14 Junho 2019
Um dos mais devastadores perigos que a cultura hoje enfrenta foi descrito, com muita eficácia, pelo escritor inglês C.S. Lewis com a expressão "esnobismo cronológico", para significar a aceitação acrítica do que acontece apenas porque pertence à tendência intelectual do presente. Este é o caso da aporofobia (literalmente: desprezo pelos pobres), uma atitude que está se espalhando rapidamente nas sociedades do Ocidente avançado, que vê a condição de pobreza como algo inerente à natureza humana ou como uma espécie de mal necessário para permitir à sociedade avançar. Do espírito de compaixão do passado, estamos passando para o desprezo ou, na melhor das hipóteses, para a indiferença.
A opinião é do economista italiano Stefano Zamagni, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Autor de inúmeros livros, publicou em português “Economia civil: eficiência, equidade e felicidade” (Ed. Cidade Nova, 2010), em coautoria com Luigino Bruni. O artigo é publicado por Settimana News, 05-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A aceitação supina do factum tira assim o fôlego ao faciendum. E, no entanto, já Condorcet em sua Esquisse de 1794, havia avisado: "É fácil demonstrar que as fortunas tendem naturalmente à igualdade e que sua excessiva desproporção não pode existir ou deve cessar rapidamente se as leis civis não impõem meios artificiosos para perpetuá-las ou para reuni-las”. Como a dizer que as grandes desigualdades sociais são um produto da organização da sociedade e não um fato da natureza a ser aceito como algo imutável.
O que está no fundo de tal mudança de mentalidade? Sobre dois fatores causais, principalmente, pretendo me deter aqui.
O primeiro é atribuível à afirmação em curso no último quarto de século, da ideologia meritocrática. Introduzido pela primeira vez pelo sociólogo inglês Michael Young em 1958, o conceito de meritocracia cresceu gradualmente de relevância no debate público. A meritocracia é, literalmente, o poder do mérito, ou seja, o princípio de organização social que baseia toda a forma de promoção e atribuição de poder exclusivamente no mérito.
O mérito é a resultante de dois componentes: o talento que cada um obtém da loteria natural e o empenho assumido pelo sujeito em realizar várias atividades ou tarefas. Nas versões mais refinadas, a noção de talento leva em consideração as condições contextuais, uma vez que o quociente de inteligência também depende da educação recebida e dos fatores socioambientais.
Da mesma forma, a noção de esforço é qualificada em relação à matriz cultural da sociedade em que o indivíduo cresce e opera, e isso ocorre porque o empenho depende não apenas dos "sentimentos morais", mas também do reconhecimento social, ou seja, daquilo que a sociedade acredita que deve julgar meritório. De fato, é um fato conhecido por todos que a mesma habilidade pessoal e o mesmo esforço são avaliados de maneira diferente, dependendo do ethos público prevalecente em um dado contexto.
É por isso que o critério meritocrático, segundo o juízo de seu inventor, não pode ser tomado como critério para a distribuição dos recursos de poder, tanto econômico quanto político.
Young estava tão convencido da periculosidade de tal princípio que, em 2001, escreveu um artigo no qual lamentava o fato de que seu ensaio de 1958 tivesse sido interpretado como um elogio e não como uma crítica radical da meritocracia, entendida como um sistema de governo e como organização da ação coletiva. Basicamente, o sério perigo inerente à aceitação acrítica da meritocracia está em seu deslocamento - como Aristóteles havia claramente vislumbrado - em direção a formas mais ou menos veladas de tecnocracia oligárquica. Uma política meritocrática contém em si os germes que levam, a longo prazo, à eutanásia do princípio democrático.
Bem diferente é o juízo em relação à meritoriedade que é o princípio da organização social baseado no "b" e não do "poder do mérito". É certamente justo que aquele que merece mais receba mais, mas não a ponto de colocá-lo em condições de designar as regras do jogo - econômico e/ou político - que possam depois beneficiá-lo. É uma questão de evitar que as diferenças de riqueza associadas ao mérito se traduzam em diferenças de poder de decisão. Se não é aceitável que todos os homens sejam tratados igualmente - como gostaria o igualitarismo -, é necessário que todos sejam tratados como iguais, que é o que a meritocracia justamente não garante.
De outra forma, enquanto a meritocracia invoca o princípio do mérito na fase da distribuição da riqueza, isto é, pós-factum, a meritoriedade prefere aplicá-lo na fase da produção de riqueza, visando assegurar a igualdade das capacitações (capabilities).
Basicamente, o problema mais grave com a noção de meritocracia não está no merere (ganhar), mas no kratos (poder). A meritoriedade, por outro lado, assume a distinção entre mérito como critério de seleção entre pessoas e grupos, e mérito como critério para verificação de uma habilidade ou resultado alcançado. O primeiro é rejeitado; o segundo é aceito.
A meritoriedade, portanto, é a meritocracia depurada de sua deriva antidemocrática. Aristóteles já havia escrito que a meritocracia não é compatível com a democracia. Para a ideologia meritocrática, se um indivíduo cai na pobreza, é "culpa" sua: disso decorre o desprezo.
A segunda das causas acima mencionadas é a crença contínua, em nossa sociedade, nos dogmas da injustiça. De dois, em especial, é preciso falar.
O primeiro afirma que a sociedade como um todo seria favorecida se cada indivíduo agisse para buscar apenas o próprio benefício pessoal. O que é duplamente falso. Em primeiro lugar, porque o argumento smithiano da mão invisível postula, para sua validade, que os mercados estejam próximos do ideal de livre concorrência, no qual não há nem monopólios nem oligopólios, nem assimetrias de informação. Mas todos sabem que as condições para ter mercados de concorrência perfeita não podem ser satisfeitas na realidade, resultando que a mão invisível não pode operar.
Não só isso, mas as pessoas têm talentos e habilidades diferentes. Segue-se que, se as regras do jogo são forjadas de modo a exaltar, digamos, os comportamentos oportunistas, desonestos, imorais, etc., acontecerá que aqueles sujeitos cuja constituição moral é caracterizada por tais tendências acabarão esmagando os outros.
Da mesma forma, a ganância entendida como paixão pelo ter é um dos sete pecados capitais. Se nos locais de trabalho forem introduzidos fortes sistemas de incentivos, é evidente que os mais gananciosos tenderão a subjugar os menos gananciosos. Nesse sentido, podemos afirmar que não existem pobres por natureza, mas por condições sociais; pela maneira como as regras do jogo econômico são desenhadas.
O outro dogma da injustiça é a crença de que o elitismo deve ser encorajado porque é eficiente, e isso no sentido que o bem-estar da maioria cresce mais com a promoção das habilidades de poucos. E, portanto, recursos, atenções, incentivos e prêmios devem ir para os mais dotados, porque é devido ao empenho dessas pessoas que se deve o progresso da sociedade. Decorre disso que a exclusão da atividade econômica - na forma, por exemplo, de precarização e/ou desemprego - dos menos dotados é algo não apenas normal, mas também necessário se quisermos aumentar a taxa na qual o PIB cresce (produto interno bruto).
A crise da ideia de igualdade devida à circunstância de que a aplicação do cânone da justiça distributiva sempre requer um sacrifício, é bem descrita por Norberto Bobbio (1999) quando escreve que à luta pela igualdade quase sempre se segue a luta pela diferença.
Tantas, e de vária natureza, são as consequências que derivam do argumento mencionado acima. Em particular, sobre uma delas, gostaria de chamar a atenção: o marcado e agora noto a todos fin de non recevoir em relação aos Entes do Terceiro Setor (serviço voluntário, empresas sociais, cooperativas sociais, ONGs, fundações civis). Trata-se de uma galáxia de sujeitos - dos quais o nosso país é providencialmente rico - cuja missão primária é pensar, in primis, nos menos favorecidos, respeitando a sua dignidade e favorecendo o seu florescimento humano.
É fácil entender por que isso acontece. Quem ensina e pratica a aporofobia certamente não pode ver com bons olhos a expansão de sujeitos cuja ação vale especialmente para transmitir a virtude da misericórdia na sociedade. Eles são tolerados, até recebem benefícios fiscais, mas não se aceita que possam alcançar o limiar crítico, além do qual conseguem se tornar sujeitos autônomos. Eles devem, portanto, ser mantidos sob tutela.
Na perspectiva cristã, a misericórdia fala da maneira pela qual o amor deve se manifestar - como o Papa Francisco escreveu: "Deus ama misericordiando"; isto é, exerce justiça tornando justos aqueles que são perdoados.
A comparação de dois trechos de autores famosos nos permite compreender o significado da afirmação relatada.
No Mercador de Veneza, de W. Shakespeare, lemos: "A misericórdia muito alto sempre paira das injunções do cetro, pois seu trono no próprio coração dos reis se firma; atributo é de Deus; quase divino fica o poder terreno nos instantes em que a justiça se associa à misericórdia". (Ato IV, cena I).
Seguindo outra orientação, F. Nietzsche escreve em seu Assim falou Zaratustra (1883-85): "Na verdade, eu não amo os misericordiosos ... Todos os criadores são duros. Deus está morto, morreu de sua compaixão pelos homens... Louvado seja o que nos endurece".
As passagens falam por si. Limito-me apenas a observar que a misericórdia mencionada pelo filósofo alemão - ao qual incomodava uma específica retórica moralista - é um ato ético-filosófico, não teológico em sentido cristão. Um antigo apologista afirma: "O discípulo pecara gravemente e publicamente. O mestre não o puniu. Outro discípulo protestou: 'Não podemos ignorar a culpa, Deus nos deu os olhos'. O mestre respondeu 'Sim, mas também as pálpebras!'". A misericórdia tem pálpebras.
O historiador romano Gaio Higino, no Fabulorum Liber, nos transmitiu um conto mitológico que permite entender o papel, por assim dizer, econômico-social da misericórdia. No conto, Cura dá forma ao ser humano moldando-o com barro.
Júpiter, convidado por Cura para infundir o espírito em seu pedaço de argila, quis impor seu nome, mas Terra interveio reclamando que fosse dada a essa criatura seu nome, porque havia dado a ela parte de seu corpo.
Saturno, eleito a juiz, decidiu que essa criatura teria se chamado homo (de húmus, barro), que Júpiter teria o espírito na hora da morte, enquanto a Terra teria recebido o corpo; mas Cura o teria possuído por toda a vida, por ter sido a primeira a lhe dar forma.
Cura dá forma ao barro conferindo-lhe assim dignidade humana. Está nisso a missão dos entes do terceiro setor no âmbito econômico: a de dar “forma” ao mercado, humanizando-o.
Com efeito, são as múltiplas ações de misericórdia que, apesar das dificuldades, continuam a ser postas em prática, que nos fazem compreender que uma sociedade não pode progredir no caminho do desenvolvimento humano integral, mantendo o código da eficiência e o código da fraternidade separados um do outro.
É essa separação que nos explica o paradoxo que aflige as nossas sociedades; por um lado, há uma multiplicação de tomadas de posição em favor daqueles que, por diferentes razões, ficam para trás ou são até mesmo excluídos da competição de mercado. Pelo outro lado, todo o discurso econômico está centrado apenas na eficiência. É de admirar, então, que hoje as desigualdades sociais estão aumentando apesar da presença de um aumento global da riqueza?
Ter esquecido o fato de que não é sustentável uma sociedade de seres humanos em que o senso de fraternidade se extingue e na qual tudo se reduz, por um lado, para melhorar as transações baseadas na troca de equivalentes e, pelo outro, para aumentar as transferências atuais das estruturas assistenciais de natureza pública, nos mostram o porquê, apesar da qualidade das forças intelectuais em campo, ainda não se tenha chegado a uma solução confiável para o grande trade-off entre eficiência e equidade.
Não é capaz de futuro a sociedade em que se dissolve o princípio da fraternidade; isto é, não é capaz de progredir aquela sociedade na qual existe apenas o "dar por ter" ou "dar por dever". É por isso que nem a visão liberal-individualista do mundo, em que tudo (ou quase tudo) é troca, nem a visão da sociedade centrada no Estado, em que tudo (ou quase tudo) é dever, são guias seguros para nos tirar dos baixios que nossas sociedades estão agora atoladas.
A necessidade de irmandade emerge de todas as esferas da convivência - econômica, política, social. O grande desafio a ser enfrentado é como conectar a exigência libertária, própria da subjetivação dos direitos e à instância comunitária. Ou seja, como não perder o sentido subjetivo da liberdade e, ao mesmo tempo, não trair o espaço do outro, não só não o invadindo, mas contribuindo para o seu enriquecimento.
Uma famosa passagem de William Blake - poeta e artista nutrido de Sagradas Escrituras - ajuda-nos a entender a potência do princípio da fraternidade: "Procurei a minha alma e não a encontrei. Procurei Deus e não o encontrei. Procurei meu irmão e encontrei todos os três." A intuição do poeta inglês é derivada da página evangélica em que Jesus nos informa que seu rosto se esconde por trás dos perfis pobres dos últimos dos nossos irmãos (Mt 25,31-46). É na prática da misericórdia que a pessoa encontra simultaneamente, o próprio eu, o outro e Deus.
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O governo tem medo dos pobres? Artigo de Stefano Zamagni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU