17 Junho 2021
Cresce em todo o Brasil a campanha Despejo Zero. Acossada pela pandemia e pelo frio, parte dos despejados já resiste. E surgem, entre a sociedade, grupos que se indignam com manifestação brutal do direito à propriedade. Ma Senado hesita.
A reportagem é de Coletivo Despejo Zero, publicado por Outras Palavras, 15-06-2021.
"Em qualquer canto eu me arrumo. De qualquer jeito me ajeito. Depois, o que eu tenho é tão pouco. Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás. Mas essa gente aí, hein? Como é que faz?" - Adoniran Barbosa, Despejo na favela.
Entre março de 2020 e o início de junho de 2021, ao menos 14 mil famílias foram despejadas no Brasil em plena pandemia de covid-19. Além disso, cerca de 85 mil encontram-se ameaçadas de perder a sua moradia a qualquer momento. Estamos falando de quase 400 mil pessoas, dentre elas mulheres negras, de comunidades quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais. Esses números, certamente subdimensionados, foram computados pela Campanha Nacional Despejo Zero por meio de levantamentos feitos pelos movimentos sociais organizados, instituições ligadas ao tema, Defensorias Públicas de vários estados e denúncias de todo o País. Formada em junho de 2020, já no contexto da pandemia, a campanha tem se tornado cada vez mais capilarizada. Tanto porque os números de ameaças e despejos coletivos não param de aumentar, como por conta de sua incidência política, que tem contribuído para a suspensão de pelo menos 54 casos, evitando que cerca de 7,5 mil famílias fossem despejadas.
Atualmente, além da Campanha, Projetos de Lei municipais, estaduais e federais tramitam nas casas legislativas, determinando a suspensão dos despejos, dentre eles, o PL 827/2020 que semana passada teve sua votação adiada no Senado Federal. A proposta, de autoria dos deputados André Janones (Avante-MG), Natália Bonavides (PT-RN) e Professora Rosa Neide (PT-MT) foi aprovada na Câmara dos Deputados e agora está nas mãos dos senadores. O PL dialoga com diversas recomendações e legislações internacionais que entendem a centralidade de se evitar despejos no contexto atual. Nesta mesma direção, o próprio Conselho Nacional de Saúde encaminhou a recente Recomendação 014/21, solicitando ao Senado Federal a urgente aprovação do PL 827/20, pois pessoas jogadas nas ruas pelos despejos oferecem riscos a si mesmas e à saúde pública.
Além de caminhar no sentido de promover o direito à moradia, essas ações anti-despejo contribuem diretamente para a redução e o controle da pandemia na medida que contribuem para o distanciamento social e dão a essas pessoas a opção de poder ficar em suas casas. Segundo estudo da Nature Magazine (2021), há uma correlação direta entre o aumento de despejos e o aumento de casos de covid, não só para as famílias despejadas, mas para a sociedade como um todo. Coincidência ou não, os estados que lideraram o número de famílias despejadas – São Paulo com cerca de 3,9 mil famílias e Amazonas com cerca de 3 mil famílias – são também os que vêm protagonizando os maiores índices de casos de covid. Além de contribuir para o alastramento da pandemia, a privação de milhares de famílias de abrigo e possibilidade de higiene nesse contexto é, certamente, uma das facetas mais perversas da atual conjuntura brasileira.
A crise econômica desencadeada pela covid-19 e a ausência de um programa de proteção ao emprego e à renda têm empurrado diversas famílias para situações de extrema vulnerabilidade. Estudo do MADEUSP (2021) indica que, em julho de 2021, 61,1 milhões de pessoas viverão em situação de pobreza no Brasil e outras 19,3 milhões na condição extrema pobreza. Trata-se de um crescimento de 20% no número de pessoas pobres e de quase 40% nas famílias em condição de extrema pobreza em relação a 2019. Com uma renda menor, as famílias têm menor capacidade de arcar com os custos de moradia, muitas vezes tendo que escolher entre pagar o aluguel e comprar alimentos.
Para agravar a situação, houve forte aumento nos valores dos aluguéis, dos produtos da cesta básica e queda brutal de quase 90% no investimento em moradia realizados pelo governo federal.
Desta forma, aumentam os casos de despejos individuais (ainda não captados pela campanha Despejo Zero), de reintegrações de posse e de despejos coletivos (estes sim captados pela campanha) criando novas ocupações de edifícios, terrenos e/ou imóveis vazios, além do adensamento das ocupações já existentes. Assim, núcleos familiares que antes não se encontravam passam a conviver, ampliando a exposição destes grupos ao vírus. Ou seja, há um sistema de retroalimentação entre a covid-19 e os despejos, onde os despejos contribuem para o aumento de casos de covid e a crise instalada pela pandemia contribui para o aumento dos casos de despejo, sem que haja uma perspectiva real de atendimento habitacional pelo Poder Público.
É importante lembrar que, em 2019, 50% do déficit habitacional brasileiro (de cerca de 6 milhões de unidades) era composto por famílias com rendimento de até três salários mínimos e que comprometiam mais de 30% da sua renda com pagamento de aluguel, segundo dados da Fundação João Pinheiro. A maior parte delas eram famílias monoparentais, com filhos e chefiadas por mulheres negras que, não por acaso, têm também a menor média de salário do País. Ou seja, há uma interrelação entre classe, raça e gênero que estruturam o (não) acesso ao direito à moradia.
A ocupação Helenira Preta, em Mauá, na Região Metropolitana de São Paulo, é a terceira ocupação de mulheres da América Latina e serve de centro de referência e casa de passagem para centenas de mulheres em situação de violência doméstica. Atualmente, a ocupação está sendo ameaçada de despejo, após realização pela Justiça de um leilão arbitrário do terreno. O prefeito, tendo a oportunidade de dialogar, vetou audiência pública sobre o tema, deixando em risco diversas mulheres em situação de vulnerabilidade.
Portanto, impedir os despejos – coletivos e individuais – como o da ocupação Helenira, é uma pauta fundamental de uma agenda de direitos interseccional e que protege toda a sociedade. A caminhada pelo Direito à Moradia – porta de entrada dos demais direitos humanos – está intimamente articulada a uma agenda feminista e antirracista e que tem na aprovação do PL 827/2020 pelo Senado um passo importantíssimo, mas não o único.
É preciso lançar novas bases democráticas sobre as quais os direitos não sejam privilégio de uma determinada classe, de um determinado gênero, nem de uma determinada raça.
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“Mas esta gente, aí, heim, como é que faz?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU