19 Fevereiro 2013
Um pontífice deve acreditar que o cristianismo durará até o fim do mundo. Mas a grande questão é se as suas forças se dão conta do seu verdadeiro adversário, que as sacode e as subverte. O "relativismo" foi o adversário de Bento XVI.
A reflexão é do filósofo italiano Emanuele Severino, membro da Accademia dei Lincei, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 19-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na nobre forma com que, no dia 10 de fevereiro, Bento XVI expressou a sua renúncia está indicado explicitamente o problema central do cristianismo: ele se encontra "no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé" ("In mundo nostri temporis rapidis mutationibus subiecto et quaestionibus magni ponderis pro vita fidei perturbato").
Com relação a esse problema, o fato de que um pontífice declare não ter mais as forças para enfrentá-lo é um tema que, apesar da sua relevância e pertinência, passa para o segundo plano. No texto, a palavra pondus ("peso") aparece três vezes: como peso das questões relativas à vida da fé, como peso do gesto de renúncia e como peso do ministerium que é deixado pela ausência de forças. Mas só o primeiro peso é chamado de "grande": a vida da fé está hoje sobrecarregada por "questões de grande peso" e é ela mesma perturbada pela turbulência do mundo. O mundo cristão, muito mais um pontífice, pode reconhecer que a perturbação da fé é bem mais profunda do que a visível, devida à corrupção dentro da Igreja.
A turbulência do mundo, no entanto, não se refere apenas à fé religiosa, mas também àquelas outras formas de fé ainda dominantes (e que não gostam de ouvir dizer que são, por sua vez, "fés"). Refiro-me sobretudo ao capitalismo, à democracia, ao capitalismo-comunismo chinês ou, no Irã, à mistura de teocracia e capitalismo; e o comunismo soviético, assim como o nazismo, estava entre as mais relevantes dessas forças; cada uma das quais sente a necessidade de eliminar as próprias degenerações, mas se recusa a admitir a inevitabilidade do seu declínio.
Não é uma metáfora nem uma hipérbole fora de lugar afirmar que cada uma delas se sente um deus que deve destruir os infiéis. Mas, assim como a fé religiosa, a vida dessas outras forças também é sobrecarregada por "questões de grande peso" – por questões que deixam entrever a inevitabilidade de tal declínio.
Certamente, um pontífice deve acreditar que o cristianismo durará até o fim do mundo. Mas a grande questão é se aquelas forças – portanto, também o cristianismo – se dão conta do seu verdadeiro adversário, que as sacode e as subverte. O "relativismo" foi o adversário de Bento XVI. O esforço para combatê-lo teve um caráter sobretudo pastoral. O simplicismo conceitual e a ingenuidade do relativismo favoreceram, de fato, a sua difusão junto às massas, e tal difusão não é nada irrelevante para a vida da fé.
João Paulo II se aproximava mais do adversário autêntico quando identificava no início da filosofia moderna (Descartes) a matriz de todos os grandes "males" do século XX, como as ditaduras do comunismo e do nacional-socialismo, ou o egoísmo da economia capitalista. Nessa perspectiva, o próprio relativismo pode ser entendido como um parto dessa matriz.
Mas todas essas interpretações ainda não conseguem olhar na cara o adversário autêntico. Também nestas colunas eu convidei várias formas de fé para elevar o olhar para que, se quiserem viver um pouco mais de tempo, não lhes aconteça de combater os anões, enquanto, ao invés, o gigante já pesa sobre elas e tira o seu fôlego. O gigante que podemos chamar de "Prometeu". Aqui também, é óbvio, me limitarei a algumas referências; duplamente insuficientes, porque, para quem está para morrer, e não quer, é extremamente difícil fazer com que eleve o olhar sobre a própria morte.
No início dos tempos era, ao invés, outro gigante que tirava o fôlego do ser humano, impedindo-o de viver. O homem só pode começar a viver se quiser transformar a si mesmo e o mundo que o circunda. Se não fizer isso, não pode nem realizar aquela transformação de si que é o respirar em sentido literal. E morre. Só vive se abrir espaço na Barreira que o impede de transformar a si mesmo e ao mundo. A Barreira é a Ordem imutável da natureza. Só se a penetrar, a romper, a esquartejar e, também, a fizer retroceder é que ele pode se livrar um pouco por vez do seu peso e obter o que quiser. A Barreira é o outro gigante: o tremendum (para nos servir, mas para outros fins, da expressão de Rudolf Otto). Mas é também o fascinans (ainda Otto), porque o homem só pode começar a viver se dominar as partes da Barreira destroçada e se alimenta dela – assim como Adão, alimentando-se do fruto proibido, isto é, destroçando o ícone do divino, pode tornar-se Deus ("Eritis sicut dii", "sereis como deuses", diz a serpente). E, de fato, o tremendum-fascinans é a característica essencial do sagrado, do divino, de Deus.
A Barreira divina só vive inviolada se mata o homem; o homem só vive se mata Deus. O fogo é o símbolo essencial do poder divino; e Prometeu rouba o fogo – mata a inviolabilidade dos deuses – para dá-lo ao homem. Prometeu é o homem. Principalmente há dois séculos, ele é o adversário da tradição. Ele mostra, de fato, que o divino merece declinar e que, sobre esse mérito, se fundamenta tudo o que mais salta aos olhos, ou seja, o afastamento da modernidade e, sobretudo, do nosso tempo dos valores da tradição e, portanto, da "vida da fé" (nesse contexto, a corrupção da Igreja é mais grave do que todas as formas passadas da sua degradação).
Se Deus existisse, não poderia existir o homem, ou seja, aquilo cuja existência é considerada inegável mesmo por quem se aliou com Deus. Já que, depois do início do homem, a Barreira se retirou, abriu espaço ao mundo, Deus se tornou transcendente, e o homem da tradição o encontrou menos tremendum e mais fascinans, e se aliou a ele, tornando-se homem de fé, não só cristã, mas também a dos deuses – das barreiras – em que consistem as forças (acima mencionadas) pouco a pouco dominantes no mundo.
Prometeu, agora, rouba o fogo da aliança do homem com Deus. É o poder desse furto que se esconde, em grande parte inexplorado, sob as "rápidas mudanças" do nosso tempo, "perturbado por questões de grande peso para a vida da fé".
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Na nobre renúncia de Bento XVI, a grande perturbação da fé. Artigo de Emanuele Severino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU