28 Novembro 2019
É impossível entender o catolicismo romano sem aceitar o fato de que o Vaticano observa as coisas a partir de uma perspectiva internacional e supranacional.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, em artigo publicado em La Croix International, 27-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco pediu a abolição das armas nucleares durante sua visita ao Japão no domingo passado, quando a Igreja Católica celebrava a Festa de Cristo Rei.
Suas palavras foram um lembrete de que não há nenhuma forma de reconciliar o catolicismo com o nacionalismo – especialmente após a lição aprendida com duas guerras mundiais no século XX.
Mas essa lição, por si só, não resolverá o debate sobre o ressurgimento do nacionalismo que o mundo está testemunhando hoje.
Ainda existe uma questão iminente sobre o impacto que o nacionalismo terá sobre a natureza profundamente internacional, multinacional e supranacional do catolicismo romano.
É uma questão relevante não apenas para aqueles países com uma considerável população católica onde o nacionalismo se tornou novamente popular, como os Estados Unidos e certas nações da Europa. Pelo contrário, é uma questão que diz respeito a toda a Igreja.
A palavra “católico” significa literalmente “universal”. Mas o seu componente romano não parece ter muito valor entre muitos católicos hoje.
Apesar dos melhores esforços do papa para mudar a cultura e as práticas no Vaticano, o adjetivo “romano” é frequentemente identificado com desconfiança, corrupção financeira e moral, e resistência à mudança. Desde o colapso dos Estados papais em 1870, as reformas da Cúria Romana não têm oferecido exemplos esplêndidos de eficiência burocrática. Sim, eles eliminaram muitos aspectos da decadente corte papal renascentista que ainda eram típicas até o fim do século XIX. E, sim, a vida dos clérigos no século XX tornou-se mais austero e menos corrupta em comparação com as dos séculos anteriores.
Mas os persistentes sentimentos antirromanos tendem a se fortalecer em certos momentos da história. As culturas e os movimentos políticos procuram tirar proveito das dúvidas e desconfianças dos fiéis católicos em relação à distante Roma. E, assim, hoje, os nacionalistas católicos, de certa forma, estenderam seu desprezo pelas organizações internacionais (como as Nações Unidas) até o Vaticano, a Santa Sé e o papado. O nacionalismo será uma questão de longo prazo para a Igreja enquanto entramos nesta fase nova e sem precedentes do catolicismo globalizado. O Vaticano é minúsculo – geográfica e culturalmente – em comparação com uma Igreja que se expandiu cada vez mais longe de Roma. Não é apenas uma questão de tamanho, mas também de lugar.
A natureza internacionalista do papado, da Santa Sé e da Cúria Romana é sempre tensionada em tempos de crise internacional. Um exemplo disso pode ser encontrado durante a Segunda Guerra Mundial.
No início de 1944, o embaixador do Brasil junto à Santa Sé, Hildebrando Pompeu Pinto Accioly, redigiu um memorando que circulou no Vaticano. Ele tratava do status global da Santa Sé e da internacionalização da Cúria Romana. O embaixador Accioly lamentava o ethos italiano quase exclusivo que permeava a Cúria Romana, a sua cultura e o seu pessoal, especialmente porque cada vez mais italianos – incluindo clérigos – estavam adotando o nacionalismo do regime fascista de Benito Mussolini. O embaixador insistia que a Cúria precisava adotar um caráter mais internacional ou supranacional. Ele argumentava que a declaração de guerra de Mussolini, em junho de 1940, como aliada da Alemanha de Hitler, comprometia o status internacional que a Santa Sé havia conquistado em 1929 mediante o Tratado de Latrão. O embaixador dizia que as garantias que Mussolini concedeu ao papado por meio desses acordos bilaterais (e internacionais) não podiam mais ser assumidas como garantidas. É por isso que o diplomata brasileiro propunha uma “desitalianização” da Cúria Romana. Não para livrar o governo central da Igreja do clero italiano corrupto e ineficiente, mas sim para libertar a Santa Sé da órbita italiana e dar ao papado uma proteção internacional mais forte. O memorando do embaixador Accioly não teve consequências imediatas. O acordo que havia sido estabelecido pelo Tratado de Latrão em 1929 permaneceu intacto após a Segunda Guerra Mundial.
Mas a proposta de Accioly de 1944 é importante porque mostra o delicado equilíbrio que existe entre o poder eclesial e internacional.
A Santa Sé e o papado têm procurado continuamente, embora silenciosamente, manter ou renegociar sua posição e seu status políticos e simbólicos. Especialmente em tempos de crise internacional e de guerra, isso exigia um delicado ato de equilíbrio.
É uma questão do status legal internacional da Santa Sé (e, portanto, do papado). Também diz respeito às relações bilaterais entre a Itália e a Santa Sé. E também envolve o status eclesial interno do Vaticano; isto é, o modo como o público católico multinacional julga a legitimidade do Vaticano, incluindo suas jurisdições legais e seus círculos financeiros.
A ascensão do nacionalismo entre o século XX e o fim da Segunda Guerra Mundial colocou esse delicado equilíbrio sob grande tensão. E isso pode estar acontecendo novamente no nosso próprio tempo. A crise dos abusos sexuais ameaça redefinir a aceitabilidade da soberania territorial do papado e seu sistema jurídico independente. A mudança da composição política e religiosa da Itália e da Europa poderia um dia reduzir o Vaticano àquilo que o Fanar do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla é hoje na Turquia militantemente islâmica e nacionalista. E o colapso da confiança que os católicos já tiveram em seus bispos pode ter sérias consequências sobre a viabilidade da liderança do bispo de Roma.
Longe de ser salvaguardado pelas definições de primado e de infalibilidade declaradas no Concílio Vaticano I em 1870, o papado é uma instituição muito delicada que se desenvolveu em circunstâncias particulares da história europeia e global.
Não existe uma definição ou lei oficial que possa eximir o papado e o Vaticano de se adaptarem constantemente às mudanças das situações eclesiais e político-internacionais. É impossível entender o catolicismo romano sem aceitar o fato de que o Vaticano observa as coisas a partir de uma perspectiva internacional e supracional. Especialmente desde o colapso dos Estados papais em 1870, a Santa Sé desenvolveu um sistema inteiro de multilateralismo que é essencial para o seu papel de “pequeno Estado de poder suave” em um mundo globalizado.
O nacionalismo é uma questão clara para o catolicismo.
O papado moderno sobreviveu à sua crise mais crítica, no século XIX, através de uma internacionalização da “questão romana”. Mas não era apenas uma questão de sobrevivência imediata contra a ameaça do nacionalismo que estava se espalhando por toda a Europa. Era também a reformulação de uma ideia católica de política que nascera no período renascentista, quando a Igreja excomungou Maquiavel, mas se converteu ao seu realismo.
Basta observar os cursos que a Pontifícia Academia Eclesiástica exige dos futuros diplomatas da Santa Sé: história da Igreja, o mundo e as doutrinas políticas; economia e ciência política; direito constitucional e internacional; administração; e várias línguas estrangeiras.
Agora, devemos nos fazer uma série de perguntas sobre como o nacionalismo poderia afetar adversamente a cultura, a tradição e as instituições do internacionalismo católico. Ele sobreviverá a um enfraquecimento ou a um colapso da ordem internacional que o catolicismo ajudou a construir durante o último século? Que tipo de recursos financeiros, humanos e simbólicos um Vaticano internacionalista poderia continuar esperando dos católicos nacionalistas? Como o nacionalismo pode mudar as relações entre os católicos do Ocidente e os do restante do mundo? Como ele poderia subverter a mensagem social e política do catolicismo?
Os membros da Igreja precisam responder ao desafio do nacionalismo no nível político nacional, mas também no nível eclesial – tanto nacional quanto internacionalmente.
O historiador alemão Hartmut Lehmann, um especialista na história moderna das relações transnacionais, disse que o nacionalismo era “o veneno nas veias do cristianismo ocidental” no período entre o início do século XIX e 1950. Na sua luta contra esse veneno, a Igreja desenvolveu um papado global e um internacionalismo católico. No século XIX, ela estava a serviço do ultramontanismo reacionário. Agora, no século XXI, ela está a serviço do Evangelho em benefício de toda a humanidade e de toda a criação. Mas deve buscar continuamente um antídoto contra a infecção recorrente do nacionalismo, um veneno que ainda corre nas veias do catolicismo ocidental.
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Nacionalismo: um veneno mortal nas veias do cristianismo ocidental. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU