12 Agosto 2020
"Se zerar o déficit habitacional e o Estado honrar o preceito constitucional do direito à terra e à moradia, a máquina de acumular capital entrará em pane e a desigualdade social será diminuída", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Nos últimos 15 anos, na luta pela terra e pela moradia na cidade, tenho ouvido muitas mães que, com olhos vertendo lágrimas e voz embargada, desabafam: “Frei Gilvander, não suporto mais a pesadíssima cruz do aluguel e a humilhação que é sobreviver de favor, sem liberdade e sendo peso nas costas de parentes.” “Minha família já foi despejada três vezes por estar sem poder pagar o aluguel há seis meses. Estou aqui com mais três contas de energia e três de água, sem poder pagar. Estou com o pagamento do aluguel atrasado de novo, já por três meses, pois estou desempregada. A CEMIG e a COPASA já cortaram minha energia e água.” “Aluguel come no prato da gente todo dia. Dói-me muito o coração ter que retirar alimento da boca dos meus filhos para pagar aluguel, para não ser despejada. Como posso sobreviver na rua com meus filhos pequenos, eu sendo mãe e pai?” “Uma pessoa/família sem moradia é como pássaro que voa, voa, se cansa, mas não tem um ninho para se assentar e descansar um pouco.” Na minha infância, eu morei em casa de pau a pique, coberta de palha de coqueiro, com paredes de barro. O risco de barbeiro nos transmitir o trypanosoma cruzi era muito grande. No interior do Brasil, muita gente morreu da doença de Chagas. Já experimentei no meu próprio corpo o que é sobreviver sem terra e sem moradia digna.
Diante desses clamores que interpelam nossa consciência, 15 anos atrás, ajudei várias famílias, no varejo, a pagar contas atrasadas de aluguel, de água e energia, mas logo descobri que problema social não pode ser combatido apenas com solidariedade ajudando as pessoas individualizadas. Seria enxugar gelo. Tranquiliza a consciência de quem doa, gera dependência em quem recebe a ajuda, mas não resolve pela raiz o problema social. Por isso, sentindo compaixão dos sem-terra e sem-teto nas cidades e indignado diante da tremenda exploração da pessoa humana, abraçamos também a luta pela moradia digna, própria e adequada: luta por terra na cidade, pois ainda não inventaram um jeito de construir casa no ar. É preciso, no mínimo, um pedacinho de terra para fincar as bases da casa.
No Brasil, a superexploração do capital violentando a dignidade humana da classe trabalhadora se embasa no aprisionamento da terra e da moradia em propriedade privada capitalista. Não é à toa que se reproduz há 520 anos a iníqua estrutura fundiária pautada no latifúndio, sem nunca ter sido feito nenhum tipo de reforma agrária. A latifundiarização no Brasil só cresce. Apenas 2% de proprietários controlam 50% da terra, o que oferece condições materiais objetivas para que o agronegócio se dissemine asfixiando a agricultura familiar e enxotando o povo camponês para as periferias das cidades. Encurralado pelo latifúndio, milhões de camponeses foram, nas últimas décadas, expropriados e expulsos do campo, o que causou um tremendo êxodo rural. Ao chegar à cidade, o camponês percebe que a terra também está aprisionada nas garras dos empresários especuladores.
No Brasil, segundo dados do IBGE, mais de 70 milhões de pessoas pagam aluguel (mais de 30% da população). O déficit habitacional está em torno de 7,8 milhões de moradia. No campo, resistem mais de 4 milhões de famílias sem-terra. Nas periferias das grandes cidades, 25% da população brasileira sobrevive em favelas que são, na verdade, novas senzalas: lugares de resistência. Por exemplo, em Minas Gerais, nos últimos 13 anos, mais de 70 mil famílias foram para Ocupações Urbanas. Outras milhares de famílias continuam no campo dando função social à terra em Ocupações de Sem-Terra ou em retomadas de áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, quilombolas e muitos outros Povos e Comunidades Tradicionais. Não bastasse essa situação de precariedade nas ocupações do campo, das cidades e das favelas, verificamos também que está crescendo de forma vertiginosa o número de pessoas em situação de rua. Segundo a Pastoral do Povo de Rua, estima-se que atualmente quase 500 mil pessoas estejam nesta situação. Com cidades cada vez mais empresariais, os pobres estão sendo expulsos para as periferias das regiões metropolitanas. A injustiça está sendo imensa e a classe dominante reproduz no Brasil uma grande sexta-feira da paixão, cotidianamente.
Na luta das Ocupações por moradia e por terra, eu já acompanhei muitos despejos. O terror que a tropa de choque causa nas crianças, nas mães, nos idosos, nas pessoas deficientes é como uma punhalada. Dói muito ver ser destruída a casinha construída igual joão-de-barro, pouco a pouco, nos finais de semana e à noite, porque durante a semana as pessoas estão trabalhando para os patrões. É mentira dizer que “a polícia militar não faz despejo, que só está ali para apoiar o oficial de (in)justiça no cumprimento de uma decisão judicial”. Sem polícia, o oficial de (in)justiça não consegue cumprir uma decisão que manda jogar as pessoas na rua. Já vi caveirão da Polícia Militar (PM) no despejo da Ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte, em maio de 2012.
Já vi helicóptero da PM fazendo voos rasantes com policiais com metralhadora apontando para as famílias. Já vi a tropa de choque jogando bomba de gás lacrimogênio no povo que pacificamente luta por um direito constitucional. Já vi tratores e retroescavadeira derrubar centenas de casas em Ocupações. Já vi que a tensão causada por decisões judiciais pró-despejo tiram o sono das pessoas, adoece muita gente, mas também faz crescer a indignação diante das injustiças. Já vi motorista de trator ser ameaçado de prisão caso parasse de derrubar casas nas Ocupações sob despejo. Já vi policial dar tiro no olho de uma menina de 13 anos, à queima-roupa. Já vi cavalaria da PM/MG passar galopeando sobre o povo que bloqueava o trânsito diante da Cidade Administrativa em Belo Horizonte. Vi um soldado da cavalaria dar uma espadada no rosto do Dinei e, pior, a cavalaria voltou em disparada e passou por cima novamente do Dinei caído com o rosto ensanguentado. Os cavalos evitaram pisar no Dinei na volta.
Em maio de 1999, a tropa de choque da PM/MG matou Hélder e Eronildes, integrantes da Ocupação Bandeira Vermelha, em Betim, durante tentativa de despejo. O povo não recuou e o governador de Minas Gerais, após a polícia assassinar os dois, mandou recuar. O povo levou o corpo de Eronildes para ser velado dentro da prefeitura. Dia 19 de junho de 2015, a tropa de choque da PM/MG bombardeou mais de 3 mil pessoas das Ocupações da Izidora que marchavam pacificamente rumo à Cidade Administrativa. Mais de 40 pessoas foram presas e mais de 90, feridas. Uma bomba jogada do helicóptero da PM caiu no colo de Aline, uma criança de 7 meses, da Ocupação Esperança. Subitamente, a mãe retirou a criança do carrinho e a bomba explodiu no asfalto. Por um triz a PM/MG não matou uma criança de sete meses, ao reprimir aqueles/as que lutam por moradia necessária. Todos esses crimes continuam impunes.
Felizmente, toda opressão gera clamores e lutas por libertação. Em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, mais de 30 mil famílias foram para 119 ocupações e construíram na raça e de forma coletiva mais de 30 mil moradias de alvenaria. São mais de 120 mil pessoas em processo de libertação. A posição dessas 30 mil famílias garantiu a eleição do atual prefeito da capital mineira. De fato, político que não apoia a luta por moradia não tem futuro. Se essas 30 mil famílias tivessem pagando aluguel, em média, R$600,00 por mês, estariam pagando por mês R$18.000.000,00 (dezoito milhões de reais), por ano R$216.000.000,00 (duzentos e dezesseis milhões de reais), em 13 anos já teriam repassado para imobiliárias e para quem vive de aluguéis R$2.808.000.000,00 (Dois bilhões e oitocentos e oito milhões de reais). Imagine o que os especuladores e donos de imóveis alugados não lucram com mais de 70 milhões de pessoas pagando aluguel no Brasil! Conclusão: se zerar o déficit habitacional e o Estado honrar o preceito constitucional do direito à terra e à moradia, a máquina de acumular capital entrará em pane e a desigualdade social será diminuída.
Direito à terra e à moradia são direitos básicos e fundamentais para ancorar a conquista de outros direitos, tais como: educação, saúde, trabalho, paz ... O Papa Francisco, sabiamente, cunhou a expressão: “Terra, Teto e Trabalho” – três Ts -, ao exigir corajosamente de todos os governantes: “Que nenhuma pessoa/família fique sem terra, sem moradia e sem trabalho com direitos respeitados.” Toda reintegração de posse, que na prática é despejo, é uma desintegração de sonhos e de direitos. Dom Pedro Casaldáliga repetia sempre: “Malditas todas as cercas!” Temos que acrescentar: “Malditos todos os despejos!” O Brasil é um dos 193 países-membros signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), que considera o direito à moradia necessidade básica do ser humano e um direito inerente à pessoa humana. Apesar de a Constituição de 1988 ter como princípio basilar “o respeito à dignidade da pessoa humana”, foi preciso muita luta popular para inscrever no art. 6º, através da Emenda Constitucional n. 26, de 2000, o direito à moradia no rol dos outros direitos sociais. Segundo tratados internacionais que têm o Brasil como signatário, deve-se evitar ao máximo fazer despejo, só em último caso, após se encontrar alternativa digna e prévia. Apenas “bolsa moradia” ou “auxílio aluguel” não é alternativa, pois não garante uma moradia digna. Friso que a alternativa deve ser prévia, segundo o princípio “chave por chave”, ou seja, o poder público deve oferecer moradia digna previamente para que a família leve para lá seus poucos pertences. Jogar as pessoas na rua é injusto, é cruel, é desumano, é matar de muitas formas, é política fascista e genocida, é absurdo dos absurdos. Quem tem terra, moradia confortável e ainda recebe injustamente auxílio moradia de quase R$5.000,00 não tem o direito de mandar demolir as casas dos pobres nas Ocupações.
O ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu reintegração de posse do Povo Indígena Xokleng até o fim da pandemia. O risco de novas reintegrações de posse em meio à pandemia agravaria a situação dos indígenas, “que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”, escreveu Fachin na decisão. Eis um passo e o rumo a ser seguido. Pelo exposto, exigimos do Estado brasileiro (poderes judiciário, legislativo e executivo), DESPEJO ZERO. Durante a pandemia nem pensar. Cessem os despejos! Parem de despejar! Isso é o justo, humano, ético, moral e parte do necessário para salvar vidas. [1]
[1] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20
2 - Luta pela terra e por moradia na pandemia. Frei Gilvander em Entrevista ao Canal SEM EMBARGOS
3 - "Todo despejo é uma desintegração de sonhos e de direitos" (Frei Gilvander)-Live Pelo Direito a Vida
4 - Frei Gilvander clama por não despejo de famílias do MST em Campo do Meio, sul de MG - 05/8/2020
5 - 700 famílias da Ocupação Prof. Fábio Alves, em BH, clamam para não serem despejadas. Luta Popular!
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Exigimos Despejo Zero para salvar vidas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU