18 Julho 2020
"As cidades e comunidades não precisam permanecer isoladas. Elas estão unindo forças cada vez mais, por meio de redes e iniciativas comuns. Também parecem dispostas a levar a luta ao nível nacional, a fim de alterar a legislação e aumentar seu espaço democrático. Também, estão criando alianças com outras forças que desafiam o modelo liderado pelas empresas, incluindo movimentos sociais, apoiadores dos comuns e o setor da economia social e solidária. As cidades são, essencialmente, um espaço para unir as pessoas em torno de interesses e aspirações comuns", escreve Rede Ritmo, que reúne, na França, 75 espaços abertos e organizações (mídias, centros de documentação, projetos de documentários e outros) comprometidos coletivamente em projetos de mobilização pela solidariedade internacional, em artigo publicado por Outras Palavras, 16-07-2020. A tradução é de Simone Paz.
Especulação. Catracas. Serviços públicos privatizados. Uber. Airbnb. Ampliam-se as pautas que colocam as populações urbanas em choque contra mega corporações transnacionais. Pode estar aí a grande disputa política do século XXI.
No mundo todo, as cidades vêm se transformando em campos de batalha fundamentais contra o crescente alcance e poder das corporações transnacionais — e todos os males sociais e ambientais causados por elas.
Isso tem se tornado mais evidente nos setores urbanos tradicionais, como o de construção e o de serviços públicos, mas também na indústria cada vez mais destrutiva do turismo, nas “rupturas” causadas ou planejadas pelas empresas de tecnologia e plataformas, e na tomada especulativa dos espaços habitáveis das cidades. O conflito também transparece nos inúmeros obstáculos que as transnacionais e seus aliados impõem às prefeituras, comunidades, grupos urbanos ou movimentos que procuram enfrentar a emergência climática por meio de ações decisivas ou do desenvolvimento de alternativas para a prestação de serviços básicos, para proteger direitos ou para garantir o fornecimento confiável de alimentos ou de energia.
Da privatização da água ao Airbnb e Uber, da luta contra os carros e a poluição até a promoção de uma economia “relocalizada” que não desperdice dinheiro em benefício de acionistas remotos, está se armando uma batalha que coloca cidades e cidadãos contra as multinacionais e o poder das finanças.
É também uma batalha da qual as cidades e os movimentos urbanos estão cada vez mais conscientes — já que buscam unir forças por meio de redes e alianças para compartilhar suas experiências e desenvolver estratégias comuns. O movimento “municipalista”, particularmente forte na Espanha, mas que já se espalhou mundo afora, é a expressão dessa consciência (embora seja um rótulo que nem todos autores dos artigos de nosso dossiê usariam naturalmente).
Esta publicação é uma primeira tentativa de enxergar de modo abrangente o confronto entre cidades e poder das transnacionais, que se desenvolve em muitos setores diferentes e de maneiras diferentes. Inclui artigos escritos por ativistas, jornalistas, funcionários e acadêmicos de diferentes países europeus. Conta histórias de resistência e de construção, de despertar coletivo e de movimentos de massa, de líderes sociais ou políticos corajosos. Não são só histórias sobre prefeitos e prefeituras, mas também sobre movimentos sociais urbanos, grupos da sociedade civil e comunidades e trabalhadores empobrecidos que se posicionam e reivindicam seu “direito à cidade”. Limitamos nosso escopo à Europa por razões pragmáticas e para enfatizar a experiência compartilhada das cidades europeias nos últimos anos. Mas é claro que histórias iguais, ou similares, podem ser encontradas em todo o planeta.
Sabemos que o termo “cidades” é bastante contestado, tanto do ponto de vista científico como político. Nossa ênfase nas cidades não é devida a sua configuração urbana ou qualificação administrativa, mas porque as reconhecemos como um espaço político de luta e articulação de maiorias sociais que, na era atual, facilitou a articulação de novas formas e práticas para controlar o poder das transnacionais. Também estamos cientes da dependência das cidades em relação aos recursos extraídos do mundo rural. Não podemos romantizar as cidades como um espaço de transformação política sem antes analisar e reconhecer esse fato.
Por fim, esta publicação aborda o confronto entre democracia e poder corporativo. Há uma noção crescente de que o atual sistema político, baseado no modelo de freios e contrapesos herdado das revoluções liberais, perdeu sua legitimidade. As transnacionais, com sua inigualável influência político-econômica, sentem-se “livres” de mecanismos eficazes de responsabilização dentro dos processos de tomada de decisão em nossas democracias. Seu poder desenfreado tem grandes efeitos em nosso modo de vida, como indivíduos e habitantes urbanos, e no que somos capazes de decidir coletivamente para gerenciar nossos interesses e expectativas compartilhados.
Por que as cidades tornaram-se um campo de batalha tão crucial? Boa parte dessa resposta tem a ver com a crise financeira global que eclodiu em 2008 e seus efeitos. Poderia ter sido a chance para restringir o poder das finanças e das empresas e responsabilizá-las pelas necessidades sociais e regulamentações democráticas. Em vez disso, transformou-se em uma oportunidade não só para que estendessem sua influência descontrolada sobre instituições nacionais, em nome da disciplina fiscal, da “criação de empregos” e da competitividade, mas também para minar tudo o que estava em seu caminho, incluindo direitos básicos, gastos sociais, setor público e até a própria democracia — como ficou evidente na Grécia.
Mas a crise também abriu espaço para as pessoas se organizarem e construírem um objetivo coletivo de cuidar umas das outras, além de lutar contra as medidas de “austeridade” impostas e a crescente precarização dos serviços públicos e das condições de trabalho. Os impactos das medidas de “austeridade” foram mais evidentes em terreno, a nível local. Os políticos locais — que, geralmente, são muito mais responsáveis democraticamente perante as pessoas reais do que os tomadores de decisão remotos nas capitais do mundo — não podiam ignorar completamente as consequências sociais e humanas inevitáveis dessas políticas, que afetam principalmente mulheres, migrantes e populações vulneráveis. Muitos conselhos municipais e movimentos sociais tornaram-se, assim, um eixo democrático contra a “austeridade” e o neoliberalismo.
Desde 2011, praças de cidades do mundo todo, desde o Egito até Espanha e Estados Unidos, foram ocupadas por cidadãos que protestavam contra governos corruptos e despóticos, corporações lucrativas e instituições por trás da profunda promiscuidade entre autoridades públicas e interesses privados. Esse movimento urbano global ainda está vivo, desenvolvendo propostas focadas nas pessoas e no meio ambiente, resistindo ao poder corporativo e, às vezes, agindo por meio da conquista do poder no nível local e do desenvolvimento de programas “municipais” (como na Espanha, a partir de 2015).
Ao mesmo tempo, após a crise financeira, as pressões corporativas e financeiras nas cidades aumentaram dramaticamente. O peso da dívida foi imposto com força a muitas delas, usado como mecanismo de extorsão para reduzir seus recursos e espaço de manobra. As cidades são pressionadas a vender ativos, privatizar serviços e reduzir gastos. Ao mesmo tempo, o setor financeiro voltou-se para novos instrumentos de lucro — por exemplo, empreendimentos imobiliários, grandes projetos de infraestrutura, como aeroportos, e um setor de turismo em expansão. Tudo isso teve efeitos desastrosos no custo e na qualidade de vida de muitas cidades, especialmente nas periferias. Moradores e seus representantes tiveram que lidar com novos e poderosos atores globais, que geralmente desfrutavam do apoio de governos nacionais e organizações internacionais. Todos pressionando o mesmo paradigma: de cidades que tinham de competir entre si para atrair “investidores” e “talentos”, e se tornar “atraentes” e “competitivas”.
Atores mais recentes, as grandes empresas de tecnologia e o mercado de plataformas, também entraram na briga, e, novamente, as cidades viraram um alvo importante para empresas como Airbnb, Uber e Deliveroo, assim como para Google e Amazon. Todos os seus modelos de negócios dependem da destruição e substituição de agentes econômicos locais estabelecidos. Driblam as regulamentações locais para tornar-se as forças que dão forma à vida nas cidades, ditando como as pessoas se movem, o que comem, onde moram, como trabalham e no que trabalham. Os grandes grupos econômicos também promoveram sua visão das “cidades do futuro”, privatizadas e carregadas de tecnologia excludente, através de seus campi, escritórios e sedes em todo o planeta. Novamente, essas gigantes digitais têm, com frequência, o apoio dos governos nacionais, enquanto as cidades são abandonadas para lidar sozinhas com as conseqüências.
As transnacionais que invadem as cidades, antigas ou novas, pouco fazem para enfrentar os crescentes desafios ambientais que estão se acumulando em plano global e fazendo suas conseqüências já serem sentidas nessas mesmas cidades — sob a forma de ondas de calor, contaminação da água e poluição do ar. Projetos de infraestrutura, turismo e economia digital envolvem um consumo ainda maior de recursos e novas emissões descontroladas de gases de efeito estufa. A captura corporativa de muitos governos nacionais e instituições supranacionais (por meio de lobbies financiados por multinacionais, think-tanks e a mídia e, muitas vezes, por meio do financiamento direto de partidos políticos) impediu ações decisivas para enfrentar a urgência climática. Muitas vezes, as cidades não tiveram escolha a não ser tomar a iniciativa de preservar o interesse geral. Mas isso é também reflexo do fato de que muitas soluções genuínas para questões ambientais e climáticas são, de fato, inerentemente locais.
Dirigir uma transição para sistemas energéticos democráticos e descentralizados, reduzir ou acabar com os sistemas de mobilidade poluentes, desenvolver uma cadeia local, justa e orgânica de fornecimento de alimentos, aspirar ao desperdício zero ou conseguir regular o mercado dos aluguéis e das multinacionais de tecnologia são algumas das políticas que têm sido exploradas por muitos legislativos de cidades, tanto por iniciativa própria como por pressões da população. Frequentemente, essas políticas representam uma ameaça direta ao modelo de negócios estabelecido pelas grandes corporações, que buscam constantemente frustrá-las, fazendo lobby com instituições nacionais ou recorrendo aos tribunais.
Um fio comum que percorre muitas das histórias contadas nesta publicação é a necessidade de uma mudança no sentido de “relocalizar” as economias. Por muitos anos, a tendência dominante tem sido a deslocalização: no sentido de colocar serviços ou propriedades públicas nas mãos de empresas privadas, buscando atrair investidores estrangeiros ou redes de varejo globais, contratando serviços pelo menor preço possível, independentemente dos impactos sociais e ambientais que possam desencadear. Isso levou a um vazamento (ou até uma sangria) de dinheiro para empresas distantes e para seus (ainda mais distantes) acionistas, geralmente estabelecidos em paraísos fiscais no exterior; e tornou as cidades dependentes de capital estrangeiro. Num contexto de “austeridade” e crise climática, ficou cada vez mais claro que esse modelo não é mais viável.
É por isso que cidades pioneiras optaram por “redirecionar” seus contratos públicos para favorecer empresas e cooperativas locais, oferecendo melhores condições sociais e ambientais. É o caso de Preston, no Reino Unido, e de tantas outras. É por isso que outras cidades pioneiras optaram por “remunicipalizar” seus serviços públicos, em busca de objetivos sociais e ambientais sem as amarras do lucro — por exemplo, Paris e muitas outras cidades da Europa e do resto do mundo.
Frequentemente, os novos e inovadores modelos projetados por cidades, comunidades e agentes locais para melhorar seu meio-ambiente e reduzir seu impacto ecológico, andam de mãos dadas com essa relocalização da economia. Isso se dá tanto através do desenvolvimento de um setor local de coleta seletiva (em vez do de um incinerador), de parcerias com o setor agrícola local para proteger a qualidade da água e dos alimentos produzidos (em vez de confiar em cadeias de suprimentos internacionais e estações de tratamento caras) ou criando fornecedoras de energia municipais ou de propriedade dos cidadãos locais, para evitar a dependência em gigantes corporativos — loucos para colocar obstáculos nessa transição e favorecer projetos de energia em larga escala, fortemente subsidiados.
Em muitos países, as cidades e seus habitantes vêm assumindo o controle da mudança social progressiva e da justiça climática, mas não há como escapar do fato deles terem muito pouco poder — mesmo quando à frente dos legislativos municipais — e de terem que enfrentar inimigos extremamente poderosos. Esta publicação também trata das lições a esse respeito, da experiência das “cidades rebeldes” espanholas ou das “cidades da mudança”. As novas plataformas municipalistas, que chegaram ao poder em Barcelona, Madri e em muitas outras cidades, foram rapidamente confrontadas com o aumento das demandas sociais e as limitações de seu poder real. Elas enfrentam gigantes corporativos globais com muito mais recursos e que não têm escrúpulos em impor seus interesses. Pior ainda, as regras e os formuladores de políticas nacionais jogam contra elas, e se posicionam do lado do setor privado.
O mesmo vale para outras cidades. Conquistar o poder no plano local não significará muito enquanto toda a legislação nacional e internacional estiver focada em limitar o seu espaço de manobra e favorecer os interesses corporativos. As regras da União Europeia (UE) em matéria de contratos públicos, por exemplo, mesmo após a recente revisão para acomodar objetivos sociais e ambientais, ainda são um grande obstáculo para qualquer tentativa de impulsionar o desenvolvimento econômico local, ou para a “construção de riqueza comunitária”, como dizem em Preston (Reino Unido). Evidentemente, acordos de livre comércio cumprem o mesmo papel. A Airbnb conseguiu recorrer com êxito aos tribunais da UE em sua tentativa de impedir que as cidades regulem suas operações em quaisquer âmbitos. Os círculos empresariais e financeiros sabem muito bem do perigo potencial que significam as políticas progressistas no nível municipal, principalmente no que diz respeito aos seus interesses, e estão reagindo. Atualmente, a Comissão da UE está planejando uma revisão da Diretiva de Serviços que pode levar a maiores restrições para municípios que buscam remunicipalizar serviços públicos, regular abusos corporativos ou desenvolver políticas sociais e ambientais inovadoras.
Felizmente, as cidades e comunidades não precisam permanecer isoladas. Elas estão unindo forças cada vez mais, por meio de redes e iniciativas comuns. Também parecem dispostas a levar a luta ao nível nacional, a fim de alterar a legislação e aumentar seu espaço democrático. Também, estão criando alianças com outras forças que desafiam o modelo liderado pelas empresas, incluindo movimentos sociais, apoiadores dos comuns e o setor da economia social e solidária. As cidades são, essencialmente, um espaço para unir as pessoas em torno de interesses e aspirações comuns. Se quisermos ter alguma chance de romper a dominação de um sistema econômico e social cada vez mais destrutivo, é essencial que esse foco seja mantido e preservado.
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Cidades versus Capitalismo: os novos conflitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU