vezes inspiradas na higiene. Podem até assumir significações espirituais. Simplifiquemos: puro é tudo o que não tem mistura. Pensemos por exemplo num "vinho puro". Quando nos alimentamos, acolhemos os dons de Deus que nos fazem viver. Ter as mãos lavadas para receber estes dons significa a nossa nudez original, o nosso vazio, que somente Deus pode preencher. Significa partir novamente do zero. Claro que o rito pode se esvaziar, perder o seu sentido, e a "purificação" que deveria significar pode ausentar-se dele por completo. Ora, o rito não vale nada se não é a expressão de algo que venha do coração do homem. Disto precisamente é que Cristo está falando. O contrário da pureza do coração é a duplicidade: querer a uma só vez o sim e o não. O rito pode ser o contrário do que pretende significar.
Somos crentes, sem dúvida, mas… Quando a fé restringe-se ao culto, à devoção, à fabricação de bons sentimentos, mas não passa para a vida, temos a duplicidade, a impureza. O impuro não chega até ao fim, mas bifurca-se a meio caminho, porque quer duas coisas contraditórias. De nada servirá recobrir esta ambiguidade com um manto de ritos. A verdadeira "religião" nem sempre está onde se anuncia. Não seríamos crentes, contudo, se desistíssemos por causa de nossa duplicidade. Constatemo-la, arrependamo-nos dela e confiemo-la a Deus. Confiança que é "pureza" já.
O que é o "coração" do homem? De onde podem vir as suas perversões? Trata-se obviamente do ponto central, imaterial, aonde a nossa liberdade se pronuncia em favor do bem ou do mal. Notemos que Jesus não põe a origem do mal em nenhum espírito malvado, em nenhum Satanás agindo neste mundo. O mal que fazemos viria-nos então do exterior? "O que entra no homem" poderia "torná-lo impuro"? Paulo, quando fala das "potestades e dominações", refere-se sobretudo aos "ares do tempo", às mentalidades coletivas nas quais estamos imersos, mas que procedem de uma espécie de conspiração das liberdades individuais, encontrando portanto a sua origem em nós mesmos. Pensemos por exemplo no atual desvario consumista. Os males que nos vêm do exterior podem nos ferir, enfraquecer-nos e, no limite, destruir-nos, mas não podem nada quanto à nossa pureza ou impureza.
São as nossas decisões que fazem a diferença. Decisões, aliás, que podem ser tomadas em função do que nos vem do exterior, em resposta a situações não desejadas. Ousemos dizer: o que nos torna "puros" é o que vai no mesmo sentido da nossa imagem e semelhança com Deus. Como reconhecer isto? Olhemos para o Cristo; Ele é "o ícone do Deus invisível" (Colossenses 1,15). O final da nossa 2ª leitura traz alguns exemplos, simbólicos, de condutas conformes ao que fez Jesus.
Os exemplos que Jesus tomou para designar "o que sai do coração do homem" e o torna impuro, dizem respeito todos, direta ou indiretamente, à nossa relação com o próximo. Têm subjacente o Decálogo. Aliás, os versículos 8-13 falam em "abandonar o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens". E para ilustrar isto, (fora de nosso texto) cita o quarto mandamento: "Honra teu pai e tua mãe". Ora, depois de ter prescrito a nossa relação com Deus, que comanda todo o resto, o Decálogo fala tão somente a respeito de nosso comportamento para com os outros. Nada sobre os ritos, que os fariseus acusam os discípulos de não praticar. Notemos que o evangelista, que certamente não se dirigia aos judeus, pois detalha um ritual que lhes era familiar, enumera as práticas todas que visavam a significar, a obter simbolicamente, uma purificação pessoal: trata-se de se tornar «próprio», impecável, diante de Deus, libertando-se do que "vem do exterior". Há aí uma espécie de fechamento em si mesmo, de narcisismo, que justamente vai de encontro à Lei de Deus, com o Decálogo. Não podemos alcançar o que os antigos autores espirituais, com alguma pretenção, chamavam de "perfeição", a não ser esquecendo nós mesmos, para nos abrimos aos outros. Por aí é que podemos nos tornar imagens de Deus. O que se chama "amor", mesmo se disto os "sentimentos" não participem, ou participem muito pouco.
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Não confundir o mandamento de Deus com as tradições humanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU