09 Mai 2020
Há quem tende a ver o copo meio cheio, em vez de meio vazio. Podemos incluir o filósofo e ativista croata Srećko Horvat (Osijek, Croácia, 1983) entre eles. Também em meio à crise do coronavírus, apesar de ter sido surpreendido em uma viagem a Viena, onde permanece confinado. “Se há dois meses nos dissessem que Boris Johnson falaria em nacionalizações, que países com governos conservadores considerariam aplicar uma renda básica universal ou que a poluição de Nova York e das grandes megalópoles chinesas iria despencar, também não acreditaríamos”, destaca por telefone.
A reportagem é de Manuel G. Pascual, publicada por Retina-El País, 05-05-2020. A tradução é do Cepat.
“A pandemia está demonstrando que tudo é possível, até o que nos diziam que não poderia ser. É possível proporcionar um salário para todos, com ou sem emprego. De repente, podemos trabalhar de casa e passar mais tempo com nossas famílias. De tudo isto podem surgir coisas positivas”, avalia.
As análises de Horvat, anticapitalista convencido, sempre apontam para uma mesma direção: é preciso mudar o sistema para salvar uma civilização que caminha para o apocalipse. E é preciso fazer isso hoje, não amanhã. Devemos nos desprender de ideias obsoletas, como as fronteiras, as identidades nacionais e o liberalismo econômico e caminhar juntos para um mundo novo.
Disso trata sua última obra, “Poesía del futuro” (Paidós), cuja divulgação o levaria à Espanha, se não fosse pela pandemia. Discípulo de Slavoj Zizek, com quem escreveu algum livro e vários artigos, assim como seu mentor, acredita que o capitalismo globalizante sairá mexido desta crise. Não é uma postura oportunista: Horvat é cofundador do movimento político pan-europeu DiEM25 [Movimento Democracia na Europa 2025] - impulsionado por seu amigo Yanis Varoufakis e apoiado, entre outros, por seu camarada Julian Assange -, que promove uma reforma institucional da União Europeia, na perspectiva da esquerda. Noam Chomsky, referência mundial do altermundialismo, considera o croata um dos autores jovens a seguir.
Em “Poesía del futuro”, Horvat defende um internacionalismo radical para resolver os problemas que enfrentamos, que são totalmente diferentes dos que provocaram as revoluções anteriores. Entre eles, destaca a tecnologia, ou melhor, o uso que se faz dela. “Thomas Hobbes dizia que a política se movimenta, em algum ponto, entre a segurança e a liberdade. Até nós, que criticamos os governos autoritários, estamos agora dispostos a ceder para ter um pouco mais de segurança. Contudo, não devemos deixar de nos perguntar em que direção estas medidas nos levam”, explica, quando perguntado a respeito do uso que se está fazendo da tecnologia, nos países asiáticos, para controlar o coronavírus.
Reconhece sua eficácia, mas alerta: “É aterrorizante pensar o que pode acontecer, caso seja normalizado o estado de exceção em que vivemos agora, se as pessoas se acostumarem ao estado atual das coisas. A forma como a tecnologia está sendo utilizada nesta crise pode ter consequências geopolíticas a longo prazo”.
Horvat dedica um dos capítulos de seu livro para analisar como a tecnologia é utilizada como um instrumento de dominação. O Vale do Silício é as empresas tecnológicas avançam rápido no que ele chama de “colonização digital”. A Internet das coisas integra nossas casas, carros e infraestruturas em uma mesma rede, na qual também se inscrevem as cidades inteligentes (“uma forma de privatizar o tecido urbano”), as redes sociais e a nova vigilância perpétua que o reconhecimento facial traz consigo. “Todos estes campos de investimento e inovação exponencial estão transformando nosso mundo de uma maneira muito profunda”, escreve. “Em breve, todas as vertentes de nossa vida estarão integradas” em uma rede ou estrutura “digital e global”.
Para analisar as consequências desta situação, serve-se de um termo chamativo: a servidão maquínica. “É um conceito que tomo emprestado do filósofo italiano Maurizio Lazzarato e que tem a ver com um temor que muitos de nós temos: a tecnologia está nos levando para uma nova forma de totalitarismo”, explica em seu habitual tom pausado, após se intuir que acaba de acender um cigarro (ou algo que se acende e fuma). Prossegue a explicação. O indivíduo, diz esta teoria, se torna uma engrenagem do emaranhado tecnológico. Empregando o jargão marxista, a servidão maquínica traz consigo “a proletarização da mente humana” ou, dito em outras palavras, “a extração de valor do sistema nervoso”. Conclusão: “Agora, o capital extrai seus lucros da própria alma do trabalhador”.
Esta argumentação pode ser ilustrada de forma mais simples: “A maioria das pessoas não está consciente de como estão imersas em diferentes tipos de tecnologias e de como isso modula sua existência”, sintetiza Horvat. “Falo de servidão porque estamos em uma situação em que já nem sequer sabemos que não somos livres”.
A própria Internet, diz o filósofo, foi um espaço de liberdade somente em suas origens. “Isso é algo que as gerações mais jovens que a minha não conheceram. Para elas, a Internet é o Google, Facebook e Instagram. Acessam a Rede através dessas grandes multinacionais, cujo objetivo é, sem dúvida, acumular lucros e para isso coletam dados particulares das pessoas”.
A crise do coronavírus apresenta mais exemplos dessa servidão maquínica. “Na China, quando alguém vai à rua é vigiado por câmeras com reconhecimento facial e agora também por sensores de temperatura. Pode acontecer que ao ir ao supermercado não deixem você entrar porque está com 37 graus. Este é outro caso de servidão maquínica, afinal, seus atos dependem de uma tecnologia obscura, que pertence a empresas privadas”.
A tecnologia em si não é boa e nem má, mas enquanto permanecer em poucas mãos, avisa, o perigo será maior. Daí sua preocupação com o crescente poder das grandes corporações tecnológicas. Em sua opinião, a situação cada vez se assemelha mais à descrita por O Círculo, um romance de Dave Eggers que foi ao cinema, há poucos anos, com pouco êxito.
Nesta distopia publicada em 2013, uma só companhia (o Círculo) se torna a mais influente do mundo, após comprar as principais empresas tecnológicas (Google, Facebook, Twitter), passando assim a controlar as opiniões de toda a humanidade. “Em todas as formas de capitalismo acaba ocorrendo o mesmo: tende-se ao monopólio. Vemos isso muitas vezes ao longo da história. Não me parece inverossímil que aconteça o mesmo no Vale do Silício”.
O Círculo cria uma identidade única, com apenas uma contrassenha para toda a atividade digital dos usuários. Depois oferece câmeras pequeninas que podem ser colocadas em qualquer lugar e cujas imagens são compartilhadas com todo o mundo. O fim da privacidade se vende como um ato de transparência. “O que o romance demonstra é como facilmente as pessoas podem adotar novas medidas tecnológicas que modelem sua vida e como, em vez resistir, amariam essas novas medidas de dominação, caso lhes sejam oferecidas da forma adequada”, reflete Horvat.
Isso, diz, é o que já está acontecendo de certo modo nos países asiáticos, onde a cidadania tende a abraçar tecnologias que na Europa nos parecem invasivas. A chave, sustenta o pensador, é se distanciar o máximo possível da origem do Círculo, da gestação de monopólios. “Precisamos de tecnologia descentralizada, caso contrário, perdemos a capacidade de manobra e caminhamos para uma sociedade da vigilância”. Conseguiremos? “Quero pensar que sim”.
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“Já nem sequer sabemos que não somos livres”, afirma o filósofo Srećko Horvat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU