23 Setembro 2020
Em meio à pandemia, milhares de docentes foram demitidos de universidades privadas em São Paulo e relatam precarização e depressão.
A reportagem é de Thiago Domenici, publicada por Agência Pública, 22-09-2020.
“A palavra que melhor define meu momento é desespero”, conta Horácio*, professor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, do grupo Laureate, referindo-se à redução de 75% das suas horas de trabalho no atual semestre letivo.
Com mais de oito anos de Anhembi, o professor desabafou em julho num e-mail enviado ao Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro). “A redução de 24 para 6 horas-aula torna o meu sustento inviável, visto que minha única fonte de renda é a Anhembi. É cruel…”
Enzo*, professor de outra universidade do grupo Laureate, a FMU, passou de 21 horas semanais no último semestre para apenas 3 horas. Ele diz que a maioria dos professores está nessa situação. “Nós estamos recebendo em média R$ 500 por mês.”
A redução das horas de trabalho é um dos aspectos de um movimento do ensino superior privado que Celso Napolitano, representante do Sinpro, chamou de “imoral, mas legal”. Napolitano argumenta que cortes de hora-aula e demissões estão ocorrendo em outras universidades privadas país afora.
Na Universidade Nove de Julho (Uninove), cerca de 500 docentes foram demitidos no primeiro semestre do ano.
Em uma reunião on-line presenciada pela reportagem, professores contaram sobre a indigesta surpresa que foi saber da demissão por uma mensagem de pop-up na tela do computador ao acessar o sistema. “É emocionalmente pesado, depois de tantos anos trabalhando lá”, contou um deles, sob anonimato.
Demissão à distância: mensagem de pop-up demitiu centenas na Uninove
Negociando com as universidades a situação trabalhista dos docentes, o diretor do Sinpro confessa estar angustiado com “a precarização do ensino superior privado” – sobretudo com o aumento do uso de educação a distância (EAD). Para Napolitano, a pandemia é uma desculpa para reestruturação e maximização de lucros.
Como justificativa, as universidades citam a redução de alunos matriculados, o aumento da evasão escolar e a inadimplência durante a pandemia. Para o docente Horácio, não está provado que “houve redução do número de matrículas que justificasse a redução na carga horária dos professores” da Anhembi, por exemplo.
“Se a instituição não comprovar a redução do número de alunos matriculados, ela tem que manter o salário do professor”, diz Napolitano, que avalia que as situações serão tratadas individualmente.
Evaristo*, outro professor da FMU, desde 2012 na instituição, tem mais de quatro anos de remuneração não recebidas por horas extras em atividades de dependência (Dep) e adaptação (Adap). Não bastasse a situação, recebeu em julho e agosto R$ 48 de salário – quando deveria ter recebido perto de R$ 800. Ele conta que fez greve por 12 dias até a situação ser encaminhada para uma resolução da universidade. O docente acredita que será demitido como retaliação ao final do semestre por ter protestado com coordenadores em grupos de WhatsApp e avisado alunos da disciplina.
Professor recebeu em julho e agosto R$ 48 de salário – quando deveria ter recebido perto de R$ 800.
“Os alunos ficaram três semanas sem minhas aulas e eles colocaram um professor de outra área, que não sabia o que fazer”, afirma. A Pública já denunciou, no caso da Laureate, que, sem que alunos soubessem, houve uso de robôs no lugar de professores para correções de atividades EAD, fraudes em atas para reconhecimento de cursos e demissões em massa para contratação de profissionais por salários menores – chamados de tutores.
Segundo os professores consultados pela reportagem, ao reduzirem a carga horária dos docentes, as universidades diminuíram também a quantidade de disciplinas oferecidas, o que aumentou significativamente o número de estudantes em cada matéria. “‘Ensalaram’ as turmas”, diz Napolitano.
O professor Horácio explica o que é “ensalar” turmas: “Colocaram alunos de semestres diferentes em uma mesma turma. Por exemplo, um aluno ingressante do primeiro semestre foi alocado em uma disciplina de segundo semestre junto aos alunos do próprio segundo semestre; também colocaram alunos de diferentes cursos em uma mesma turma ou colocaram alunos de campus diferentes em uma mesma turma”, diz.
Lorena*, de 21 anos, que estuda engenharia ambiental e sanitária na Anhembi Morumbi, diz que o número varia de acordo com a aula. “Não sei quantas pessoas tem na chamada, mas assistindo aula tem 250 de segunda-feira, que é a aula mais lotada. Outros alunos da minha sala não conseguem entrar quando dá o limite da sala de 250 pessoas. Aparece um aviso de que a sala está lotada. Nas demais aulas tem mais de cem”, afirma.
Joana*, que está no segundo semestre de recursos humanos, também vive situação similar. “Este semestre está perdido”, avalia. Dividindo as aulas de gestão de pessoas, liderança e diagnóstico organizacional com a turma de administração do sexto semestre, ela afirma que entra no sistema on-line com uma hora de antecedência. “O sistema fica pesado e cai se você entra muito em cima”, conta. “Na última aula, minha professora ficou uns 40 minutos só chamando as turmas para poder ponderar as dúvidas de cinco turmas, umas 250 pessoas.”
A estudante Maria Laura, que faz psicologia na Anhembi no campus Mooca, diz que suas aulas são compartilhadas com o campus da Vila Olímpia e que chegaram a estar juntas as turmas de São José, Piracicaba, Vila Olímpia e Mooca. “Mais de 230 alunos”, diz.
Alunos relatam salas lotadas que ultrapassam o limite do sistema
Enzo, professor da FMU, afirma: “É muito mais barato para a faculdade pagar um professor por três horas, meu caso, para falar com 200 alunos online do que pagar mais professores para ficar cada um com várias turmas de 50 alunos”.
Numa troca de mensagens entre professores da FMU, eles comentam a situação: “À noite juntaram na minha aula 310 alunos. Com 170 presentes na última sexta. Vamos ver nesta sexta com os calouros”. Em resposta, outro professor diz: “Poxa vida, e quem vai corrigir 310 provas e trabalhos?”. “Vai ser tudo múltipla escolha. Acha que vou corrigir? Já vai dar trabalho para lançar…”, resigna-se o docente.
Professores da FMU comentam a situação vivida no semestre com salas online super lotadas
Estudante de jornalismo da Anhembi Morumbi, Caio Andrade avalia que a experiência dessas aulas a distância é um misto de descontentamento e “fazer o melhor que dá”. “O ensino em si, de compartilhar e construir um conhecimento juntos, entre professor e alunos, está totalmente defasado”, avalia.
Maria Laura, a estudante de psicologia, concorda e diz que a postura da faculdade é “incoerente”. “As aulas perderam a sua qualidade, que já estavam diferentes por serem on-line em vez de presencial, e vemos apenas como redução de custo da faculdade.”
Toda essa situação se “reflete na aprendizagem do aluno”, dizem os entrevistados. Para Caio, “em faculdades particulares os alunos são tratados como números pelas instituições, e, durante esse tempo de isolamento e início de aulas a distância, esse fato só foi escancarado”.
O professor Enzo esclarece que está dando o seu “melhor na medida do possível”. “Os alunos não têm culpa alguma. São vítimas”, afirma.
Indagado sobre a legalidade de colocar centenas de alunos numa mesma sala on-line, Napolitano responde sem rodeios: “É um absurdo, mas os mantenedores, com quem negocio, me dizem assim: ‘O MEC permite, o CNE [Conselho Nacional de Educação] permite’”.
Com o avanço da pandemia, quase todas as universidades brasileiras colocaram em prática o ensino a distância em 100% das turmas.
Hoje, a ampliação de disciplinas EAD de 20% para 40% permitida pelo MEC em dezembro nas graduações presenciais é o trunfo de muitos grupos educacionais em meio à redução do Fies – o fundo de financiamento estudantil – em que o governo garante o pagamento das mensalidades e o aluno paga com juros subsidiados depois de se formar.
Com a portaria do MEC, um curso considerado presencial pode, em tese, ter de cinco dias de aula, dois remotos e três presenciais na semana. A situação, explica Napolitano, diminui custos e amplia lucros.
Procurado, o MEC não respondeu até a publicação. Já o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp) diz que em relação às queixas sobre as aulas remotas durante a pandemia não cabe ao Semesp interferir nas decisões estratégicas das instituições. Afirma, no entanto, que “apesar de contratempos”, “a maioria dos estudantes” aprovou a experiência com as aulas on-line, segundo pesquisa realizada pela entidade.
O professor Horácio, citado no início desta reportagem, não tem conseguido arcar com as despesas do dia a dia, tais como pagamento de contas e até mesmo compra de alimentos. “Realmente, estou extremamente angustiado, pois não sei como irei sobreviver.” “Estou comendo menos e coisas mais baratas”, diz. “Sabe aquela história de pedir uma pizza no final de semana? Faz muito tempo. Eu nem sei mais o que é pizza.”
A situação toda impactou também a saúde mental de Horácio. Em meio ao entusiasmo de ser professor – “Eu adoro dar aula. Na hora que começa a aula, é uma delícia, é uma maravilha, parece que eu estou em outro mundo” –, ele relatou o choque emocional a que foi submetido. “Faço tratamento psiquiátrico faz algum tempo e meu quadro se agravou quando recebi a notícia dessa redução absurda na carga horária”, diz. “A minha angústia e ansiedade aumentaram drasticamente. Comecei a ter até pensamentos suicidas, só pra você ter uma noção do grau que eu cheguei”, desabafa.
Gabriel Teixeira, da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, espaço de articulação e mobilização política dos educadores e educadoras das instituições de ensino superior (IES) privadas, avalia que profissionais como Horácio têm vivenciado situações de muito sofrimento e enormes desafios durante a pandemia da Covid-19.
“Enquanto as IES usam a pandemia da Covid-19 como oportunidade para experimentar novos formatos de contrato de trabalho, professores se veem sobrecarregados, com salários diminuídos e com a difícil tarefa de equilibrar tarefas domésticas, pessoais e de trabalho na modalidade home-office”, critica.
Em agosto, Gabriel lançou uma Plataforma de Apoio Psicológico para Profissionais da Educação, iniciativa gratuita da Rede de Educadores. “Temos visto um número expressivo de professores com crises de ansiedade, sobrecarregados e com rendimentos diminuídos, embora trabalhando mais do que antes do isolamento social”, diz.
A demanda por atendimento psicológico foi grande e as inscrições para o atendimento na plataforma se encerraram horas após o lançamento. “Foram 300 pedidos de atendimento em cinco horas”, afirma Gabriel.
Procurada, a Anhembi Morumbi informou em nota (leia íntegra) que fez demissões pontuais de professores no último mês, “apenas e tão somente daqueles que demonstraram interesse em não permanecer conosco, não aceitando a carga horária ofertada para o segundo semestre conforme previsto em Convenção Coletiva de Trabalho, e acompanhada pelo Sinpro SP, não sendo a intenção da Instituição demitir outros docentes”, e que tem colhido “excelentes feedbacks dos estudantes e professores a respeito das aulas síncronas”.
Já a FMU diz (leia a íntegra) que com a “continuidade da pandemia e consequente redução na renda de uma parcela significativa da população, uma boa parte dos nossos alunos não deu sequência aos estudos. Com menos alunos houve redução no número de aulas e, como consequência, sobraram menos aulas por docente. Dessa forma, foi necessário realizar ajustes na carga horária dos docentes”.
Além disso, afirmou que “diálogo, transparência e atenção não faltam na Instituição não só com os docentes, mas também com seus alunos e demais colaboradores”.
* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.
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“É cruel”: professores relatam de aulas on-line com 300 alunos a demissões por pop-up - Instituto Humanitas Unisinos - IHU