15 Junho 2020
"As palavras dos bispos austríacos são um exemplo precioso para uma narrativa espiritual e cultural da pandemia que não se satisfaça com os contos confusos dos grupos interessados, dos medos étnico-nacionalistas ou aqueles impostos pelas novas hegemonias internacionais. Não alimenta o conflito ou um retorno para trás, mas a expectativa confiante do futuro aberto à inventividade do Espírito", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 14-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Per una normalità nuova e spirituale (Por uma normalidade nova e espiritual, em tradução livre): esse é o título de uma significativa carta pastoral dos Bispos austríacos, datada do Pentecostes (31 de maio de 2020) A partir da história dos Atos dos Apóstolos (2,1-6), os bispos desenvolveram o tema dos sete dons do Espírito em cerca de vinte páginas, perguntando-se quais seriam os novos dons do Espírito após o ápice da pandemia.
Assim nasceram os sete pares de valores que a fé sugere às pessoas de fé e a todos os homens e mulheres de boa vontade em um momento histórico que poderia redefinir muitos modalidades de vida: espírito de gratidão e humildade; espírito de reconciliação e unidade; espírito de atenção e solidariedade; espírito de valorização e docilidade; espírito de curiosidade e de decisão; espírito de paciência e alegria de viver; espírito de confiança e de segurança.
À reflexão sobre o contexto da pandemia, soma-se uma especial atenção dada à encíclica Laudato si', não apenas pelos cinco anos de sua publicação, mas por sua capacidade profética de indicar uma profunda revisão da vida pessoal e coletiva. A transição entre a fase mais aguda e o processo de normalização requer a confirmação de um critério decisivo: o bem comum, sem renunciar à liberdade individual. "Para essa delicada, mas necessária consideração, precisamos de um novo Espírito" que renove, como no Pentecostes, o milagre do acordo e do mandato.
Espírito de gratidão e humildade. Um sincero agradecimento repercutiu nos dias difíceis da explosão da Covid-19. Primeiro a Deus que deu paz e esperança, mas depois aos tantos, a partir daqueles que garantiram o funcionamento de infraestruturas essenciais (saúde, alimentação, transporte, energia, finanças, segurança pública), às famílias que cultivavam relações e a tarefa educacional, aos serviços hospitalares, às crianças e jovens que se adaptaram às novas disposições restritivas. Menção especial à Caritas, à Cruz Vermelha e outras organizações de assistência social.
“Nas últimas semanas, muitos se deram conta de que dependemos uns dos outros. Ninguém pode gerir a vida sozinho. Uma consciência que nos tornou mais humanos e humildes”. Um contexto que ressoou como um convite à "espiritualidade do agradecimento". “Quem começa a agradecer se liberta e sai do circuito vicioso da inveja e da ganância”.
Espírito de reconciliação e unidade. O distanciamento social aumentou a conscientização sobre a unidade social: dos concertos nas varandas, aos telefonemas, das comunicações nas redes sociais, aos cumprimentos a vizinhos, das velas nas janelas aos corais virtuais. "A humanidade existe em forma plena apenas no relacionamento recíproco." É uma experiência a não ser esquecida nos futuros dias difíceis. Muitos pais atingiram o limite de resistência, muitos idosos internados em estruturas perderam todo o contato com os membros da família, pois todos correram o risco de isolamento emocional, das doenças depressivas, das repercussões psicológicas.
“O Espírito Santo se apresenta como advogado e consolador, ao lado dos intimidados e fracos. A verdadeira unidade só pode crescer se todos continuarmos o caminho da reconciliação”. No perdão, alimenta-se uma nova qualidade de vida.
Nesse segundo dom espiritual, os bispos ressaltam com ênfase os laços europeus: "A batalha contra a pandemia mostra mais uma vez a importância de uma Europa unida e também sua fragilidade". Eles lembram as iniciais políticas divergentes e descoordenadas, mas também o reencontro subsequente pela absoluta inconsistência das pulsões nacionalistas. O Espírito do Pentecostes deveria imunizar contra "o vírus nacionalista das pequenas pátrias", tornando obsoleta a pretensão de dar conta de tudo sozinhos.
Espírito de atenção e solidariedade. A funcionalidade das plataformas digitais foi investida pela disponibilidade de ajuda recíproca, mostrando o grande potencial de solidariedade presente nas pessoas. Em um contexto em que também surgiu a conexão entre pobreza, vergonha social e marginalização: um composto que enfraquece a sociedade se não houver decisões corajosas.
Há 75 anos, após a guerra, as pessoas souberam como reagir lançando as bases para uma conscientização solidária do estado social: a ferramenta que também funcionou contra o vírus. Exige o trabalho convergente de política e parceiros sociais em um pacto nacional de solidariedade renovado. Sua prova imediata é a ajuda para superar o aumento do desemprego, mas também as dificuldades de contextos mais limitados, mas importantes, como os pequenos artesãos, o ambiente artístico e da cultura.
Uma renovada normalidade "requer um novo contrato social entre desempregados e empregados, pobres e ricos, integrados e não, saudáveis e doentes, sem-teto e residentes", considerando também a renda de cidadania. O amor ao próximo é um verdadeiro ato político, a ser implementado também nas relações globalizadas que marcam as gerações atuais, como os refugiados e requerentes de asilo.
Espírito de valorização e docilidade. A emergência tornou evidente a importância de grupos de trabalho e serviços muitas vezes tidos como certos: dos caixas dos supermercados às agências de limpeza, dos serviços de segurança aos de assistência. Âmbitos em que a presença feminina é predominante. Além disso, todos os serviços de voluntariado ou não pagos que são usados na vida sem percebê-lo.
Deve ser lembrado ao passar para a "fase dois" em que ressurgem a agressividade, a busca por culpados e dos erros. Atitudes parcialmente legítimas, mas que não deveriam impedir soluções compartilhadas. A polarização de interesses não deve ser incentivada, sabendo que ninguém é irrelevante.
Para muitos empresários, esses são dias difíceis. Já em dificuldade antes da crise, eles agora estão presos entre as exigências do mercado, as normativas jurídicas e os empenhos sociais e ecológicos. Não podemos prescindir de sua criatividade e iniciativa. Eles "contribuem significativamente para a prosperidade da nossa população e para a atratividade turística do país".
O dom da docilidade, da disponibilidade de aprender e inovar está ligado à ação do Espírito. "O Espírito de Pentecostes nos liberta de reivindicações exageradas" e afasta o espírito maligno da inveja, possibilitando uma comunicação não violenta e uma "cultura positiva do erro". Uma sociedade dócil pode abrir espaço para todos. "De qualquer forma, todos nós no futuro faremos parte de uma ‘sociedade da aprendizagem’. A crescente digitalização e globalização tornam isso necessário".
Espírito de curiosidade e de decisão. A grave crise econômica, industrial e de transportes é certamente dramática. Mas a pandemia também concedeu uma pausa na criação. Em Pequim foi possível ver o azul do céu, os rios tornaram-se límpidos e muitos animais silvestres retomaram a seus espaços: uma espécie de regeneração da natureza. Como sugere a Laudato Si', deveríamos desenvolver mais essa dimensão da curiosidade mais, do olhar ao redor, da responsabilidade pelo ambiente natural. Caso contrário, devemos esperar que a mudança climática produza consequências ainda mais graves do que a pandemia.
"Com a mesma intensidade com que lutamos contra a Covid-19, teremos que nos empenhar pela salvação do planeta". “Rezemos juntos por um espírito de curiosidade e decisão pela salvaguarda da criação”. O que significa sair da ditadura do consumo: "consumo sim, mas com medida e razão". Uma tarefa que envolve não apenas as instituições, mas também o comportamento dos indivíduos e das famílias: dos sistemas de aquecimento às reformas térmicas, dos painéis solares aos bons hábitos de mobilidade.
Espírito de paciência e alegria de viver. Além das dificuldades iniciais de confinamento, experimentamos certa alegria e frescor, principalmente quando olhamos com simpatia os outros e seus esforços. Nisso podemos vislumbrar a obra do Espírito que liberta da tristeza e do desconforto. “Juntamente com o Papa Francisco, queremos compartilhar com todos a ‘alegria do Evangelho’. Jesus Cristo é essa nova fonte de alegria e força motriz para as muitas inovações necessárias para enfrentar a atual crise e suas consequências". Uma nova alegria também está ligada à diferente percepção do tempo que a crise atual nos deu. "O tempo é um dom que não devemos abusar como uma presa". A defesa do domingo como tempo rítmico e como momento de relação e de oração faz parte do necessário reentendimento exigido pela pandemia.
Junto com a alegria de viver, há a paciência, necessária na comunicação social e pública, mas também nas relações entre as gerações. Uma indicação precisa também para a discussão levantada no país sobre a eutanásia. Os doentes e os idosos fazem parte da sociedade e não se deve permitir que chegue a eles a impressão de serem inúteis, de solicitar neles a demanda de morrer.
Espírito de confiança e de segurança. “Com Deus, a vida nunca acaba”: a afirmação do Papa Francisco em sua oração na praça deserta de São Pedro, no final de março, foi uma palavra de conforto e de consolo. Diante da perda de confiança na política, no sistema de saúde e na vida, é bom reagir. Não aceite o sentimento de que não há mais a fazer, não acessar formas esotéricas ou teorias da conspiração.
E nem mesmo se refugiar em um ativismo desenfreado. “Medos e falta de perspectivas podem dominar e paralisar o que seria necessário para superar a situação, isto é, sabedoria, prudência e determinação. A memória do primeiro padre vítima da fúria nazista, Otto Neururer, que morreu em Buchenwald em 1940, é um belo testemunho da força de resistência da fé nos contextos mais difíceis. Assim como aconteceu com todo o povo austríaco após uma guerra devastadora, há 75 anos, sustentado pela segurança e pela confiança em Deus.
Vamos retornar às perguntas fundamentais: onde está a fonte da criatividade, da inovação e da esperança? Jesus Cristo, fé e comunidade fortalecem a liberdade e a coragem. E isso também vale para a Igreja, provada, como todos, e obrigada a inovar a sua liturgia, seus laços, sua catequese. Os sinais de inovação que surgiram nessa situação não devem ser perdidos.
“Uma normalidade renovada pode existir se tivermos fé no discernimento comum. Nossa carta quer ser uma contribuição construtiva e cordial, sem nenhuma pretensão doutrinária e sem soluções certas sobre os tópicos abordados. Nós nos preparamos como sociedade e como Igreja para entender, agradecer e orar para que uma renovada normalidade espiritual seja vivível”.
As palavras dos bispos austríacos são um exemplo precioso para uma narrativa espiritual e cultural da pandemia que não se satisfaça com os contos confusos dos grupos interessados, dos medos étnico-nacionalistas ou aqueles impostos pelas novas hegemonias internacionais. Não alimenta o conflito ou um retorno para trás, mas a expectativa confiante do futuro aberto à inventividade do Espírito.
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Áustria: os sete dons do Espírito na pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU