26 Agosto 2020
"Se as mulheres tiverem que aguardar pela igualdade até que o patriarcado totalmente masculino acorde, renuncie ao poder e decida se transformar, elas esperarão para sempre. Isso não é justiça, e não é o que as nossas antepassadas do sufrágio desejariam para nós", escreve Jamie L. Manson, mestre em teologia pela Yale Divinity School, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 25-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O dia 26 de agosto marca o 100º aniversário do dia em que o direito das mulheres ao voto foi consagrado na Constituição dos Estados Unidos [no Brasil, o direito foi conquistado em 1932]. A aprovação da 19ª emenda foi o resultado de mais de 80 anos de agitação, manifestações e lobbies de mulheres. Algumas sofreram a prisão e foram alimentadas à força quando entraram em greve para protestar contra seu encarceramento.
O momento celebrado como o “início” oficial do movimento sufragista foi a primeira convenção dos direitos das mulheres realizada em 1848, em Seneca Falls, Nova York. Uma semana antes do evento, os organizadores colocaram um anúncio no jornal local, anunciando-o como uma convenção “para discutir a condição social, civil e religiosa e os direitos da Mulher”.
Mesmo naqueles primeiros dias da luta pelo sufrágio, as mulheres perceberam e falaram abertamente sobre a necessidade de igualdade não apenas no governo, mas também na Igreja.
Ao celebrarmos o centenário do sufrágio, é importante que as mulheres, especialmente as católicas, se lembrem dos argumentos que os antissufragistas levantavam na sua oposição ao direito da mulher ao voto. Eles soam assustadoramente semelhantes aos argumentos atuais da hierarquia católica contra o poder de decisão das mulheres na Igreja e contra a ordenação de mulheres.
A razão pela qual as mulheres não desfrutam de nenhuma forma de liderança na Igreja se deve essencialmente ao seu ensino de que Deus designou homens e mulheres para papéis separados e distintos na sociedade e na Igreja.
Essa ideia de que mulheres e homens são essencialmente diferentes sustentava muitos argumentos contra o sufrágio e podia até ser encontrada na boca de mulheres antissufragistas, que eram muitas. Frances Cleveland, esposa do 22º e 24º presidente dos EUA, Grover Cleveland, escreveu a famosa frase segundo a qual “os papéis masculinos e femininos foram atribuídos há muito tempo por uma inteligência superior”.
Enquanto isso, os antissufragistas do sexo masculino temiam que o direito da mulher ao voto destruiria a família ao perturbar e interromper a ordem do lar. Surgiram cartazes mostrando maridos tentando desesperadamente cuidar dos bebês, enquanto suas esposas mandavam neles. Em uma imagem notável, chamada de “Suffragette Madonna”, um homem é representado como Maria segurando o menino Jesus.
Aqueles que, hoje, se opõem ao fato de as mulheres terem poder de liderança na Igreja também se valem da retórica dos valores da família e dos rígidos papéis de gênero. Mais de um papa já afirmou que a Igreja se dividiria se as mulheres fossem autorizadas a realizar os deveres que Deus deseja que sejam realizados exclusivamente pelos homens.
Alguns antissufragistas demonizaram as mulheres que queriam votar, alegando que elas queriam ser homens. Isso é uma reminiscência de uma ideia que o Papa Francisco frequentemente repete de que as feministas são “chauvinistas de saias” e de que o feminismo “coloca as mulheres no nível de uma batalha vingativa”.
Conforme eu escrevi em 2013, a linguagem de Francisco sugere que “um tratamento igual perante a lei e uma posição igualitária na sociedade deveriam ser entendidos como se as mulheres estivessem tentando – como machos vingativos travestidos de mulher – afirmar sua superioridade sobre os homens”.
Jorge Bergoglio nasceu em 1936 – bem depois que as mulheres obtiveram o voto nos EUA –, mas até mesmo a sua retórica moderna se encaixaria perfeitamente na brigada antissufrágio da virada do século.
Outros opositores ao sufrágio feminino usavam um argumento que eu ainda ouço por parte de alguns católicos. Os antissufragistas argumentavam que as mulheres não deveriam obter o voto porque elas ficariam maculadas pelo mundo áspero e sujo da política. Eles acreditavam que, de alguma forma, estavam protegendo as mulheres ao impedirem-nas de se emancipar.
Isso me lembra os católicos bem intencionados e progressistas que argumentam que o sacerdócio é tão corrupto e que o clericalismo é tão sórdido que as mulheres não deveriam se expor a isso. Elas deveriam esperar, sugerem esses católicos, até que o sacerdócio seja reformado. As mulheres são muito puras e muito boas para serem submetidas ao sacerdócio, quanto mais para desejá-lo.
Se as mulheres tiverem que aguardar pela igualdade até que o patriarcado totalmente masculino acorde, renuncie ao poder e decida se transformar, elas esperarão para sempre. Isso não é justiça, e não é o que as nossas antepassadas do sufrágio desejariam para nós.
As mulheres antissufrágio podem ser grandes opositoras na luta para emancipar as mulheres. Muitas alegaram que as mulheres não precisavam sequer querer votar. De acordo com a “The Vote”, a nova série da PBS, Gilbert Jones, a nora do fundador do jornal The New York Times, disse que houve muito progresso para as mulheres nos últimos 50 anos, mas apontou que ele tinha sido alcançado sem o voto. E Annie Nathan Meyer, fundadora do Barnard College, não via nenhuma razão para as mulheres obterem o voto e disse duvidar que ele fizesse alguma diferença.
A mulheres antissufrágio acreditavam que exerciam uma influência indireta. Mas, naturalmente, elas eram brancas e ricas, e tinham acesso a legisladores e juízes. Mas o argumento delas não é diferente daqueles que acreditam que o fato de ter padres casados é um “passo na direção certa” para as mulheres, porque permitiria que as esposas e as filhas tivessem algum controle indireto sobre os homens no poder. Isso também me lembra das mulheres que dizem que não querem ser padres porque já têm um papel singular e especial no ministério da Igreja.
Kate McElwee e Deborah Rose-Milavec projetam imagens do seu cartaz “Votos para as Mulheres Católicas” na Cidade do Vaticano, durante o Sínodo para a Amazônia em 2019. (Foto: NCR)
O que muitos ainda não percebem é que o fato de tornar as mulheres verdadeiramente iguais na Igreja tem a ver com algo mais do que ordená-las. Trata-se de reconhecer que as pessoas de todos os gêneros são iguais aos olhos de Deus, um reconhecimento essencial para que as mulheres alcancem a emancipação e o acesso à liberdade e à autoridade na sua Igreja.
E, se uma Igreja tão grande, poderosa e influente como a Igreja Católica diz que as mulheres merecem um poder igual, isso teria um impacto incalculável em países, culturas e sociedades que tratam as mulheres e outras minorias de gênero como inferiores.
Os negros e as mulheres queer sufragistas compreenderam bem como são cruciais o poder direto e a igualdade. Qualquer celebração das mulheres heroínas da 19ª Emenda deve reconhecer o racismo de muitas das suas principais lideranças, como Susan B. Anthony e Alice Paul, que queriam silenciar e apagar as mulheres negras a fim de fazer avançar a sua própria agenda sufragista.
Deborah Rose-Milavec e Kate McElwee posam em frente às portas fechadas da Congregação para a Doutrina da Fé com sua projeção “Votos para as Mulheres Católicas”. (Foto: NCR)
A palavra “sufrágio” vem do termo latino para julgamento ou voto. Em um inglês antiquado, ela também significa uma série de orações de intercessão. Hoje, as mulheres católicas estão adotando esse duplo encontro e dirigindo a campanha sufragista “Votos para as Mulheres” diretamente ao Vaticano.
Durante os últimos dois Sínodos dos Bispos em Roma (o da juventude em outubro de 2018 e o da Amazônia em outubro de 2019), houve manifestações que ganharam as manchetes em frente à Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, o escritório que defende a ortodoxia do ensino oficial da Igreja.
O primeiro protesto eclodiu em outubro de 2018, com um grupo de 20 mulheres e homens de seis continentes que gritaram “Deixem as mulheres votar”. A manifestação terminou com a polícia romana invadindo a cena, detendo os manifestantes e confiscando seus passaportes. O incidente levou o New York Times a apelidar o movimento e suas líderes, Kate McElwee e Deborah Rose-Milavec, de “sufragistas dos tempos modernos”.
No ano seguinte, durante o Sínodo de 2019, as duas ativistas saíram à noite pelas ruas da Cidade do Vaticano com um pequeno projetor, projetando imagens do seu logotipo “Votos para as Mulheres” nas imponentes portas da Congregação para a Doutrina da Fé, no obelisco da Praça de São Pedro e nas muralhas aurelianas.
Embora nem todos no movimento acreditem na ordenação das mulheres – defender a questão, aliás, ainda é uma ofensa passível de excomunhão – todos podem concordar que já passou da hora de as mulheres terem pelo menos um voto no sínodo.
A campanha “Votos para as Mulheres” ganhou tanta força que a comunidade beneditina feminina de Basel, na Suíça, viajou de ônibus até Roma para se manifestar em frente ao Vaticano durante o Sínodo de outubro de 2019. A sua reivindicação? Um irmão religioso teve seu direito de voto garantido naquele Sínodo, mas nenhuma das 20 freiras convidadas para o Sínodo teve esse privilégio, embora religiosos e religiosas compartilhem o mesmo status canônico. O sufrágio universal é uma força unificadora entre as mulheres católicas até hoje.
Harriot Stanton Blatch, jornalista abolicionista e filha da pioneira do sufrágio Elizabeth Cady Stanton, foi lembrada por ter dito: “Você deve manter o sufrágio a cada minuto diante do público, para que ele se acostume com a ideia e fale sobre isso, concordando ou discordando”.
Quer se trate do voto para as mulheres na Igreja ou no Estado, eu acho que todos podemos concordar que ela estava certa – e as mulheres católicas estão fazendo exatamente isso.
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Mulheres católicas ainda não podem votar na sua própria Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU