25 Setembro 2020
"O Papa Francisco não renuncia a apresentar (como também acontece em outros âmbitos do seu magistério) o ideal evangélico em toda a sua radicalidade. De fato, insiste na beleza da mensagem contida no Sermão da Montanha - das 'bem-aventuranças' ao 'mas eu vos digo' - que repropõe frequentemente como o motivo inspirador da conduta do cristão e torna transparente a sua força revolucionária também através do próprio testemunho pessoal", escreve Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Viandanti, 20-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Entre as muitas intervenções que caracterizaram estes anos de pontificado do Papa Francisco, não faltaram tomadas de posição sobre certas questões morais de particular atualidade no que diz respeito tanto à vida pessoal como social. E isso não apenas em documentos de particular importância doutrinal e pastoral - basta recordar a esse respeito a exortação apostólica Amoris laetitia e a encíclica Laudato si' - mas também através de momentos informais como as homilias de Santa Marta ou as entrevistas a jornalistas por ocasião de numerosas viagens a várias partes do mundo. Que modelo? Para além dos conteúdos das intervenções individuais, merece particular atenção o modelo ético a que ele se refere e que constitui a chave interpretativa de todo o seu magistério. A preocupação da qual parte é primorosamente pastoral e tem como critério fundamental a mediação entre ideal e realidade.
O Papa Francisco não renuncia a apresentar (como também acontece em outros âmbitos do seu magistério) o ideal evangélico em toda a sua radicalidade. De fato, insiste na beleza da mensagem contida no Sermão da Montanha - das "bem-aventuranças" ao "mas eu vos digo" - que repropõe frequentemente como o motivo inspirador da conduta do cristão e torna transparente a sua força revolucionária também através do próprio testemunho pessoal. Mas, a par do anúncio constante desse ideal, que tem sua plena expressão no seguimento de Jesus, ele toma seriamente em consideração as dificuldades que se encontram ao aderir ao projeto evangélico e a distância que sempre subsiste entre a altura da meta a que se é chamado e a fraca correspondência dos resultados alcançados. Isso leva o papa a assumir para si o anúncio (que, aliás, também é plenamente evangélico) da misericórdia; de um Deus que na pessoa de Jesus se curvou sobre o pecado do ser humano, redimindo-o com o perdão e oferecendo-lhe a possibilidade de mudança. O que caracteriza a proposta do Papa Francisco é, portanto, um modelo de "ética do compromisso", que se mede constantemente com a realidade sem abrir mão da tensão em direção ao ideal da perfeição; um modelo ético que confere à existência cristã o caráter de um caminho de conversão permanente. A alegria pelo perdão recebido retira aquele que crê de um estado de culpabilização paralisante e se torna um incentivo para renovar a própria conduta para torná-la conforme o desígnio divino.
No coração da vida familiar
Essa perspectiva explica, em primeiro lugar, o significado que assumem as orientações do Papa Francisco para questões importantes da vida familiar e, de modo mais geral, do exercício da sexualidade. A exortação apostólica Amoris laetitia com que ele interveio na conclusão dos dois Sínodos sobre a família, ilustrando a grandeza da vocação matrimonial, não deixa de evidenciar, ao mesmo tempo, a complexidade das situações em que se desenvolve a experiência familiar e de evidenciar os obstáculos que os cônjuges encontram para se manter na fidelidade do ideal evangélico. Com esse espírito, o Papa enfrenta algumas situações "irregulares", como aquelas ligadas à separação e ao divórcio, oferecendo importantes critérios para o discernimento dos vários casos (não inteiramente homologáveis) que exigem tratamentos diferenciados e colocando em discussão o estado de pecado permanente dos divorciados e recasados, bem como abrindo à possibilidade, ainda que sob certas condições específicas, de que possam ter acesso aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Essa tomada de posição provocou, a par dos aplausos da maioria dos fiéis, o aparecimento de reações veementes de dissenso por parte dos grupos minoritários, que chegaram inclusive a acusá-lo de ter tumultuado a doutrina tradicional da Igreja.
Diferentes (e menos significativas) são as posições assumidas pelo papa em relação à homossexualidade e à contracepção. No primeiro caso, além de afirmações, ainda que muito relevantes, como a famosa "quem sou eu para julgar?" e de uma preocupação pastoral especial, porém, não há uma abordagem séria às questões críticas emergentes, primeira entre todas a do reconhecimento da autenticidade da relação interpessoal. No segundo - o da contracepção - não vai além do silêncio em relação à afirmação solenemente reafirmada pela Humanae Vitae de Paulo VI da única possibilidade de recurso aos métodos naturais.
A questão ambiental
Mas o interesse do Papa Francisco se voltou, acima de tudo, para as questões da ética social. A encíclica Laudato si' ocupa um lugar privilegiado a esse respeito. O conceito de "ecologia integral", que está na base desse documento e que coloca em estreita relação o cuidado com o meio ambiente e a justiça social, é efetivamente explicitado em uma série de reflexões de caráter teológico-ético e sociopolítico, as quais fornecem os pressupostos para o início de uma verdadeira revolução cultural e social. O Papa não deixa de desenvolver uma reflexão fundamental sobre a relação entre o ser humano e a natureza, remontando em particular aos relatos da criação (Gn 1-3), onde o respeito pelo mundo natural e o compromisso transformador encontram o seu ponto de equilíbrio - como sugere em modo sugestivo a Laudato si'- no empenho em “cuidar do jardim”, isto é, preservar a sua identidade e ao mesmo tempo cultivá-lo para que se torne cada vez mais luxuriante.
Essa perspectiva, que conduz à superação tanto do reducionismo cultural, para o qual não há limites para a intervenção do ser humano na natureza, quanto a uma forma de radical naturalismo, da qual deriva sua sacralização incondicional, define precisamente o sentido de a atividade humana e o projeto de sociedade ao qual é preciso dar vida.
O modelo de desenvolvimento
A estreita ligação entre a deturpação do meio ambiente, o consumo imenso dos recursos naturais (muitos dos quais não renováveis) e o crescimento das desigualdades sociais exige um compromisso com a promoção de um modelo de desenvolvimento ecocompatível e equicompatível. A crítica ferrenha do Papa Francisco ao sistema neoliberal e à ideologia tecnocrática, devido aos efeitos devastadores produzidos no plano ambiental e social, exigem que intervenções de mudança radical de direção sejam implementadas.
Mas isto não é suficiente. A possibilidade de ativar um sistema socioeconômico alternativo está ligada, por um lado, à presença de uma ação política a longo prazo e revestida de autoridade e, por outro, à adoção de estilos de vida inspirados em critérios de sobriedade, redução dos consumos e de reavaliação das relações inter-humanas e com a natureza. Só cumprindo estas últimas condições é possível avançar para uma verdadeira inversão de rumo, capaz de restituir plena dignidade a cada ser humano, reagindo à atual cultura da indiferença e do descarte e transmitindo um mundo habitável para as gerações futuras.
Uma reflexão de amplo alcance, portanto, é aquela oferecida pelo Papa Francisco sobre as questões éticas. Mesmo com as limitações mencionadas, não se pode negar que o seu magistério apresente aspectos de autêntica novidade também nesse campo e represente o marco de um caminho destinado a abrir percursos fecundas para o futuro.
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A ética do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU