09 Fevereiro 2021
Nossas elites acreditam que sua condição é o resultado de seus próprios méritos e desprezam os perdedores. Michael Sandel, professor de Filosofia da Universidade Harvard, demonstra que nem são melhores, porque se aproveitam da falta de oportunidades para todos, nem administram melhor, porque a desigualdade aumenta no Ocidente e as classes médias empobrecem.
O desprezo da meritocracia pelos perdedores (aqueles sem carreira) nutre o ressentimento, que alimenta os populismos. E são reforçados pela digitalização da política nas redes, ao nos isolar em lados em confronto que só admitem a reiteração de suas próprias ideias.
Sandel propõe que a universidade deixe de fornecer títulos para carreiras individuais e forme todos para o bem comum, e que crie fóruns de encontro onde possamos entrar em acordo, sobretudo, com o adversário.
A entrevista é de Lluís Amiguet, publicada por La Vanguardia, 08-02-2021. A tradução é do Cepat.
Michael J. Sandel, autor de Justiça: o que é fazer a coisa certa, é também autor do livro, A tirania do mérito. O que aconteceu com o bem comum?, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, 2a. edição.
As elites enaltecem a cultura do mérito e você a critica. Por quê?
Porque a meritocracia nos impede de valorizar a quem é importante de verdade e que contribui mais para as nossas vidas. E descobrimos isso nesta pandemia.
Quem você considera que é imprescindível?
Quem se demonstrou mais necessário: a caixa de supermercado, o repositor, o faxineiro... ou o enxame de economistas que lucram especulando com as ações de suas empresas e os políticos que depois recebem doações delas?
O que sei é quem recebe mais.
Quem recompensa mais a si mesmo que aos caminhoneiros e quem, de verdade, nos traz comida ? Um caminhoneiro é mais necessário do que muitos economistas... Precisamos de tantos economistas? Mandam em tudo e são superestimados!
Não somos todos substituíveis?
Claro, mas sofremos com uma elite meritocrática que acredita ser melhor por ter chegado ao poder com uma carreira de esforço e talento que tenta nos convencer de que foi justa. Não foi. Não é. E essa elite, com o seu desprezo pela maioria, provoca um ressentimento que alimenta os populismos.
Aqueles que comandam, não chegam por mérito?
Claro que não. Beneficiam-se de um sistema injusto, não há igualdade de oportunidades.
Se o tecnocrata é um cretino presunçoso, mas nos administra bem... até voto nele.
É que, além de tratar com desprezo a maioria, essas elites nos administram mal e por isso as maiorias não confiam nos especialistas, sábios, técnicos... Lembra-se de como as pessoas riam deles na campanha do Brexit?
A globalização não tirou da pobreza milhões de pessoas na China e Índia?
Vejamos: no Ocidente, entre os anos 1940 e 1980, nossas elites, sim, geraram prosperidade e uma grande classe média, mas, desde então, a degradaram criando desigualdade. Note a evolução dos salários... Na América e na Europa, desabaram. Por isso, avançam Le Pen, Vox, Salvini, os nacionalistas...
Esses populismos também não demonstram sua própria incapacidade ao chegar ao poder?
Mas continuam crescendo, porque não são uma eleição racional, mas uma reação diante do desprezo dessas elites. Milhões de pessoas votam em populistas, porque ficam indignadas com essa hybris, a arrogância meritocrática desses especialistas que acreditam ser melhores e administram pior.
E se a corrida ao poder fosse mais justa?
Suponhamos que conseguíssemos essa igualdade de oportunidades que hoje não existe e que o elevador social funcionasse. Seria uma sociedade melhor, sim, mas ainda criaria ganhadores e perdedores e alguns humilhariam os outros.
Você não está melhor sem Trump?
Claro que comemoro sua derrota, mas não com o alívio autocomplacente dos democratas americanos ou da centro-esquerda europeia.
Por quê?
Porque Trump obteve quase a metade dos votos, 72 milhões de eleitores contra o desprezo das elites às pessoas comuns e agora com Biden, um produto do establishment, nada mudou.
Essa raiva faz com que votem em outsiders que enchem as listas eleitorais?
Essa raiva é provocada pelas elites que acreditam que o seu êxito é mérito próprio, após uma boa universidade, relações, política... Avaliam que governam por ser os melhores e que os outros não se esforçam como eles e são mais tolos e ociosos.
Se não é na universidade, onde formaria nossos líderes ou ao menos gestores?
A universidade é um meio para a formação e a aprendizagem, mas não deveria ser o único, e não deve ser, sobretudo, a emissora do passaporte para esse se sentir superior por um título.
O que falta à universidade, agora?
Formar para o bem comum, não apenas em pretensa competência técnica, mas em valores e não só para a carreira individual, mas para o serviço à comunidade, porque quando não faz isso – como agora –, forma presunçosos que distorcem o sistema a seu único favor.
A digitalização piorou ou freou a tirania da meritocracia?
Quando a internet nasceu, aqueles que se tornariam bilionários ao privatizá-la a promoviam como a porta para a democratização do conhecimento e, portanto, para uma sociedade mais justa, próspera e feliz.
Não é assim hoje?
Hoje, as plataformas digitais e suas redes se apropriam de nossa atenção – uma capacidade limitada – para a converter em seus lucros. Eu proibi o uso de celular em minhas aulas e na medida do possível em todo o meu ambiente acadêmico.
As redes não propiciam o debate público?
É o que nos prometeram ao criá-las, mas o efeito real foi o contrário: nas redes sociais só nos relacionamos com quem pensa como nós. Na realidade, somos separados em grandes capelas digitais, sem opiniões transversais. E assim nos radicalizamos.
O que propõe?
Deixar as frentes digitais e nos encontrar com os adversários ideológicos face a face, em um debate aberto e sincero. Ninguém faria mais pela qualidade do debate público do que esse encontro entre aqueles que pensam diferente.
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“Hoje sabemos que um caminhoneiro é mais necessário do que muitos economistas”. Entrevista com Michael Sandel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU