12 Fevereiro 2021
Jaume Vives queria ser direto sobre a realidade da eutanásia, mas ele teve que se contentar com “Eutanásia? #Debate sequestrado”. Os condôminos do prédio em que mora disseram a ele que sua mensagem inicial para um banner de 500 metros quadrados, o qual ele teve permissão, seria muito explícita.
A reportagem é de Bridget Ryder, publicada por America, 11-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Nós estamos legislando a eutanásia, mas quando nós queremos conversar sobre isso, para mostrar o que é, nós somos chamados de muito agressivos”, ele disse.
O senhor Vives, que é membro da Associação de Católicos Ativistas e líder do Vividores, um movimento para lutar contra a legalização da eutanásia na Espanha, também foi impedido de fazer propaganda no espaço de um ônibus de uma empresa privada de transporte público.
“Sequestraram o debate”, talvez seja a melhor descrição de como a eutanásia se tornará legal na Espanha.
Um projeto para legalizar a eutanásia e o suicídio assistido para adultos que enfrentam doenças incuráveis, deficiências irreversíveis e doenças mentais como um “direito subjetivo” deve ser aprovado no Senado da Espanha até o final de março, o obstáculo final para que se torne lei. A câmara baixa do Parlamento Espanhol aprovou a lei em 17 de dezembro, depois de uma sessão especial no Congresso dos Deputados sem testemunho de especialistas e por cima das objeções tanto dos comitês de bioética como de associação de médicos.
A Espanha não é o único país na Europa que dá significantes passos para a descriminalização ou legalização da eutanásia. O Congresso de Portugal aprovou um projeto de lei sobre a eutanásia em fevereiro de 2020, e o Senado votou para se tornar lei ao fim de janeiro.
A Irlanda também deu passos para legalizar a eutanásia, e tribunais na Alemanha, Itália e Áustria recentemente passaram adiante decisões que podem abrir o caminho para sua legalização. No último mês de outubro, a Nova Zelândia tornou-se o primeiro país a legalizar a eutanásia através de referendo. O suicídio assistido é também legal em Luxemburgo, Países Baixos, Bélgica, Suíça, Canadá, Colômbia, no estado de Victoria na Austrália e em oito estados dos EUA.
Em resposta ao crescimento da aceitação da legalização da eutanásia, a Congregação para Doutrina da Fé reiterou o ensino da Igreja em setembro, na carta “Samaritanus Bonus”. Os bispos espanhóis publicaram sua própria carta sobre o assunto no último mês de dezembro, “Semeadores de Esperança”, na qual eles recordam aos católicos que “não há ninguém que não possa ser cuidado, em mesmo se for incurável”. Os bispos chamaram para um dia de oração e jejum na véspera da votação da lei e encorajaram os fiéis a incluir explícitas instruções em suas cartas que eles não querem fazer eutanásia.
A recente onda de legislação pró-eutanásia e decisões judiciais sugerem que as noções de eutanásia de uma morte digna ganharam aceitação na política, nos tribunais e entre o público em geral na Europa. Mas a maioria dos médicos e bioeticistas ainda se opõe à eutanásia, de acordo com Léopold Vanbellingen, pesquisador do Instituto Europeu de Bioética.
Especialistas em bioética e observadores políticos dizem que a opinião pública na Espanha foi formada ao longo das décadas para considerar a eutanásia um tratamento médico para a dor. Eles acrescentam que uma ideologia de autonomia pessoal convergindo com as sensibilidades de uma cultura consumista mudou as expectativas do papel dos médicos no atendimento ao sofrimento.
“A lei espanhola foi aprovada com muito pouco debate social de antemão”, disse Montserrat Esquerda, do Instituto Borgia de Bioética, em Barcelona. “Tem havido vários casos explorados na mídia [que ajudaram a promover a aceitação da eutanásia] e algumas pesquisas de opinião pública em que não houve esclarecimento e verificação do que a pessoa entende como eutanásia”.
Essas pesquisas encontraram apoio consistente para a eutanásia de espanhóis, mas de acordo com especialistas, as circunstâncias detalhadas em muitas perguntas da pesquisa descrevem melhor os cuidados paliativos, não a eutanásia.
“Há uma confusão muito clara em termos e muitas pessoas equiparam a eutanásia a uma morte sem dor”, explicou Esquerda.
A eutanásia invadiu a consciência pública na Espanha na década de 1990, quando Ramón Sampedro, um tetraplégico, iniciou uma série de ações judiciais em busca de ajuda para acabar com sua vida, chegando até a Comissão Europeia de Direitos Humanos. Ele perdeu em todos os tribunais.
Em 1998, sua família e amigos o ajudaram a executar um plano para acabar com sua vida com cianeto, para que ninguém fosse condenado por ajudar em seu suicídio. Sua história foi transformada no vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2004, Mar Adentro.
Desde então, quase uma dúzia de tentativas de descriminalizar a eutanásia passaram pelo parlamento espanhol sem se tornarem lei. Durante as eleições nacionais de 2019, o candidato presidencial socialista, Pedro Sánchez, prometeu tornar a eutanásia legal caso fosse eleito.
Essa campanha ocorreu na esteira da morte amplamente divulgada de María José Carrasco. Com 61 anos, ela sofria de esclerose múltipla há 30 anos. Seu marido, Ángel Hernández, a filmou pedindo a ele que a ajudasse a acabar com sua vida por vários dias seguidos e, em seguida, deu-lhe uma bebida com uma dose letal de medicamento.
Sánchez e seu partido venceram as eleições de novembro de 2019. Depois de consolidar seu governo com o apoio de partidos de extrema-esquerda, o projeto de lei da eutanásia foi novamente apresentado ao parlamento em janeiro de 2020.
A Organização Médica Espanhola manifestou-se contra a legalização da eutanásia em maio de 2018, alegando que ela contradizia o juramento de Hipócrates. A Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos também anunciou sua oposição.
Em decisão unânime, o Comitê de Bioética da Espanha, órgão consultivo independente vinculado ao Ministério da Saúde, desaconselhou a lei em março de 2020. “Existem sólidas razões sanitárias, éticas, jurídicas, econômicas e sociais para rejeitar a transformação de a eutanásia em direito pessoal e serviço público”, concluiu o comitê.
Mas essa oposição credenciada à eutanásia foi ignorada. No parlamento, apoiadores do projeto bloquearam o testemunho de especialistas.
O parecer de 74 páginas do Comitê de Bioética da Espanha abordou como as mudanças recentes nas expectativas dos pacientes estão afetando a medicina. O comitê observou que houve uma evolução no relacionamento clínico que colocou “o paciente no epicentro dos cuidados de saúde”.
Mas, continuou, “é fundamental enfatizar que mesmo que o paciente seja o centro da relação clínica, o médico é responsável pelas indicações e contra-indicações e é corresponsável na tomada de decisões”.
“A medicina ainda é a arte de curar e, se não for possível, de curar, ou a medicina se tornou um serviço comercial como tudo mais, à disposição de todos, de acordo com seus desejos?”, perguntou Vanbellingen.
O comitê não encontrou nenhuma indicação médica para a eutanásia para aliviar o sofrimento, nem uma justificativa legal e ética para derivar o direito ao suicídio assistido por um médico do desejo individual de morrer. “Não pensamos que tal compaixão legitima ética ou legalmente um pedido que, também não encontrando respaldo na verdadeira autonomia, possa ser atendido no contexto atual de cuidados paliativos, de apoio social e de saúde”, afirmou.
Verbellingen destacou que embora as leis de eutanásia pretendam limitar o contexto da prática, os critérios estabelecidos nas leis são muito subjetivos, levando à “morte sob demanda”.
A Espanha também destaca as dificuldades de conter o entusiasmo pela eutanásia somente com os benefícios dos cuidados paliativos . No Atlas de cuidados paliativos na Europa de 2019, publicada pela Associação Europeia de cuidados paliativos, a Espanha estava no 31º lugar entre 51 países no ranking de cuidados paliativos, ao lado de Georgia e Moldávia. Estima-se que 80 mil pessoas por ano morrem na Espanha sem receber os cuidados paliativos que necessitam.
De acordo com Esquerda, há um paralelo nesse vão de capacidade de cuidado das pessoas que estão incapacitadas ou que sofrem doenças degenerativas de longo prazo. Tanto médicos quanto políticos sabem que o sistema de saúde pública na Espanha é atrasado para o cuidado de pacientes muito graves.
De acordo com Vives, quatro propostas para fortalecer os cuidados paliativos vieram anteriormente para o parlamento, mas nenhuma foi aprovada. Politicamente, cuidados paliativos “não são atrativos”, ele afirmou, especialmente se comparado com a concessão de aparente autonomia aos cidadãos, para escolherem se livrar do sofrimento.
A carta “Samaritanus Bonus” também relembrar que católicos no nível individual, apenas os cuidados paliativos não são suficientes para superar o desejo de encerrar o sofrimento através das mortes.
“Cuidado paliativo não pode dar uma resposta fundamental ao sofrimento ou erradicá-lo da vida das pessoas. Reivindicá-lo de outra forma é gerar uma falsa esperança e causa até um grande lamento em meio ao sofrimento”, afirma. “Doenças terminais causam profundo sofrimento em pessoas doentes, que procurar um nível de cuidado para além do puramente técnico”.
Para aliviar seus sofrimentos, eles necessitam do “vinho da esperança” que vem através da fé em Deus e “experienciar uma solidariedade e um amor que sobrepõe ao sofrimento, oferecendo um sentido de vida que se estende para além da morte” e “alguém que ‘permanece’ ao lado da cama do doente traz o testemunho do seu valor único e irrepetível”, ensina o documento.
A história de Carrasco sugere tanto o vazio do apoio médico na Espanha e a necessidade de acompanhamento espiritual de doentes terminais e descapacitados. Ela estava na lista de espera de uma residência de cuidados desde 2007 para oferecer uma trégua para seu esposo, que era seu cuidador sozinho e estava com quase 60 anos. Em 2018, seu marido, com então 68 anos, sofreu uma hérnia de disco carregando Carrasco.
Ela conseguiu uma vaga temporária em uma residência, mas que se atrasou por causa da burocracia. A cirurgia do seu marido foi adiada porque não haveria ninguém para cuidar da senhora Carrasco. Em setembro de 2018, sua saúde piorou e ele não mal conseguia comer ou falar.
Ela recebeu uma sonda de alimentação e cuidados paliativos, incluindo sedação parcial, mas recusou todos os tratamentos adicionais, relatando, “eu não quero dormir, eu quero morrer”. Seu marido disse que gravou a morte de sua esposa para mostrar seu “sofrimento e abandono”.
Além de influenciar as políticas públicas, a campanha Vividores busca “alcançar as pessoas que sofrem e procuram um sentido para suas vidas”, disse Vives. Ele acredita que a maioria das pessoas não quer responder ao sofrimento com a morte.
O site da campanha inclui uma série de entrevistas com pessoas que vivem com alegria, apesar de deficiências e doenças degenerativas. Essas entrevistas geraram a resposta mais positiva à campanha contra a eutanásia.
“Temos o exemplo de muitas pessoas que nos escreveram e ligaram [para nos dizer] que viram as entrevistas, que as ouvir [mudou] sua compreensão da vida e de seus problemas”, disse Pablo Velasco, outro organizador. “Mesmo que a lei seja aprovada, a campanha não foi um fracasso”.
Os organizadores do Vividores dizem que vão manter a campanha enquanto a lei avança no Senado e, se ela for aprovada, planejam continuar com uma campanha educacional e de opinião pública mais profunda nos próximos cinco anos para tentar derrubá-la.
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Espanha. A Igreja Católica está perdendo o debate sobre eutanásia. Poderá voltar à conversa se esta for legalizada? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU