13 Agosto 2020
Importações – tardias – de máscaras da China, falta de reagentes produzidos no exterior para testes: a crise sanitária escancarou a dependência francesa do fornecimento de material médico e farmacêutico. Ela reiterou a importância de ter uma indústria e fábricas em seu território para produzir os produtos de que precisamos, mesmo quando os sinais de uma recuperação da epidemia de Covid-19 se acumulam.
Para Nathalie Coutinet, economista da Universidade de Paris 13, membro do coletivo Les Economistes Atterrés e especialista em empresas farmacêuticas, essa situação é o resultado de uma década de deslocalização e concentração do setor. Os poderes públicos, entretanto, têm vários mecanismos à disposição para mudar o curso dos acontecimentos.
Coutinet é autora, entre outros, do livro L’Économie du médicament (A economia dos medicamentos, com Philippe Abécassis, Editora La Découverte, 2018).
A entrevista é de Justin Delépine, publicada por Alternatives Économiques, 12-08-2020. A tradução é de André Langer.
Da falta de testes a respiradores para os serviços de reanimação, passando pelas máscaras, a crise de saúde da Covid-19 escancarou a nossa dependência no fornecimento de material médico?
Sim, e muito claramente. Nós já sabíamos da nossa dependência em relação aos medicamentos há alguns anos, quando da explosão da escassez, mas a dependência veio à tona durante a crise sanitária do material médico. Não somos mais capazes de garantir a nossa autossuficiência na saúde.
Embora ainda haja produção na França de alguns produtos, os últimos 15 anos se caracterizaram pela externalização das etapas de produção e pela deslocalização de fábricas. Em relação às máscaras, a unidade de produção em Plaintel, Côtes d´Armor, foi fechada em 2018 pelo grupo americano Honeywell, que transferiu a produção para a Tunísia. Existem muitos exemplos deste tipo, a tendência para a deslocalização é bastante evidente. A França era um país com uma indústria farmacêutica forte e foi inclusive o maior produtor europeu de medicamentos. Hoje, é apenas o quarto maior. Em 10 anos, 10 mil empregos foram destruídos neste setor. Em termos globais, portanto, aumentamos a nossa dependência do fornecimento de materiais médicos e de medicamentos.
A que se deve esse movimento de fundo?
Desde os acordos da OMC sobre propriedade intelectual (TRIPS) [assinados em 1994 e que gradualmente entraram em vigor, nota do editor], a internacionalização do mercado se fortaleceu. Até então, as patentes de moléculas eram principalmente nacionais; por exemplo, a Índia podia copiar legal e gratuitamente as moléculas. Com o TRIPS, as patentes adquiriram um escopo internacional; o mercado é, portanto, global. Assim que uma molécula é descoberta por um laboratório, este passa a ter primazia sobre o globo inteiro, e é nessa escala que os atores agora raciocinam. Por razões de normais ambientais e custos trabalhistas, esses atores deslocalizaram algumas produções.
Simultaneamente, o mercado dos medicamentos cresceu: a América do Norte continua sendo o mercado líder, mas a China está experimentando um forte crescimento, e o conjunto dos atores se posicionou lá construindo fábricas neste país. No entanto, a competência europeia e francesa na área farmacêutica continua forte e, portanto, parece tolice não ter mais produção de certas moléculas. Em particular para aquelas de grande interesse terapêutico, para as quais não há substituto e que, em caso de falta, podem ter consequências graves para os pacientes.
Junto com as deslocalizações, o movimento de concentração não é também responsável por um enfraquecimento na oferta de medicamentos?
Isso mesmo. De alguns produtos, existem apenas um ou dois produtores no mundo. Portanto, quando uma fábrica passa por um incidente que faz com que a produção tenha que ser paralisada, não há mais um fornecimento global. Essa fragilidade é ainda mais reforçada por um funcionamento just-in-time.
No entanto, todos os epidemiologistas afirmam: da SARS à gripe aviária e hoje à Covid-19, somos chamados a viver regularmente episódios epidêmicos. Porém, em toda uma série de produtos, como os testes, a oferta global é insuficiente. Na medida em que podemos antecipar a escassez, é missão das autoridades públicas nos proteger dela. Esta tarefa pode ser confiada à Agência Europeia de Medicamentos a nível europeu ou, a nível francês, à Agência Nacional de Segurança de Medicamentos (ANSM).
O que pode ser feito para remediar esta situação?
O desafio é relocalizar a produção na Europa e multiplicar o número de locais de produção de certas moléculas. Isso é uma questão de segurança sanitária, mas também ecológica, pois o transporte dessas moléculas não é neutro do ponto de vista ambiental. A missão das autoridades públicas consiste em assegurar o abastecimento destes produtos: uma das formas de consegui-lo é constituindo uma produção local, francesa ou europeia. Isso é tanto mais verdade quanto a maioria desses produtos é financiada por organismos de reembolso, como a Seguridade Social, que ajudam a atender a demanda. Vale lembrar que o mercado de medicamentos depende desses sistemas e cresce graças a eles. Os Estados, portanto, dispõem de vários mecanismos para agir.
Os governos podem, por exemplo, participar da construção em seu território de fábricas destinadas à produção de moléculas de grande interesse terapêutico, por meio de empresas privadas sem fins lucrativos, por exemplo. De forma mais geral, os Estados deveriam exigir, para que um medicamento fosse reembolsado, que uma parte da sua fabricação – 30%, por exemplo, num primeiro momento – fosse realizada em seu território. E isso deve ser feito sem aumento de preço.
As farmacêuticas, porém, alertam para o preço muito baixo de alguns medicamentos e principalmente dos genéricos...
As empresas correm efetivamente o risco de exigir preços mais elevados em troca da relocalização, devido aos custos mais elevados que isso representaria. Mas a rentabilidade de um medicamento é avaliada durante toda a sua vida útil. Quando uma molécula é colocada no mercado, ela tem um preço muito alto e é protegida por patente durante um período de vinte anos. Uma vez em domínio público, o preço cai. Alguns medicamentos genéricos podem até não dar lucro no momento T, mas não podemos esquecer que antes eles foram muito rentáveis!
As empresas farmacêuticas também são muito lucrativas e generosas com seus acionistas. A Sanofi pagou 4 bilhões de euros em dividendos em 2019 e anunciou antes do verão o corte de 1.000 empregos na França até 2023. No entanto, o setor farmacêutico sofreu pouco ou nada com a crise de saúde. A Sanofi também se beneficia do Crédito Fiscal de Pesquisa (CIR) e, recentemente, recebeu um auxílio do Estado de 200 milhões de euros para a pesquisa da Covid-19. Esses cortes de empregos são um sinal de que o laboratório continua perseguindo uma política de aumento da rentabilidade financeira.
A indústria farmacêutica está agora empenhada na pesquisa de uma vacina contra a Covid-19. Quando for encontrada, quem terá acesso a ela? Muitas vozes pedem que esta futura vacina seja um bem comum. Isso é possível?
No dia em que a molécula para vacinar contra a Covid-19 for descoberta e homologada, a demanda pode ser gigantesca, mas as empresas farmacêuticas não serão capazes de produzir bilhões delas imediatamente. A batalha pelo acesso a essa vacina, portanto, provavelmente será acirrada. No estado atual da regulamentação, ela não será um bem comum: o laboratório que descobrir a molécula se beneficiará de uma patente. Portanto, vai depender de como ele a usar e se ele vai conceder licenças gratuitas ou semilivres para que outros possam produzi-la também.
Sua acessibilidade dependerá principalmente de quem a desenvolver. Aqueles que financiaram a pesquisa certamente terão acesso privilegiado. Dois grandes financiadores estão atualmente posicionados. O Departamento de Saúde dos Estados Unidos, por um lado, por meio de sua agência Barda, que reagiu bastante cedo, financiando desde o começo a francesa Sanofi e a britânica GSK no início do ano. As recompensas são pré-encomendas massivas para os americanos.
O outro financiador é a Coalition pour les innovations en matière de préparation aux épidémies (Coalizão de inovações em preparação para epidemias, Cepi), uma fundação com sede na Noruega e que conta com doações de vários Estados e organizações filantrópicas. O Cepi defende o livre acesso, enquanto os americanos exigem primazia de acesso.
A França, assim como a União Europeia, reagiu muito tarde. Foi apenas em junho que Alemanha, França, Itália e Países Baixos se uniram para formar a Aliança Inclusiva para uma Vacina, e financiar a anglo-sueca AstraZeneca com também uma pré-encomenda de 400 milhões de doses. No entanto, este projeto visa principalmente financiar mais as capacidades de produção do que de pesquisa. A participação da França na busca por uma vacina parece ser muito pequena se comparada aos esforços de outros países e às capacidades financeiras do país.
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“Não somos mais capazes de garantir a nossa autossuficiência sanitária”. Entrevista com Nathalie Coutinet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU