“Se Bento XVI foi um Papa profundamente europeu, Francisco é o Papa global”. Entrevista com Giulio Meotti

Foto: Vatican Media

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23 Março 2021

 

O ensaio “O último Papa do Ocidente?” resgata as grandes intuições de Ratzinger sobre a Europa.

A pergunta sobre se Bento XVI foi “O último Papa do Ocidente” se impõe desde a capa do último livro do filósofo e jornalista italiano Giulio Meotti (Encuentro, 2021). O autor comenta as propostas que oferece neste ensaio em que recorre de forma analítica ao pensamento do papa emérito sobre o Velho Continente e os valores que constituíra a civilização ocidental.

A entrevista é de Mateo González Alonso, publicada por Vida Nueva Digital, 22-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

O último Papa do Ocidente? É uma provocação esta pergunta ou uma afirmação encoberta?

Não há provocação. Se você olhar de perto, o Ocidente pelo qual o Papa Bento XVI lutou, primeiro como professor e depois como pontífice, está entrando em colapso. A descristianização faz estragos por toda a Europa, em diferentes níveis, mas afeta a todos. O norte da Europa está “perdido” para a sociedade da “morte de Deus”. E agora os países tradicionalmente católicos estão sob ataque. Na Espanha, eles acabam de votar a eutanásia. A Irlanda introduziu o aborto e o casamento gay. A França, durante a pandemia, estendeu o direito ao aborto e esta outrora “filha mais velha da Igreja” vê igrejas sendo atacadas e vandalizadas todos os dias.

Existe uma espécie de autodestruição de suas raízes. As taxas de fecundidade são suicidas em toda parte, e o pior de tudo está ocorrendo nos países europeus “católicos”: Itália, Espanha, Portugal... Continuarão sendo chamados de “Ocidente”, mas não será mais ocidental, a menos que a situação mude, e rapidamente.

Ratzinger tentou advertir, denunciar, salvar o que pode ser salvo. Ele nos ofereceu o diagnóstico (o niilismo da pós-verdade) e a cura (a redescoberta do Logos e da tríplice origem europeia, Atenas, Roma e Jerusalém). Fez muitas viagens apostólicas pela “velha Europa”: a França dos Bernanos e dos Bernardinos, a Espanha dos grandes santos, a Alemanha de suas origens, a Áustria, a Inglaterra de Thomas Morus. Mas temo que no final ele tenha sido derrotado pelo que em 2005 chamou, na televisão mundial, de “ditadura do relativismo”. A própria renúncia, independentemente dos motivos, parece-nos um “martírio” do relativismo.

 

Crise moral e espiritual

 

No livro há uma leitura global do pensamento de Bento XVI sobre a Europa. Depois de uma pandemia, os temores do Papa Emérito sobre o Ocidente foram confirmados?

Fundamentalmente, sim. A pandemia foi o detonador para uma profunda crise moral e espiritual. O capitalismo aproveitou a oportunidade para afirmar a biopolítica e o transumanismo. Por outro lado, uma certa ecologia apocalíptica impôs uma visão pós-humana da natureza, “o homem é um vírus”... Uma certa “cultura da morte” também avançou, o que tem levado muitos países a verem os mais frágeis como dispensáveis.

Na Holanda, na Inglaterra, na Suécia, na França, o coronavírus era considerado quase uma forma de eutanásia nos protocolos médicos de hospitais, em asilos... Muitos idosos recebiam morfina em vez de oxigênio. E então o “pós-Gênesis” que Bento XVI falava, isto é, neste ano várias leis anti-vida foram aprovadas. Como se já não houvesse morte suficiente.

 

A família, célula da sociedade

 

Na análise da situação social das últimas décadas surgem palavras muito duras e pessimistas: suicídio, crise, colapso, niilismo... há esperança?

Sim, nas famílias. As estruturas que mantinham uma sociedade de pé estão em péssimo estado e em rápido declínio: partidos que abraçam o populismo e o consenso fabricado, o Estado em dissolução, universidades nas garras da ideologia, elites autorreferenciais e grotescas... A família é a última célula da sociedade, além daquela que a mantém unida há milhares de anos, que sofrerá os golpes dessa agressão do anti-humanismo. Será mais difícil entrar, é por isso que eles recorreram à ideologia transgênero. Destrua a identidade sexual de uma criança e você criará um “novo homem”.

 

Entre os cenários descritos, menciona-se o caso espanhol e algumas das visitas de Bento XVI ao país. Qual é a opinião do Papa Emérito sobre a Espanha?

Ele tem muito respeito e preocupação. Por isso fez três viagens à Espanha como Papa. Mas mesmo aqui, temo que a julgar pelo declínio do catolicismo, os índices demográficos, um certo otimismo econômico e social panglossiano próprio da Espanha zapaterista e almodovariana, eu diria que Bento XVI triunfou.

 

Um dos detalhes que aparece no livro é que antes de ser Papa, Ratzinger já havia publicado 86 livros e quase 500 artigos, além de outras obras. Que descobertas você fez mergulhando neste enorme trabalho?

Eu estava interessado em trazer o “leigo” Ratzinger, o acadêmico e o filósofo e teólogo que também havia falado aos não crentes. E vi sua impressionante capacidade de observar a realidade, de dissecar o drama do homem pós-moderno, de finalmente oferecer uma saída para sua “loucura”.

 

O Papa Francisco dedicou alguns discursos explicitamente à situação europeia, especialmente durante sua visita às instituições comunitárias e quando recebeu o Prêmio Carlos Magno em 2016. Há continuidade de pensamento entre um pontífice e outro?

Em muitos assuntos, existe uma afinidade profunda. Em questão de gênero, aborto, eutanásia, caridade... Mas na visão geral, se Bento foi um Papa profundamente europeu, Francisco é o Papa global, das grandes viagens às terras fronteiriças. Acredito que essa mudança corresponda a uma mudança no eixo do cristianismo, que no futuro será africano. Quase metade dos cristãos do mundo viverá no décimo paralelo. Espero que em São Pedro continuem a lutar pela civilização europeia, porque foi aqui que o Cristianismo, embora nascido no Oriente, se tornou o que é. Se deixar de ser a “Europa das catedrais” de Schuman, o que será?

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