17 Junho 2021
Professores são substituídos por aulas gravadas; as trocas coletivas, pelo ensino remoto; robôs para atender alunos. Discurso de modernização é usado para corte de verbas e precarização. Evitar distopia requer “trabalho vivo” e disputar as tecnologias.
O artigo é publicado por Calle2 e reproduzido por OutrasPalavras, 15-06-2021.
Sabemos o quanto cresce o mercado informal e, principalmente com a pandemia, temos ainda mais pessoas desempregadas, desalentadas e trabalhadores em condições precarizadas e pejotizadas [1]. As mudanças tecnológicas, que trazem consigo avanços exponenciais importantíssimos, também atingem e alteram diretamente as formas de exploração da mais-valia [2]. Dentre diversas categorias expostas à pandemia, os professores têm ficado no centro de uma polarização que coloca suas vidas em contraponto a uma pressão pela volta às aulas presenciais. Ao mesmo tempo, avança o debate do ensino híbrido para o pós-pandemia, com práticas de substituição de professores por robôs e turmas lotadas no ensino remoto. Em meio a tudo isso, onde fica o direito à vida digna, à saúde e à educação?
A uberização é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de prestação de serviços mediado pela tecnologia, aumentando a terceirização e a informalidade [3]. Um dos exemplos é o chamado “zero hour contract” (contrato de zero hora), que tem origem no Reino Unido e se multiplica pelo mundo ao permitir contratação de trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas atividades, que ficam o tempo todo a disposição de uma plataforma digital, sem qualquer estabilidade ou vínculo trabalhista; e o chamado “sistema 9-9-6”, o qual significa trabalhar das 9 a.m até as 9 p.m, por 6 dias por semana.
Com a ampliação da informalidade no mundo digital, a expansão dos trabalhos autônomos e do empreendedorismo como suposto prêmio de contraponto à estabilidade do vínculo trabalhista, configura-se cada vez mais uma forma de assalariamento do trabalho, que frequentemente se traduz no proletário de si próprio, que autoexplora seu trabalho [4].
Como consequência dessas novas relações digitais de trabalho, o processo tecnológico-organizacional-informacional pode eliminar de forma crescente uma quantidade incalculável de força de trabalho, a qual se torna supérflua e sobrante, sem empregos e sem seguridade social. Assim sendo, mesmo com uma parcela de novos postos de trabalhos sendo criados para demandas cada vez mais complexas e específicas, ainda tem-se um crescente aumento de subempregos e precarização [5].
Na educação, já é possível identificar tal tendência sendo reproduzida para reduzir custos e aumentar os lucros. Seja com demissão em massa de professores em contexto de aulas remotas (na qual aulas superlotadas são distribuídas para uma menor quantidade de professores) ou com robôs utilizados para correção de atividades, existe uma tendência que timidamente se insere principalmente no ensino superior privado pelo Brasil. No extremo da distopia enfrentada, estudantes descobriram que estavam tendo aulas online em 2021 ministradas por um professor falecido desde 2019.
Surgem questões, pois até que ponto o ensino remoto, que deveria expandir e ultrapassar os limites da vivência acadêmica, não irá substituir professores por aulas gravadas? Ou até mesmo limitar a reflexão e o processo de aprendizagem ao inserir Inteligência Artificial e lógicas robotizadas para interagir com os estudantes? Até que ponto será preservada a função social das universidades e garantir o tripé de Ensino, Pesquisa e Extensão?
Para o mundo do trabalho, a principal consequência poderá ser a ampliação do trabalho morto [6] (mais maquinário digital, Inteligência Artificial, Algoritmos, Big Data e outras tecnologias emuladoras da realidade) como dominante e condutor de todo processo produtivo e com a consequente redução do trabalho vivo.
Ainda assim, é determinante ressaltar que não estão nas novas tecnologias em si os problemas a serem enfrentados, mas sim na instrumentalização destas tecnologias para pautar agendas de precarização do ensino que visam cumprir um desmonte das universidades brasileiras. Além do mais, especialmente no contexto de ensino-aprendizagem, é impossível dissociar educação e tecnologia; pelo contrário, ambas devem estar associadas pela qualificação do processo formativo.
Nesse sentido, a tecnologia – abstrata e impalpável – não deve pautar unilateralmente a metodologia educacional e as práticas pedagógicas. Pelo contrário, a tecnologia – material e traduzida à realidade – deve servir como instrumento para ampliar e qualificar técnicas de ensino e metodologias que possam alcançar ainda mais estudantes. Isto é, não deve existir uma dicotomia e polarização entre “novas tecnologias” vs. “qualidade da educação”, uma vez que tais novas tecnologias podem e devem ser empregadas quando servirem ao princípio de aprimoramento da qualidade da educação. Caso contrário, qual o sentido?
Vale ressaltar que as profundas transformações da Indústria 4.0 poderão impactar de diversas maneiras os mais diversos setores da nossa sociedade; e o debate educacional não estará isento deste processo. Se faz necessário debater constantemente este tema no âmbito acadêmico e pedagógico para evitar que o avanço das tecnologias sirvam de argumento para uberizar e precarizar a educação, submetendo nossos professores, estudantes e trabalhadores da educação à barreiras diversas no processo formativo.
Alertar também a tendência do atual Governo Federal brasileiro às políticas de enfraquecimento dos vínculos trabalhistas, menor proteção social e cortes no orçamento na pesquisa e educação. Sendo assim, agendas econômicas, como tal, podem ir ditando a forma com que essas novas relações vão se materializando na sociedade.
Olhando pela assistência social para as relações trabalhistas, por exemplo, na perspectiva do projeto ético-político da profissão, essas reflexões são fundamentais para compreender sob quais condições estarão submetidos trabalhadores e trabalhadoras, observando os mais atuais desdobramentos da Indústria 4.0 e seus impactos na exploração do trabalho, possibilitam formas de intervir que dialogam com as necessidades contemporâneas.
Na práxis, as mudanças tecnológicas nada mais são do que oportunidades de ou se avançar pela democratização de práticas que tragam o bem-estar à sociedade, ou, por outro lado, se concentrar tecnologia para domínio de classes. Cabe ao povo e aos trabalhadores se organizarem para que os rumos de novas tecnologias sirvam exatamente ao próprio povo, especialmente quando diz respeito à educação brasileira. Caso contrário, qual futuro distópico podemos esperar?
[1] – Lobato; Silva; Collado; Saito; Pinheiro; Leite. Desalento no Brasil: Caracterização e Impactos da Pandemia. Boletim de Políticas Públicas. São Paulo. n.11, março de 2021. 2021. Disponível em: https://sites.usp.br/boletimoipp/wp-content/uploads/sites/823/2021/04/Lobato-et-al_marco_2021.pdf. Acesso em 31 mai. 2021.
[2] – Antunes, R (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (São Paulo, Boitempo, coleção Mundo do Trabalho.
[3]; [4] e [5] – Antunes, R (2020). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo. Boitempo.
[6] – Marx, K. O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013, coleção Marx-Engels).
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Em marcha, a Educação uberizada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU