16 Março 2021
"Para todos, essa obra está cravada na mente como uma canção, aliás, como um grito de dor. Esse vocábulo tem na base uma raiz indo-europeia (del- ou dal-) que se refere ao golpe do machado na madeira, ao martelo que forja o ferro no fogo, à lâmina que corta e fere. Não é à toa que dizemos espontaneamente que somos "trespassados" por um sofrimento ou que nosso coração se parte no peito. Pois bem, este é o significado final do livro de Jó? É apenas uma elegia trágica, repleta de lágrimas e protestos, uma lamentação incessante lançada a um Deus imperador impassível, relegado a seus céus dourados, o Shaddaj em hebraico, termo traduzido como "Todo-poderoso", mas que remete à raiz etimológica semítica talvez de uma montanha intransponível?", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 14-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Livros da Bíblia. O comentário do exegeta Stefano Mazzoni explica que a busca pelo rosto autêntico de Deus e o encontro com o seu mistério são o coração da obra e o ponto de convergência de todas as temáticas.
Ele tinha concordado em participar de um breve diálogo comigo, para ser transmitido pela televisão, em sua casa no centro de Milão. Era, creio eu, o início de 1979 e eu tinha publicado há pouco um extenso comentário sobre o livro de Jó, uma grandiosa e um tanto misteriosa obra-prima bíblica composta de 8.343 palavras hebraicas. Riccardo Bacchelli já tinha mais de oitenta anos e, pouco depois, começaria um penoso crepúsculo que o levaria a uma clínica em Monza, onde morreria em 1985 em meio a dificuldades financeiras (que não se lembra da "lei Bacchelli" de apoio aos artistas em dificuldade?). Eu havia pedido um encontro com ele não apenas porque tinha sido um de seus tantos leitores (basta pensar no Mulino del Pó, uma impressionante trilogia de romances históricos composta entre 1938 e 1940).
Mas também queria conversar com ele porque em sua extensa bibliografia muitas vezes afloravam temas bíblicos, como Il pianto del figlio di Laís, de 1945, ou Lo sguardo di Gesù, de 1948. Entre estes, agora esquecido, sobressaia-se Il coccio di terracotta (O caco de terracota) de 1966, uma curiosa invenção da segunda vida de Jó, depois que - tendo concluído o dramático evento que havia atormentado o seu corpo, seus afetos e sobretudo sua fé - voltou a ser um xeque oriental (não era judeu, mas da terra desconhecida de Us) com uma nova dotação de 14.000 ovelhas, 6.000 camelos, mil pares de bois, mil burros, 7 filhos e 3 filhas encantadoras, Rola, Cássia e Azeviche. Assim, pelo menos lemos na última parábola adotada como moldura da obra bíblica, com base em um antigo módulo narrativo, extrínseco em relação à incandescência do poema propriamente dito.
No romance, mas também em nosso diálogo, que ainda hoje lembro com intensidade, Bacchelli se perguntava: pode uma segunda paternidade do protagonista apagar a dor e o vazio dos filhos mortos na turbulência anterior que havia devastado sua vida? O enredo do texto girava em torno desse nó não resolvido da memória amarga e indelével do passado.
Paradoxalmente, em Jó que agora voltava a ser feliz, florescia a nostalgia do tempo anterior, ainda que trágico, do Deus amado, mas cruel e incompreensível. E aquele passado era simbolicamente personificado no caco de louça com o qual Jó raspava as feridas purulentas, enquanto jazia marginalizado em uma pilha de sujeira. Um caco preservado como uma relíquia, mesmo quando o horizonte havia se aberto e Deus o havia preenchido de bens, e propiciado dias felizes até os 140 anos de vida, com filhos, netos e posses, mas sempre com aquele buraco no coração, a morte dos primeiros 7 filhos e das 3 filhas.
Introduzimos esta digressão para apresentar um novo comentário - entre as centenas que apareceram ao longo dos séculos - sobre esse terrível e fascinante poema bíblico, de muitos autores, mesmo não crentes, considerado um dos dez livros a serem apresentados como uma espécie de carteira de identidade de nossa humanidade para um hipotético povo alienígena que chegasse ao nosso planeta vindo da galáxia. Claro, para todos, essa obra está cravada na mente como uma canção, aliás, como um grito de dor. Esse vocábulo tem na base uma raiz indo-europeia (del- ou dal-) que se refere ao golpe do machado na madeira, ao martelo que forja o ferro no fogo, à lâmina que corta e fere. Não é à toa que dizemos espontaneamente que somos "trespassados" por um sofrimento ou que nosso coração se parte no peito. Pois bem, este é o significado final do livro de Jó? É apenas uma elegia trágica, repleta de lágrimas e protestos, uma lamentação incessante lançada a um Deus imperador impassível, relegado a seus céus dourados, o Shaddaj em hebraico, termo traduzido como "Todo-poderoso", mas que remete à raiz etimológica semítica talvez de uma montanha intransponível?
Para encontrar uma resposta, é necessário buscar um comentário como este último elaborado por Stefano Mazzoni, um exegeta que leciona na faculdade teológica romana “Marianum”. Já de início deve-se notar que estudiosos divergem quanto à identificação do gênero literário (tragédia, epopeia, debate judicial, lamentação dramática, disputa de sabedoria) e discutem sobre sua estrutura certamente sujeita a cortes e inserções, sobre suas coordenadas histórico-cronológicas, sobre seu idioma original e ardente. Mas, acima de tudo, eles debatem sobre o sentido último da obra, ou seja, sua correta hermenêutica. Esta última no passado costumava ser orientada em chave antropológica, a ponto de anexar o livro ao dossiê sempre candente da literatura de todos os tempos e lugares, que insiste no cerco à cidadela da dor, tentando abrir algumas brechas para se instalar em seu centro escuro e desvendar seu mapa emaranhado.
É indiscutível que esse é o terreno a partir do qual Jó parte, mas ele o faz rasgando todos os protocolos que seus amigos teológicos (entre os quais um quarto personagem se junta no final, provável indício de um remake redacional), cujas palavras consoladoras, baseadas na "racionalidade" do dogma retributivo "crime-castigo", portanto de uma pena punitiva de um pecado, são por ele liquidados como "infusões de malva". Placebos impotentes para aliviar e menos ainda para justificar o escândalo do sofrimento, especialmente se inocente, e em qualquer caso o absurdo do "excesso do mal" (conforme definição do filósofo Philippe Nemo).
A trajetória dos diálogos de Jó com esses amigos acaba se revelando um confronto entre surdos e aponta para um objetivo bem diferente, alcançado por meio de uma escalada de acusações lançadas para o alto pelo grande sofredor, isto é, contra Deus, numa incandescência que beira a blasfêmia e que talvez tenha obrigado a mão de um antigo censor a intervir em algumas páginas do texto que chegou até nós.
O caminho do grande sofredor se manifesta cada vez mais escarpado porque aponta para o próprio Deus que paradoxalmente se revela imputado, mas também juiz por sua onipotência, numa aporia irresolúvel aos olhos de Jó. Como nota Mazzoni, na linha de uma interpretação ainda fluida, mas agora dominante, trata-se de um percurso de fé em seu traçado mais difícil que culmina no depoimento processual final que Deus concorda em emitir, mas na forma desconcertante, embora fulgurante, de uma série de perguntas (c. 38-39). Elas opõem às legítimas indagações "racionais" de Jó um projeto ('esah em hebraico) "metaracional", mas não irracional. O confronto final revela talvez o design de todo o poema: “a procura do rosto autêntico de Deus e o encontro com o seu mistério constituem o coração da obra e o ponto de convergência de todas as temáticas”, incluindo aquelas antropológicas.
Em torno dessa intersecção que se realiza pelo canal gnosiológico-epifânico superior da revelação divina, bem sintetizada pelas últimas palavras de Jó - "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem" (42,5) – se enrola e desenrola todo o itinerário do livro bíblico que o exegeta escava e interpreta em seu comentário. Não é possível analisar aqui as opções, fruto de uma análise nada fácil, considerando a mobilidade semântica do léxico de Jó que inclui mais de uma centena de hapax, as sombras de sentido que marcam pelo menos um terço do texto, a abundância temática, a citada impossibilidade de apreensão global. Embora a exegese tenha sido praticada de forma muito sofisticada, as páginas desse unicum literário e teológico ainda merecem a definição fulminante de São Jerônimo: “Explicar Jó é como tentar segurar uma enguia ou uma moreia nas mãos: quanto mais forte se segura, mais rápido ela escapa das mãos”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O caco de louça de Jó cheio de perguntas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU