05 Fevereiro 2020
"Enquanto a meritocracia invoca o princípio do mérito na fase da distribuição da riqueza, ou seja, post-factum, a meritoriedade busca aplicá-lo na fase em que se gera a riqueza, visando a assegurar a igualdade das capacitações (capabilities), e não somente das oportunidades."
A opinião é do economista italiano Stefano Zamagni, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. É autor de inúmeros livros, incluindo, em português, “Economia civil: eficiência, equidade e felicidade” (Ed. Cidade Nova, 2010), em coautoria com Luigino Bruni.
O artigo foi publicado por Corriere della Sera, 04-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O indecente fenômeno do aumento endêmico das injustiças sociais, que caracteriza a atual passagem de época – fenômeno sobre o qual já sabemos quase tudo do ponto de vista estatístico e informativo – deve nos levar a considerar por que está tão difundida a ideia de que as desigualdades seriam algo conatural à condição humana ou como uma espécie de mal necessário para permitir o progresso. Em suma, como algo com o qual se deve aprender a conviver, assim como em outras épocas históricas o gênero humano soube fazer com as “extravagâncias” da natureza.
A aceitação condescendente do factum, assim, corta as asas do faciendum. Pois bem, uma causa disso – embora não única – é a difusão acelerada, ao longo dos últimos 30 anos, da ideologia meritocrática.
Introduzido pela primeira vez pelo sociólogo inglês Michael Young em 1958, o conceito de meritocracia foi crescendo pouco a pouco em relevância no debate público. Meritocracia é, literalmente, o poder do mérito, ou seja, o princípio de organização social que fundamenta toda forma de promoção e de atribuição de poder (atenção, o poder como potência) exclusivamente no mérito.
O mérito é a resultante de dois componentes: o talento que cada um recebe da loteria natural e o empenho investido pelo sujeito no desenvolvimento de atividades ou tarefas variadas.
Nas versões mais refinadas, a noção de talento leva em consideração as condições do contexto, pois o quociente de inteligência também depende da educação recebida e de fatores socioambientais. Da mesma forma, o componente do esforço é qualificado em relação à matriz cultural da sociedade em que o indivíduo cresce e atua, e isso porque o empenho depende, além dos “sentimentos morais”, também do reconhecimento social, isto é, daquilo que a empresa acredita que deve julgar meritório.
Na verdade, é sabido por todos que a mesma habilidade pessoal e o mesmo esforço são avaliados diferentemente de acordo com o ethos público predominante em um dado contexto. É por isso que, segundo o julgamento do seu próprio inventor, o meritocrático não pode ser assumido como critério para a distribuição dos recursos de poder, tanto econômico quanto político.
Young ficou tão persuadido da perigosidade desse princípio que chegou a escrever um artigo em 2001, no qual lamentou o fato de seu livro de 1958 ter sido interpretado como um elogio e não como uma crítica radical da meritocracia, pretendida como sistema de governo e organização da ação coletiva.
Em essência, o sério perigo inerente à aceitação acrítica da meritocracia é o deslize – como Aristóteles havia entrevisto claramente – rumo a formas mais ou menos veladas de tecnocracia oligárquica. O filósofo grego já havia escrito que a meritocracia não é compatível com a democracia.
Bem diferente é o julgamento em relação à meritoriedade, que é o princípio de organização social baseado no critério do mérito, e não mais no poder do mérito. Certamente, é justo que quem merece mais obtenha mais, mas não tanto mais a ponto de torná-lo capaz de influenciar as regras do jogo – econômico e/ou político – que servem, depois, para beneficiá-lo ainda mais.
Isto é, trata-se de evitar que as diferenças de riqueza associada ao mérito se traduzam em diferenças de poder decisório. Se não é aceitável que todas as pessoas sejam tratadas igualmente – como o igualitarismo gostaria –, é necessário, porém, que todas sejam tratadas como iguais, que é o que a meritocracia absolutamente não garante.
De outro modo, enquanto a meritocracia invoca o princípio do mérito na fase da distribuição da riqueza, ou seja, post-factum, a meritoriedade busca aplicá-lo na fase em que se gera a riqueza, visando a assegurar a igualdade das capacitações (capabilities), e não somente das oportunidades.
Em essência, o sério problema com a noção de meritocracia não está no merere (ganhar), mas sim no kratos (poder). O meritoriedade, por outro lado, assume a distinção entre mérito como critério de seleção entre pessoas e grupos, e mérito como critério de verificação de uma habilidade ou resultado alcançado. O primeiro é rejeitado; o segundo é acolhido. A meritoriedade, portanto, é a meritocracia depurada do seu desvio antidemocrático.
Para a ideologia meritocrática, se um indivíduo cai na pobreza, é “culpa” dele: daí a aporofobia, isto é, o desprezo pelo pobre e pelo diferente. O outro dogma que a meritocracia contribuiu para transmitir é a crença de que o elitismo deve ser encorajado por ser eficiente, e isso no sentido de que o bem-estar da maioria cresceria mais com a promoção das habilidades da minoria. E, portanto, recursos, atenções, incentivos, prêmios devem ir para os mais dotados, porque é ao empenho deles que se deve o progresso da sociedade.
Decorre disso que a exclusão da atividade econômica – na forma, por exemplo, de precariedade e/ou desemprego – dos menos dotados é algo não somente normal, mas também necessário, se o desejo é aumentar a taxa na qual o PIB aumenta.
E isso é factualmente falso. Como escreveu Luigino Bruni, uma das mais extraordinárias conquistas morais do humanismo cristão é o fato de ter libertado os pobres, os marginalizados, os descartados da “culpa” pela sua condição. De fato, sabemos que, no mundo antigo, a condição do desigual era consequência da merecida maldição divina; com isso, eles eram duplamente atingidos.
O bom samaritano, por outro lado, presta socorro ao desventurado não porque ele a merecesse, mas porque era um ser humano!
O Terceiro Setor conhece bem e pratica essa concepção, como a revista “Buone Notizie” nos testemunha semanalmente. Agora vem a tarefa, dura mas fascinante, de fazer avançar as razões da meritoriedade.
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Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. Artigo de Stefano Zamagni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU